quarta-feira, 24 de março de 2021

Agente Duplo

Abandono e Solidão

Agente Duplo é o digno representante do Chile no Oscar deste ano e, pela primeira vez, disputa a categoria de documentário, sendo aclamado pelo público e pela crítica com mais de 90% de aprovação no site Rotten Tomatoes, podendo ser visto na Globoplay. Escrito e dirigido pela documentarista Maite Alberdi, conhecida até agora em seu país por temas de pouca relevância, sem atrair significativamente as atenções dos cinéfilos. Entre suas realizações estão Hora do Chá (2014), Los Niños (2016) e Rito de Passagem (2016). Finalmente alcança o reconhecimento mundial com esta fascinante obra de exercício metalinguístico em seu formato, que transita do documentário, ideia inicial embrionária da produção e da direção, para tornar-se na realidade uma comédia dramática com pitadas de espionagem e filme-denúncia. Ganhou o prêmio do Público no Festival de Cinema de San Sebastián e foi finalista no Prêmio Goya. A cineasta, premonitoriamente, em entrevista ao jornal El País, antes de ser indicada como finalista pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, profetizou: “Este é um marco para um documentário chileno”. A mais recente produção premiada dos chilenos foi com o drama Uma Mulher Fantástica (2017), de Sebastian Lelio, na categoria de melhor filme em língua estrangeira, sobre a violência contra uma mulher transgênero. Em 2013, No, de Pablo Larraín, concorreu, mas não obteve premiação.

No prólogo da realização, a diretora coloca Rômulo Aitken, proprietário de uma empresa de detetives, fazendo uma minuciosa seleção para encontrar o perfil mais adequado para o idoso que fará o papel de um agente espião, que será infiltrado sob a farsa de uma internação comum no Asilo São Francisco. O objeto da investigação é a desconfiança de maus-tratos e negligência dos funcionários no interior da casa de repouso, diante de uma suspeita da filha de uma senhora, suposta vítima. Sergio Chamy, um viúvo de 83 anos, foi o vencedor da inverossímil tarefa de um emprego temporário por três meses, porém lhe soa como uma libertação dos filhos e netos neste período, além de esquecer o luto e as lembranças da esposa falecida recentemente. O contratado deverá executar as atividades de um detetive particular para espionar, devendo fazer relatórios diários, adaptar-se ao vídeo do Facebook e manusear uma caneta com câmera digital num óculos. Tecnologias estas que são distantes de seu real mundo da presença física, mas indispensáveis para obter dados e informações sigilosas com o auxílio da internet.

O protagonista se torna venerado dentro do lar, logo conquista o posto de “Rei do Baile” durante uma festa de aniversário, sendo cercado por grande parte das mulheres, que são maioria no recinto. O espião narra em seu relatório com dor e melancolia o cotidiano de várias internadas que perderam o sentido da vida. Lá, encontra uma senhora que faz pequenos furtos; outra, que se apaixona e quer casar para refazer a vida com ele; tem a que recita poemas; a idosa que está perdendo a memória por uma doença degenerativa, que sentia a falta de visitas dos familiares e necessita de fotografias dos parentes próximos; também a que fala com a mãe imaginária por telefone; outras ficam no portão externo à espera de visitas que nunca acontecem. Finalmente conclui sua exposição reveladora dizendo que a suposta vítima de maus-tratos nunca recebeu a visita da filha contratante das investigações, ou seja, está esquecida literalmente, carente e solitária. Uma autêntica denúncia de abandono que se materializa com contundência advinda da triste frieza familiar e o egoísmo latente que salta aos olhos do agente que fez pequenas amizades naquele ambiente de tédio retumbante num cotidiano de ausência de afeto de filhos e netos.

A gaúcha Ana Luiza Azevedo, no drama Aos Olhos de Ernesto (2019), colocou magnificamente os traumas das perdas e dissabores do envelhecimento com muita sutileza e sensibilidade para uma profunda reflexão. Fez um mergulho nos confrontos e adversidades da irônica "melhor idade" e o espectro da solidão melancólica. Com dignidade e algum otimismo também se debruçou sobre a temática o diretor argentino Daniel Burman em Dois Irmãos (2009), enfatizando o afago final das águas do rio que serviam de cenário para o domicílio daquelas idosas criaturas inertes, distantes e sobreviventes do universo familiar. Através da beleza estética de Laís Bodanzky, realizou o estupendo drama Chega de Saudade (2008), tendo como cenário um clube de São Paulo com suas diversas histórias numa noite de baile, aflorando as ilusões e desilusões, perdas e ganhos, amor e traição, para sintetizar tudo num imenso isolamento social. Pelo olhar de Marcos Bernstein, vimos o ótimo O Outro Lado da Rua (2004), refletindo a dor da solidão da idade, reavaliando suas vidas e descobrindo novos rumos. Em GranTorino (2008), de Clint Eastwood, foi abordada as perdas hereditárias e os valores dos descendentes colocados em xeque de forma satisfatória pelo decadente herói de guerra. Já Alberdi faz um painel com nuances importantes dos idosos solitários desprezados nos asilos transformados em depósitos, como fio condutor para o desfecho do processo das emoções e a vazão para uma grande sombria existência humana alicerçada sobre o angustiante tema universal da terceira idade dos esquecidos pelos familiares.

A dosagem de humor está no ponto certo e torna adequada esta obra minimalista para retratar com equilíbrio o drama existencial daquelas pessoas mergulhadas em uma solidão devastadora pelo abandono nas clínicas geriátricas. “Meu filme de detetives é na verdade uma desculpa para ver um assunto que, sem essa desculpa, talvez ninguém visse”, afirma a diretora na mesma entrevista, que depois arremata: "Antigamente, não era comum ter parentes nesses locais. Os avós moravam com os filhos e netos. Mas hoje moramos em casas menores, onde não há espaço para eles muitas vezes". Informa a documentarista que embora se sentisse culpada por ter enganado a direção do asilo ao dizer que seu filme era uma ficção sobre a velhice, não houve maiores problemas posteriores na montagem, tendo em vista que o objetivo era retratar a importância desses asilos no cotidiano das famílias. O documentário que deveria ser sobre as más condições da casa de repouso, acaba por se transformar em uma eloquente denúncia de abandonados na velhice pelos parentes, por serem pessoas completamente descartáveis. Embora as pétalas de uma rosa caindo sobre um riacho indiquem um ar de romantismo poético com suspiro de uma minguada esperança, há o contraponto das idosas cochilando entediadas num banco ao entardecer. Agente Duplo revela admiravelmente as imagens de vidas combalidas que despertam compaixão num cenário desolador pela imensurável solidão, perda da lucidez, até o embate entre vida e morte, diante das emoções existenciais sobre o progressivo fim de seres humanos abandonados.

Nenhum comentário: