sexta-feira, 19 de março de 2021

Aznavour por Charles

Grande Legado

A cineasta belga naturalizada francesa, Agnès Varda, deixou um legado imensurável, com realizações abrangentes e muitas reflexões com críticas pontuais à sociedade e seus preconceitos em Varda por Agnès (2019). Não foi somente um documentário autobiográfico testamentário, mas também um mosaico do passado, presente e do futuro, onde aparecem intercalados personagens sofridos por uma sociedade cruel com a humanidade. Com alguma similitude de temática de visão do mundo, o documentário Aznavour por Charles, que pode ser visto na Net/Claro Now, depois de ter estreado no cinema, acabou sendo mais uma vítima da pandemia. O próprio lendário cantor e compositor mundial celebrizado pelo público e pela crítica pelas suas canções marcantes filmou sua vida e como a desfrutou durante sua existência. Até o dia em que mostrou o material que capturou ao longo de 34 anos para o cineasta e amigo Marc di Domenico, que ficou impressionado com as imagens. Do material doado do diário cinematográfico, resultou montado 83 minutos. A câmera era o fiel guardião para os registros do artista, pois gravava tudo que via por onde andava, tais como os amigos, seus amores e suas dificuldades tediosas pertinentes.

A história dos registros começou em 1948, quando a grande amiga Edith Piaf (1915-1963), já famosa por La Vie en Rose, presenteou Charles Aznavour (1924-2018) com uma câmera Super 8, ainda desconhecido da maioria das pessoas, que se tornou um bem particular essencial e nunca mais a largou. Varda tinha uma trajetória dedicada ao cinema, fotografia, artes visuais e o companheiro de todas as horas Jacques Demy como elementos de amor e paixão. Aznavour filmou não só sua vida, mas o dia a dia por onde passava com seus shows no Marrocos, na extinta URSS, Ilha de Capri, Japão, China, África e as reminiscências buscadas na Armênia, a qual presta justa homenagem. Os pais do protagonista eram da geração de armênios nascidos no exílio, neto de sobreviventes do Genocídio Armênio, massacre ocorrido de 1915 a 1923, com uma estimativa de dois milhões de pessoas assassinadas pelas autoridades otomanas. Um acontecimento histórico citado e ilustrado com flagrantes análogos pelos países em que o artista passou ao longo da vida. No filme, além da modéstia revelada nas imagens, menciona a dor pelo filho de 25 anos que faleceu tragicamente. Fatos importantes como o modo fascinante no semblante do seu grande amor, a sueca Ulla, com quem se casou numa cerimônia em Las Vegas e os registros do casal de filhos brincando são cenas marcantes entre som e imagem.

Teve uma carreira de 70 anos e mais de mil canções escritas com participação em dezenas de filmes, inclusive menciona agradecido e carinhosamente a amizade com o cultuado cineasta François Truffaut, ao ter a oportunidade de fazer aparições breves em algumas das realizações do mestre francês. Embora tenha convivido com celebridades, o foco de sua câmera era filmar pessoas anônimas, desde fãs nas filas do teatro até meninos jogando futebol em campinhos de várzea sem grama. “Era esse o propósito do documentário: mostrar o seu ponto de vista como ‘homem’ e não ‘estrela’. Ele captura a natureza humana, não as aparências. Charles filma ruas movimentadas, agitados passeios de barco e, mesmo assim, ele transparece através do que escolheu retratar”, diz o cineasta em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. Domenico afirma na entrevista que Aznavour não participou da escolha dos textos e das imagens da obra, mas que o realizador e o filho do cantor, Misha, convidaram o ator Romain Duris para narrar em off o documentário. Retratou com certa melancolia através de uma visão global os prismas de uma exposição dos dilemas universais apontados, ainda que timidamente e sem um aprofundamento maior, mas com a altivez do artista sempre diligente aos percalços que rondam a humanidade e suas transformações.

O longa é uma boa mostragem das observações feitas no cotidiano, a vida boêmia, os sonhos de juventude, a vida de um neófito cantor, a miséria por muitos lugares que passou, dos romances que marcaram os amores conquistados e perdidos com grandes paixões que iriam inspirar as letras de suas antológicas canções que viraram sucessos incontestáveis, tais como: La Bohème, Emmenez-moi, Hier Encore, She, For me e Formidable. “Embora não deixe de ser autobiográfico, pois são documentos de momentos presenciados por ele, o conjunto de filmes feitos por Charles oferece uma visão poderosa e original sobre ele mesmo”, diz na mesma entrevista o documentarista. Eis um filme sensível, delicioso e leve sobre o sentido existencialista, seus ensinamentos reflexivos e emoções com fino humor decorrente de uma vida significativa deste apaixonado por pessoas e sua essência humana colocada na tela. Já no prólogo, relata sua abertura de olhos, coração e mente para o que acontecia fora de Paris, ao ler o best-seller Viagem ao Fim da Noite, do controvertido escritor conterrâneo Louis-Ferdinand Céline. Aznavour por Charles é um admirável filme que contribui sobre a arte da criação musical com reflexos na cinematografia. Um documentário criado com simplicidade, amor, dedicação e dignidade sobre o emblemático artista autobiografado da cultura francesa, que gira em torno dos acasos e das situações genéricas e peculiares das idiossincrasias da vida através de suas canções inesquecíveis e seu olhar atento para a realidade do planeta.

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