Sonhos Utópicos
Inspirado no romance La
Novela de Mi Vida (2002, do badalado
escritor cubano Leonardo Padura, o cineasta francês Laurent Cantet realizou
este estupendo drama social Retorno à
Ítaca, vencedor do prêmio de melhor filme na Giornate Degli Autori, mostra paralela do Festival de Veneza de 2014.
Um filme sobre os fantasmas do passado que são rememorados no reencontro de
cinco amigos adeptos do sonho das mudanças que viraram utopias e desagregações
familiares. O diretor que se notabilizou por Entre os Muros da Escola (2008), está de volta em coautoria no
roteiro com Padura. Apesar da produção ser francesa, não é um olhar estrangeiro
de intromissão sobre a temática da realidade cubana. O filme é falado em
espanhol e mantém uma lógica adequada, ao limitar a ação a um terraço com vista
para o Malecón- o famoso calçadão de Havana- e as habitações empobrecidas como
cenário único que levou mais de dezessete noites para ser filmado, superando a licença governamental, diante do fator climático de muitas chuvas. Cantet já havia
filmado anteriormente na ilha um dos episódios de Sete dias em Havana (2012).
Logo após o pôr do sol, o quinteto se reúne para comemorar a
volta de Amadeo (Nestor Jimenez), depois de ter passado 16 anos exilado em Madri,
retorna para ficar e retomar os vínculos afetivos com os amigos, pretendendo
voltar a escrever textos literários. Lembram das transgressões como ouvir os
Beatles, por exemplo, todos na faixa dos 50 anos e às vésperas de um novo
século, parece ter chegado a hora de um balanço individual e sociopolítico do
encontro que se dá no terraço da casa do engenheiro Aldo (Pedro Julio Ferrán), que
teve sua fábrica de baterias de carros falida, vive de consertos e reciclagens,
mora com a mãe idosa e o filho, um infrator de pequenos furtos. Tania (Isabel
Campos) é a única mulher do grupo, uma médica oftalmologista que sobrevive de
um pífio salário, recebe mercadorias, animais como forma de pagamento por escambo
e se acha uma prostituta, seus filhos e ex-marido se exilaram em Miami,
deixando-a solitária e abandonada; Rafa (Fernando Hechavarría) é um pintor fracassado
que vive de pinturas para turistas, também é o pivô de um grande segredo entre
eles; Eddy (Jorge Perugorría) deixou de ser escritor para tornar-se um chefe de
uma empresa estatal e está enrolado com corrupção.
A trama é simples na estrutura, mas profunda pela
complexidade do realismo puro de cinema, num tom comovedor de reencontros para
colocar em dia as situações abafadas pelo regime castrista, marcado por um medo
predominante nos rostos e olhares tristes e amargurados. Passam a noite
conversando sobre as farras da juventude, o conjunto musical que embalava as
festinhas e a crença que depositaram com as reformas sociais e políticas para
um futuro promissor do país. Um doloroso mosaico humano de um país quebrado, no
qual os habitantes sofrem com a angústia de ir embora para buscar novos
horizontes ou ficar para não serem tachados de traidores da pátria. Remanesce
na essência os sinais claros de um projeto coletivo que soçobrou, deixando uma
geração sonhadora nitidamente com ônus da perda de valores, mas que carrega na
alma uma força de dignidade arranhada por arriscar. O desfecho é sombrio e
dilacera coração e mentes.
Retorno à Ítaca
tem mágoas, revelações pessoais e profissionais que se entrelaçam pelas experiências
obtidas. O painel traçado pelo diretor tem uma Cuba amorosa, realista e
abrangente, com seus bons charutos e o rum como a bebida predileta, contrapondo
com um regime que trouxe rupturas, dissabores e contradições, revisto de um local
privilegiado, mas paradoxalmente está fincado num dos tantos prédios arruinados
do centro velho da Capital. A câmera foca um porco sendo morto como um
espetáculo dantesco desagradável, dito pela médica; vai ao encontro da intimidade
dos personagens agoniados para mostrar a dor. É impossível não associar ao
inesquecível drama Nós Que Nos Amávamos
Tanto (1974), uma genuína obra-prima de Ettore Scola. Cantet traz o mar da
ilha para a visão do grupo e dos espectadores, para atenuar o olhar e as respostas
dos amigos que ficaram tanto tempo distantes. Há uma sólida ternura ao longo da
história contundente de amores perdidos, empregos truncados, projetos
interrompidos e amizades desfeitas involuntariamente. Mas há uma luz no fim do
túnel com o recente anúncio do fim dos embargos econômicos.
A fotografia de Diego Dussuel é um artifício para imprimir
um tom quase documental ao desabafo do entardecer ao amanhecer, com a segura
direção de Cantet, ao montar um elenco primoroso, prevalecendo o todo, sem um
destaque ou fracasso individual, pelo espírito, alma e coração empenhados nos
personagens em reavaliar o passado, sem oscilar, com muita raiva, amargura,
alegria e compaixão, para dar uma sensível e sutil naturalidade aos fatos que
desfilavam. A manutenção da língua local deu autenticidade para capturar o
peculiar humor e a ternura dos cubanos. Um painel fascinante de um filme
realizado com maturidade de um retrato melancólico pela decepção, como uma crônica
reconciliatória das ilusões perdidas. Desde já se credencia a ser um dos 10
melhores de 2015.
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