Valores Corrompidos
Vem da Bulgária o longa de estreia dos diretores Kristina
Grozeva e Petar Valchanov, A Lição, premiado
no Festival San Sebastián, na Espanha, em 2014. Para contar uma dolorosa história
real, a inspiração dos realizadores veio por uma notícia estampada na página de
um jornal, em que um professor búlgaro comete um desatino. É a primeira parte
de uma trilogia que seguirá a proposta de transformar notícias na imprensa em
produção para o cinema. A trama acompanha a saga de Nadezhda (Margita Gosheva-
estupenda interpretação), uma metódica professora certinha de ensino fundamental
de uma escola pública, que descobre um furto de dinheiro dentro da sala de
aula, cria-se uma obsessão em descobrir quem foi o culpado.
Com um elenco basicamente de amadores, eis um primoroso
drama social que faz um retrato profundo dos valores éticos corrompidos num
país deteriorado pela corrupção policial no leste europeu, como metáfora de um
regime arcaico comunista em vias de extinção pelas fragilidades de uma
burocracia emperrante de um sistema totalmente superado. Os cineastas colocam
no meio deste turbilhão a protagonista na tentativa de solucionar o caso e seu
envolvimento com uma série de situações inverossímeis que a faz questionar os
limites éticos e morais, numa meditação sobre o que é certo ou errado, tendo
como mote a ilicitude praticada em plena sala de aula por uma criança. Há um
encaminhamento de maneira magnífica para o epílogo sintomático estampado no
olhar de cumplicidade entre mestre e aluno.
A Lição se passa na
cidade interiorana de Blagoevdrad, numa abordagem austera sobre as
circunstâncias relevantes e as justificativas que levaram os personagens para o
crime, como metáfora de um país da antiga cortina de ferro dentro
de um continente em crise sócioeconômica. A ética e o bom senso estão
literalmente estraçalhados por um motivo maior e enobrecedor da professora com
seu olhar fulminante, aspecto sombrio, com uma caminhada nervosa, deixando o
barulho dos saltos dos sapatos retumbando nos ouvidos da plateia agoniada e
envolvida pela luta tenaz e desesperada para manter a posse de sua casa na
iminência de ser leiloada, diante de um vacilo do marido alcoólatra e
fracassado que não consegue fazer rodar seu trailer, sempre estragado e com
dificuldades de manutenção. Gastou o dinheiro da prestação, não resolveu o
problema e ainda colocou a família no olho do furacão, inclusive a filha menor,
numa situação delicada e complicada. Há um esforço apreciável da câmera para
acompanhar a sobrecarga física e mental da dura jornada da protagonista no seu
cotidiano intrincado.
Nadezhda é o retrato do tédio dos recorrentes problemas na
sala de aula e o retrocesso político vigente, vive os dramas familiares comuns,
sustenta a casa, tem que resolver as trapalhadas do parceiro e arriscar a pele
com agiotas perigosos em conluio com policiais corruptos, num momento de
extrema dificuldade financeira. A busca contra o tempo para solucionar o
imbróglio, tendo no banco um opositor à sua felicidade, ao mudar as regras durante
o jogo, aplicando juros escorchantes e taxas e mais taxas que levam a
professora à suprema humilhação de catar moedas dentro de um chafariz, para
evitar o pior no prazo que está expirando inapelavelmente.
Um drama com foco nos problemas universais, num cenário que
contrasta o urbano com o abandono rural, através de uma narrativa de realismo
seco e eletrizante, com momentos de um clímax de puro suspense pela surpresa sequencial
das cenas da vida comum de uma pessoa conflitada pelas circunstâncias alheias
ao desejado. Uma análise profunda da crise de emprego, como visto recentemente
no provocador Dois Dias, Uma Noite (2014), dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc
Dardenne; bem explorado pelo diretor francês Robert Guédiguian, em As Neves do Kilimanjaro (2011). Guédiguian
busca no abandono familiar de uma mãe tresloucada e de um pai omisso dar o tom
certo pelos problemas sociais do desemprego de uma França enfraquecida pelos
desmandos de uma burguesia ultrapassada. Os irmãos Dardenne miram na ética
profissional e o preço de cada trabalhador fragilizado pelo sistema
competitivo: bastante para alguns e pouco para outros. A dupla Grozeva e Valchanov
se debruça nos valores éticos degenerados pela corrupção e juros bancários sem
controle. Um mergulho dolorido sobre a crise sem precedentes e as consequências
nefastas que advirão pela humilhação que arrasará com o objetivo mínimo de uma
pessoa íntegra, ou seja, sua dignidade colocada em xeque.
Apontado por boa parte da crítica como um digno
representante do movimento neorrealismo italiano, o filme mostra a solidão pela
perda da mãe de sólido vínculo afetivo rompido com a intromissão da madrasta, a
submissão do pai e a relação cada vez mais distante pela sua ausência, como
símbolo metafórico de um Estado desatento de suas obrigações precípuas e
inerentes para com seus filhos. A tensão, o medo e a humilhação para pagar a
dívida são elementos notáveis deste drama singular pelos questionamentos e a
exposição de cicatrizes ainda abertas do processo transitório financeiro, que
remete para uma reflexão imparcial e impactante, com um desfecho revelador para
sair do cinema sem fôlego.
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