Os Sabores do Palácio
Mais uma ótima surpresa no Festival Varilux de Cinema
Francês deste ano, com o viés da gastronomia, faz uma abordagem suculenta, mas
com um molho bem amargo na agridoce comédia Os
Sabores do Palácio, dirigido por Christian Vincent, que tem em sua
filmografia entre outros longas A
Discreta Intimidade de Uma Mulher (1990), A Separação (1994) e Quatro
Estrelas (2006).
A trama aborda a história da respeitável chefe de cozinha Hortense
Laborie (Catherine Frot) que reside em Périgord e surpreendentemente é
convidada e já nomeada para ser a responsável pela cozinha particular do presidente
da República, sugerido no longa como François Mitterrand (Jean d’Ormesson) no
Palácio do Élysée. Inicialmente, ela se torna objeto de inveja, sendo malvista
pelos outros cozinheiros do local, especialmente o chefe da cozinha geral. Com
o tempo, no entanto, Hortense consegue mudar parcialmente a situação, traz para seu lado o cozinheiro subchefe Nicolas Bauvois (Arthur Dupont). Mas mesmo
estando atenta aos dissabores dos colegas, como intrigas, fofocas e inveja, afinal
os bastidores do poder estão cheios de armadilhas, sua resistência fraqueja e
os valores são outros.
A burocracia emperra no palácio e o presidente nunca se
manifestava sobre a qualidade da comida, tendo Hortense que forçar uma situação
inusitada para aproximar-se, já os assessores tinham trânsito livre. Com o
desmembramento das cozinhas, houve uma ciumeira geral e o chefe da central não a
via com bons olhos. Mesmo com o amparo de Nicolas e também do chefe de
cerimonial David Azoulay (Hippolyte Girardot), as coisas não iam bem.
A grande sacada da comédia é o roteiro que tem duas
histórias concomitantes. Não há uma sequência de planos, pois além dos
acontecimentos no palácio por três anos de atividades, mescla-se com sua reclusão
numa ilha deserta que serve de base para pesquisas na Antártida. Sua comida e
seu trabalho são reconhecidos e lá se sente importante e reconhecida
literalmente. E passa para o espectador algo mais para ficar com água na boca
ao vê-la separando ingredientes, salteando legumes, montando e decorando os
pratos. Já a cena da despedida, ao findar seu autoexílio é comovente. O carinho
e o amor dos pesquisadores tocam-lhe no fundo da alma. Num ambiente de
simplicidade e sensibilidade humana, o âmago é fisgado com sutileza e as
lágrimas tropeçam nos soluços como agradecimentos sinceros.
Se de um lado há um puro reconhecimento que viceja, de outro
a inveja polvilha como erva daninha, contrastando com a solidariedade
humanística de pessoas simples e de bem com a vida, longe da pompa reinante
palaciana e desmesurada de rituais desgastantes que sufocam e tiram o ar puro
das entranhas da chefe, mais para uma estranha no ninho dentro de uma retórica
gastronômica de opulência. Lá é mais uma e seu trabalho é ultimamente questionado
pelos médicos do presidente com uma dieta que refoge de sua criatividade. Bate
de frente com o administrador e suas contas com números contábeis infindáveis e
suspeitas de esbanjamento com ingredientes específicos. Até as trufas frescas preferidas do presidente e
recém-colhidas no pomar são alvo de um interrogatório inverossímil.
O longa é reflexivo e questionador sobres valores e a ética
profissional, mas sua analogia com filmes de gastronomia são bem pertinentes, assim
como Chocolate (2000), de Lasse
Hallström, com Juliette Binoche arrasando; e Como Água para Chocolate (2002), de Alfonso Arau; e o melhor de
todos A Festa de Babette (1987), de
Gabriel Axel, retratando o poder do deleite gastronômico com a transformação de
Babette, que parece voltar à vida, mesmo com o esforço e o trabalho necessários
para preparar e servir o banquete. Também os convidados entram numa metamorfose
e chegam ao final do banquete como pessoas diferentes e mesmo melhores que
antes, tendo no espectador o convencimento que é possível a felicidade sem
pecado, através de um prazer sem culpa.
Os Sabores do Palácio traduz com dignidade a satisfação de Hortense cozinhando e tem-se a certeza de que é o que mais lhe agrada fazer. Um entusiasmo contagiante e apaixonante pela culinária, certamente reflete-se no resultado. Os pratos são mais que apetitosos, tanto os solenes festins palacianos, como os quitutes da ilha de pesquisa, dando sensações e prazeres pelos olfatos, táteis e visuais nesta fabulosa comédia dramática gastronômica sobre a inveja, solidariedade, burocracia e o reconhecimento para a satisfação pessoal.
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