sexta-feira, 9 de abril de 2021

Druk - Mais uma Rodada

Limites do Alcoolismo

Thomas Vinterberg e Lars von Trier, no mês de março de 1995, em Copenhague, lançaram um manifesto cinematográfico internacional denominado Dogma 95. Era um movimento estético, exatamente no centenário de nascimento da sétima arte. Começa com a publicação de dez regras de ética e valores, conhecidos como voto de castidade, tendo como objetivo principal o resgate de um cinema mais realista e menos comercial, anterior à exploração industrial de Hollywood. Em sendo aprovado pelos seus membros, receberia o Certificado Dogma 95. Foi a mais inventiva escola, depois da celebrizada Nouvelle Vague. Von Trier dá a partida com Os Idiotas (1998), segundo filme do movimento, depois vem Dançando no Escuro (2000), premiado com a Palma de Ouro em Cannes como Melhor Filme. A consagração vem com o fabuloso Dogville (2003), que tem sequência com Manderlay (2005), também em grande performance e fiel ao seu estilo proposto de um cinema mais simples, sem muita luz artificial e com cenários externos exclusivamente. Mas foi Vinterberg que recebeu o selo nº. 01 de certificado Dogma 95 para seu filme Festa de Família (1998), que mostra uma sessão de terapia coletiva, revelando ressentimentos e aflorando fortes revelações num aniversário. Fracassou com Dogma do Amor (2003), e melhorou com Querida Wendy (2005).

O diretor dinamarquês retornou com vigor e todo fôlego em Submarino (2010), deixando definitivamente para trás o movimento que criou, numa trama bem urdida de dois irmãos com grandes recordações e feridas abertas de uma infância conturbada pela tragédia da perda do caçula e, sobretudo, pela convivência diária com a mãe alcoólatra e agressiva com seus dois filhos maiores. Símbolo de um lar desestruturado e destroçado pelo vício e a morte rondando permanentemente. Realizou depois a obra-prima A Caça (2012), contundente reflexão sobre os preconceitos contemporâneos e da pressão de uma casta dentro de uma comunidade conservadora sobre os direitos e princípios morais do indivíduo acuado e liquidado moralmente para sempre, como se depreende da última cena da caçada no mato de um homem acusado injustamente pela prática de pedofilia. Agora, o cineasta retoma a temática do alcoolismo na excelente comédia dramática Druk -Mais uma Rodada, em cartaz na Net/Claro Now, Apple TV, Google Play e You Tube, ao abordar a história de quatro professores com diversos problemas em suas vidas. Eles irão testar a teoria de um estudo sobre a necessidade do corpo humano viver com um teor alcoólico de 0,05 em suas correntes sanguíneas para ter mais prazer, relaxar, e ter melhor desempenho nas aulas.

Com bom humor mesclado por algumas crises existenciais, o enredo irá conduzir para que eles passem a beber diariamente uma taça de vinho ou de espumante; depois tomam cerveja e vodka. O consumo das doses aumenta cada vez mais até se tornarem potenciais alcoólatras, no limite tênue do equilíbrio que passa para o descontrole total e evolui para problemas que estavam submersos, chegando à violência doméstica para explodir na crise conjugal, a pouca relação com os filhos do protagonista e fio condutor da trama, Martin (Mads Mikkelsen, o premiado ator do filme A Caça no Festival de Cannes, novamente teve uma atuação antológica, sem precisar falar muito, se expressa pelos olhares e os movimentos corporais). Ele está num dilema ao ser colocado em xeque nas aulas de História, mais uma razão para buscar energia nas bebidas para os novos desafios dos alunos. Os outros três colegas irão lhe dar apoio na nova teoria do álcool: Nikolaj (Magnus Millang) leciona Filosofia e aparentemente é um pai dedicado à esposa e os três filhos; Toomy (Thomas Bo Larsen) é um sensível instrutor solteiro de Educação Física que sempre protege o garotinho de óculos nas partidas de futebol; já Peter (Lars Ranthe) ministra aulas de música no coral. Os atores não encenaram bêbados, mas tomaram grandes porres nos ensaios antes das filmagens, para ar um realismo natural pós-embriaguês.

Indicado pela Dinamarca ao Oscar de Melhor Direção e Melhor Filme Internacional, a realização cria uma experiência dos personagens e retrata os limites do alcoolismo com suas próprias vidas e o poder do vício nesta história escrita pelo diretor em parceria com Tobias Lindholm. Foi baseada em relatos da filha do cineasta sobre uma brincadeira de estudantes que correm em torno de um lago e competem sobre quem bebe mais. Ida morreu aos 19 anos num acidente de carro provocado por um motorista distraído que dirigia olhando o celular. Ela estrearia como atriz neste filme, mas a tragédia ocorreu no quarto dia de filmagens. Vinterberg pensou em cancelar toda a produção, mas foi convencido a continuar para homenagear a filha que certamente gostaria de ver o filme pronto, tendo em vista que ela deu a ideia do projeto na abordagem dos reflexos da pressão da sociedade focando os dramas existenciais de professores com suas vidas entediadas num cotidiano que beira melancolia. O realizador menciona na trama Roosevelt e Churchill que afirma: “eu não bebo antes do café da manhã”, ambos perdem para Hitler numa brincadeira paradoxal sobre caráter numa aula de História. Outros líderes mundiais são citados com atitudes suspeitas de embriaguez em apresentações e discursos, entre eles estão Boris Yeltsin, Clinton e Brejnev.

O longa tem um desenrolar equilibrado entre os benefícios do álcool, sem fazer apologia, como na cena em que o aluno bebe moderadamente para relaxar e ser aprovado contrastando com o personagem que sofre os efeitos nefastos da bebida e vem a falecer por ter a saúde debilitada. A diretora do estabelecimento de ensino que faz uma reunião para tratar da suposta embriaguez de alunos e seus mestres é outro ponto de lucidez que o cineasta enfatiza em uma das cenas para afastar alguma tendência de enaltecimento das bebidas. Em outra cena, há a posição do psicólogo que critica o álcool em uso prolongado e seus efeitos devastadores. Os quatro amigos acabam por beber em demasia, dão show em casas noturnas, correm nas ruas até caírem. “Esse país só sabe beber mesmo”, diz a esposa de Martin. Embora não haja semelhança estética, mas apenas temática, pode ser comparado com Coração Louco (2009), de Scott Cooper, na trajetória clássica de derrotas de um cantor country, com uma vida desregrada pelo alcoolismo e em decadência iminente. Também há alguma semelhança temática com o clássico americano Farrapo Humano (1945), com a qualificada direção do mestre Billy Wilder, em que Ray Milland protagonizou aquele triste espetáculo dantesco de uma pessoa desmoronando.

A relação de amizade do quarteto docente nos remete para a inesquecível fábula filosófica A Comilança (1973), de Marco Ferreri, com Marcello Mastroianni, Ugo Tognazzi, Michel Piccoli e Philippe Noiret, onde quatro senhores entediados com a vida se trancam numa mansão com uma quantidade enorme de comida, planejam comer até morrer, mas antes combinam uma orgia sexual com prostitutas. Druk -Mais uma Rodada tem um epílogo catártico da formatura celebrada por jovens tomando espumantes dentro de um caminhão que irá contrapor com a esquecida esposa suplicando o retorno do marido vacilante entre a lucidez e o desatino mental que opta pela liberdade da escolha das atitudes que culmina no voo para o mergulho simbólico na águas do rio. São apontadas as consequências trágicas do final em aberto de uma realização imparcial sem proselitismos ou apologias. Deixa o recado sobre o equilíbrio e os limites escassos da bebida diante dos excessos, abordando tanto o lado bom deste desafio da bebida contrastando com o pior cenário possível. Eis uma singular comédia dramática que deixa na sua essência ensinamentos para o espectador refletir, passando longe do politicamente correto.

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