Destinos Marcados
O cineasta Paul Greengrass realiza com grandes méritos seu primeiro western esbanjando sobriedade e firmeza neste magnífico Relatos do Mundo, baseado no livro de Paulette Jiles, no qual dirigiu e escreveu o roteiro em parceria com Luke Davies, que se passa no ano de 1870, pós-Guerra Civil nos EUA, tendo por consequência muita violência e o racismo reinante no Texas. Tem em sua filmografia vários longas de sucesso, entre os quais se destaca Domingo Sangrento (2002), obra que o fez ser reconhecido no cenário mundial através de sua câmera frenética pelos movimentos constantes ao retratar o massacre de civis pelas tropas inglesas na Irlanda, em janeiro de 1972. Também realizou A Supremacia Bourne (2004), O Ultimato Bourne (2007), e com o Capitão Phillips (2013), dirigiu pela primeira vez o astro Tom Hanks, que agora encarna de maneira irretocável o capitão Jefferson Kidd, personagem central da trama. A grande surpresa positiva do filme ficou por conta da jovem Helena Zengel, que interpreta impecavelmente a determinada a selvagem garotinha alemã Johanna Leonberger, de 10 anos. Embora lançado nos cinemas pela Universal no ano passado, agora está disponível na plataforma da Netflix.
A história é contada com bons artifícios já conhecidos no Velho Oeste, porém sem abusar de tiros e perseguições recorrentes em obras menores. O protagonista possui interessantes argumentos para sua saga numa época de tempos conturbados pela discriminação racial. Lutou em duas guerras, tendo perdido sua tipografia que editava um informativo de notícias jornalísticas. Sua missão atual é viajar pelo sul dos Estados Unidos e fazer leituras dos acontecimentos ocorridos no mundo encontrados nos jornais para pessoas submissas com dificuldades de acesso à realidade. São homens que trabalham para os patrões poderosos de minas de carvão e dos abatedores de animais que não respeitam o mínimo de normas que garantam o bem-estar dos empregados. Em meio à sua jornada, o capitão e ex-combatente aceita uma proposta para levar a menina até seus familiares, após ela ter seus pais mortos num ataque a tribo Kiowa. Ela foi criada com o dialeto indígena e tem dificuldades de comunicação, e por isto, apresenta um comportamento hostil. O vínculo com Kidd é inevitável, como uma relação de pai e filha, que irá forçar os dois a lidarem com as escolhas que terão de tomar no futuro.
O faroeste tem como ingredientes significativos a belíssima trilha sonora de James Newton Howard, sendo executada com perfeição como mola mestra e condutora do enredo, ditando o clímax das cenas do prólogo como no desenrolar até o epílogo. Há o respaldo de uma maravilhosa fotografia assinada por Dariusz Wolski, que rememora imagens lindas realizadas a céu aberto advindas dos antigos westerns de beleza plástica arrebatadora. Não há como esquecer a cena ameaçadora da tempestade de areia que aos poucos se dissipa e vira apenas poeira, colocando os personagens perdidos novamente em contato com a dura realidade e o reencontro com a luz solar que irá dar um novo rumo aos seus destinos. Para alguns críticos, Relatos do Mundo é uma bela homenagem a John Ford e sua obra-prima Rastros de Ódio (1956), tendo a exemplar atuação de John Wayne, com suas variações inerentes dos antigos clássicos para não deixar desaparecer este gênero ainda pouco compreendido, mas que jamais será esquecido por realizadores competentes e engajados na sua renovação e na sua manutenção como arte na essência. O realizador não buscou apenas uma refilmagem da obra de Ford, mas sua intenção era realmente fazer um grande tributo ao inesquecível mestre do western. Em momento algum se afastou dos clássicos recorrentes, mas ao filmar no tradicional cenário do Velho Oeste adere ao tom e a dinâmica cinematográfica que embalou por muitos anos aficionados deste gênero. Cada detalhe, movimento da câmera, luz, fotografia, as tabernas, os julgamentos, as execuções, e o figurino estão harmonicamente distribuídos com primazia e colocados em seus lugares exatos, pontuais e com fidelidade.
Relatos do Mundo tem muitas semelhanças com Bravura Indômita (2010), o exemplar remake dos irmãos Ethan e Joel Coen, no qual também a trama é conduzida pela ótica de uma garotinha de 14 anos que se junta a um agente federal justiceiro, também por uma relação de filha e pai, buscará vingar a morte de seu pai por um bandoleiro famoso. Greengrass revisita o gênero dos filmes do Velho Oeste com o intuito de repetir passos e situações para reforçar as transformações do gênero, e consegue com sobras, tendo vida e luz própria, diante de sua imaginação bem acima da média de diretores medíocres que pululam o universo cinematográfico. Basta observar seu estilo equilibrado no desenrolar da história, sem utilizar os meios para tiroteios forçados ou balas perdidas por tudo quanto é canto. Segue o melhor estilo dos grandes clássicos, no qual nos remete para aguçar as lembranças do magistral Os Imperdoáveis (1992), de e com Clint Eastwood, onde encontramos uma gama de mocinhos velhos, decadentes, sendo que um deles com apenas um olho, também tendo que cumprir a última missão. Também lembra Rio Vermelho (1948), de Howard Hawks e Arthur Rosson; além do já citado pelas referências em Rastros de Ódio e No Tempo das Diligências (1939), ambos de John Ford, com construções fantásticas de personagens; mas como esquecer Meu Ódio Será Sua Herança (1969), de Sam Peckinpah, ou ainda Os Brutos Também Amam (1953), de George Stevens.
Embora com um desfecho até certo ponto previsível, nem tudo é bonito no fascinante cenário, como se observa na acolhida fria dos tios de Johanna na cena do reencontro e a revolta da menina silenciosa ao ser presa por um dos pés com uma corda na árvore. Uma alegoria do ranço racista ainda imperante naquela comunidade conservadora com valores ultrapassados. Os resquícios de um sistema que ainda segue com os velhos tabus sem abrir mão da liberdade, especialmente das mulheres, mesmo que seja um ente do mesmo sangue, porém visto com desdém e com ausência de carinho e fraternidade. Prevalece aprisionar quem se rebela. Os laços e vínculos irão ao encontro de pessoas desconhecidas como um ato de harmonia pela aproximação casual de civilizações brancas e indígenas contrapondo com o racismo aos negros em conflito permanente. A revelação no epílogo daquelas pessoas desconhecidas sobre seus destinos fará com que também sintam o tempo passar rapidamente. Como bem fica marcado no último ato registrado na tela, há um sopro de lucidez para o recomeço de novas vidas que estavam vendo um ciclo se escoando, que irá conduzir para a reflexão no final dos destinos marcados, como decorrência dolorida da solidão e da sombria rejeição familiar, num comovente desfecho pela emoção digno de um admirável faroeste.
Um comentário:
Bela apresentação. Onde posso assistir
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