terça-feira, 16 de março de 2010

Tudo Pode Dar Certo

















Mordaz e Irônico

O 6º. Festival de Verão do Rio Grande do Sul traz grandes filmes inéditos no País, porém em especial contemplou os gaúchos com a primeira exibição nacional do magnífico Tudo Pode Dar Certo, última realização de Woody Allen, produção de 2009.

Seus últimos trabalhos ficaram bem aquém de sua capacidade de construção de um cinema voltado para as inquietações e neuroses do dia a dia. Vicki e Cristina em Barcelona (2008) decepcionou quase que totalmente, por ser insosso e sonolento, salvando-se tão somente Penélope Cruz. O penúltimo foi O Sonho de Cassandra (2007), um pouco melhor, com alguma graça e finesse. Já o antepenúltimo longa foi Scoop- O Grande Furo (2006) com certa dose de ironia, era muito irregular e sucumbiu. Nada se compara com Zelig (2003), uma das obras-primas de Allen, assim como outras grandes realizações foram Dirigindo no Escuro ( 2002), Trapaceiros (2000), o último filme decente foi Ponto Final- Match Point (2005). Há, entretanto, o soberbo, talvez o maior filme do velho mestre A Rosa Púrpura do Cairo (1985), naquela que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da tela e indo ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a película, para fugir do martírio de sua vida cotidiana na época da Grande Depressão dos EUA. Há um forte relacionamento afetivo com o personagem fictício. Realidade e ficção se misturam e a garçonete passa a ter uma nova perspectiva de vida. Insuperável pela magia e pela beleza plástica deste fabuloso filme.

Já em Tudo Pode Dar Certo, o diretor não atua mas escolhe com perfeição seu alter ego como Boris Yellnikoff (Larry David), no papel do velho rabugento e neurótico, que tem por hábito insultar e humilhar seus alunos de xadrez, típico morador de Nova Iorque, que abandona seu estilo de vida com os amigos, buscando na boemia uma existência mais complexa, acaba por encontrar por acaso uma garota oriunda do Mississipi, Melodie (Evan Rachel Wood) que bate em sua porta, após a ruptura com os pais esquizofrênicos pelas maluquices e pseudos moralismos. Refugia-se na casa de Boris e o leva à loucura, pela insistência de um relacionamento fadado ao fracasso. O pai (Ed Begley Jr.) é um fracassado no amor e custa a se encontrar sua identidade sexual adormecida por anos, já a mãe (Patrícia Clarckson) tem suas fantasias liberadas somente após encontros diversos na velha Nova Iorque, redentora dos que vivem à sombra de um falso conservadorismo e de uma moral caótica e ultrapassada.

Woody Allen está de volta à velha e inspiradora metrópole, traz junto toda sua ironia fina e corrosiva, levando à plateia a delirar, quando afirma ser Jesus um gay, explicando ser um grande decorador da natureza. Sobra para todo mundo, para os judeus, os negros, lésbicas, pederastas enrustidos, moralistas, enfim, nada fica de pé, em sua reflexão da existência humana e do porquê de continuar vivendo. O suicídio tentado duas vezes é a síntese clara do fracasso do existencialismo e o encontro com a mediunidade de uma mulher espírita que o leva para as soluções desencontradas carecedoras de uma resposta dos deuses da vida. O pessimismo está presente na visão de Boris, com cores fatalista, bem como a presença inconstante da hipocondria e dos pânicos noturnos, assim como cantar o clássico Parabéns a Você sempre que lava as mãos, demonstrando toda sua inquietude e divergência do mundo dos chamados normais.

A trajetória de Boris como o único ser capaz de compreender as aspirações truncadas das pessoas, bem como o caos do universo são as molas mestras daquele homem reduzido e coxo de uma perna, reflexo dos anos e das frustrações colhidas durante sua existência. Não chega a ser um mal-humorado, mas fica evidente a mágoa com a vida e os prazeres tolhidos, deixando-o impotente para a vida sexual, captadas de algumas tiradas irônicas e mordazes com os amigos e a confissão direta para aquela jovem fragilizada e traumatizada pelo relacionamento com os esquisitos pais.

Tudo Pode Dar certo satiriza e ironiza a vida, com a elegância e a o modo sutil de fazer cinema de Allen. O diálogo direto com os espectadores levam a reinvenção já abordada no A Rosa Púrpura do Cairo, com toda a genialidade dita pelo próprio alter ego Boris num roteiro enxuto e elaborado com exatidão, tendo como semelhança o relacionamento conturbado com a jovem menina, assim como o cineasta teve na vida real com sua enteada, mas realizada com aquele humor cáustico e sagaz, deixando vestígios de um passado eivado de perturbações latentes que agora são reveladas pela dor e a amargura, com as neuroses retornando para um presente repleto de ironias e inspirações eloquentes, ficam as marcas, mas isso não é o todo, apenas um resultado parcial e o exorcismo através da busca do significado existencialista.

Nenhum comentário: