domingo, 14 de junho de 2015

A Lição
















Valores Corrompidos

Vem da Bulgária o longa de estreia dos diretores Kristina Grozeva e Petar Valchanov, A Lição, premiado no Festival San Sebastián, na Espanha, em 2014. Para contar uma dolorosa história real, a inspiração dos realizadores veio por uma notícia estampada na página de um jornal, em que um professor búlgaro comete um desatino. É a primeira parte de uma trilogia que seguirá a proposta de transformar notícias na imprensa em produção para o cinema. A trama acompanha a saga de Nadezhda (Margita Gosheva- estupenda interpretação), uma metódica professora certinha de ensino fundamental de uma escola pública, que descobre um furto de dinheiro dentro da sala de aula, cria-se uma obsessão em descobrir quem foi o culpado.

Com um elenco basicamente de amadores, eis um primoroso drama social que faz um retrato profundo dos valores éticos corrompidos num país deteriorado pela corrupção policial no leste europeu, como metáfora de um regime arcaico comunista em vias de extinção pelas fragilidades de uma burocracia emperrante de um sistema totalmente superado. Os cineastas colocam no meio deste turbilhão a protagonista na tentativa de solucionar o caso e seu envolvimento com uma série de situações inverossímeis que a faz questionar os limites éticos e morais, numa meditação sobre o que é certo ou errado, tendo como mote a ilicitude praticada em plena sala de aula por uma criança. Há um encaminhamento de maneira magnífica para o epílogo sintomático estampado no olhar de cumplicidade entre mestre e aluno.

A Lição se passa na cidade interiorana de Blagoevdrad, numa abordagem austera sobre as circunstâncias relevantes e as justificativas que levaram os personagens para o crime, como metáfora de um país da antiga cortina de ferro dentro de um continente em crise sócioeconômica. A ética e o bom senso estão literalmente estraçalhados por um motivo maior e enobrecedor da professora com seu olhar fulminante, aspecto sombrio, com uma caminhada nervosa, deixando o barulho dos saltos dos sapatos retumbando nos ouvidos da plateia agoniada e envolvida pela luta tenaz e desesperada para manter a posse de sua casa na iminência de ser leiloada, diante de um vacilo do marido alcoólatra e fracassado que não consegue fazer rodar seu trailer, sempre estragado e com dificuldades de manutenção. Gastou o dinheiro da prestação, não resolveu o problema e ainda colocou a família no olho do furacão, inclusive a filha menor, numa situação delicada e complicada. Há um esforço apreciável da câmera para acompanhar a sobrecarga física e mental da dura jornada da protagonista no seu cotidiano intrincado.

Nadezhda é o retrato do tédio dos recorrentes problemas na sala de aula e o retrocesso político vigente, vive os dramas familiares comuns, sustenta a casa, tem que resolver as trapalhadas do parceiro e arriscar a pele com agiotas perigosos em conluio com policiais corruptos, num momento de extrema dificuldade financeira. A busca contra o tempo para solucionar o imbróglio, tendo no banco um opositor à sua felicidade, ao mudar as regras durante o jogo, aplicando juros escorchantes e taxas e mais taxas que levam a professora à suprema humilhação de catar moedas dentro de um chafariz, para evitar o pior no prazo que está expirando inapelavelmente.

Um drama com foco nos problemas universais, num cenário que contrasta o urbano com o abandono rural, através de uma narrativa de realismo seco e eletrizante, com momentos de um clímax de puro suspense pela surpresa sequencial das cenas da vida comum de uma pessoa conflitada pelas circunstâncias alheias ao desejado. Uma análise profunda da crise de emprego, como visto recentemente no provocador Dois Dias, Uma Noite (2014), dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne; bem explorado pelo diretor francês Robert Guédiguian, em As Neves do Kilimanjaro (2011). Guédiguian busca no abandono familiar de uma mãe tresloucada e de um pai omisso dar o tom certo pelos problemas sociais do desemprego de uma França enfraquecida pelos desmandos de uma burguesia ultrapassada. Os irmãos Dardenne miram na ética profissional e o preço de cada trabalhador fragilizado pelo sistema competitivo: bastante para alguns e pouco para outros. A dupla Grozeva e Valchanov se debruça nos valores éticos degenerados pela corrupção e juros bancários sem controle. Um mergulho dolorido sobre a crise sem precedentes e as consequências nefastas que advirão pela humilhação que arrasará com o objetivo mínimo de uma pessoa íntegra, ou seja, sua dignidade colocada em xeque.

Apontado por boa parte da crítica como um digno representante do movimento neorrealismo italiano, o filme mostra a solidão pela perda da mãe de sólido vínculo afetivo rompido com a intromissão da madrasta, a submissão do pai e a relação cada vez mais distante pela sua ausência, como símbolo metafórico de um Estado desatento de suas obrigações precípuas e inerentes para com seus filhos. A tensão, o medo e a humilhação para pagar a dívida são elementos notáveis deste drama singular pelos questionamentos e a exposição de cicatrizes ainda abertas do processo transitório financeiro, que remete para uma reflexão imparcial e impactante, com um desfecho revelador para sair do cinema sem fôlego.

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