segunda-feira, 16 de maio de 2011

Incêndios















Intolerância Nefasta

O canadense Denis Villeneuve é um diretor que vem tentando se firmar no cenário internacional desde Cosmos (1996); teve títulos ainda não traduzidos como Un 32 Août Sur Terre (1998), Polytechnique (2009); mas possivelmente seu melhor filme fosse Redemoinho (2000), antes da consagração definitiva com Incêndios, seu último longa de invejável performance.

A trama começa com a leitura de um testamento deixado pela mãe recém-falecida, dando a incumbência dolorosa para que os dois filhos descubram e entreguem uma carta para um irmão desaparecido e o pai do casal de gêmeos, tendo que voltar a um passado enigmático e triste, diante das poucas mostragens que lhes eram acenadas. Só poderão colocar a lápide na sepultura da mãe, após cumprirem suas enfadonhas tarefas documentadas expressamente em cartório. Villeneuve segue uma linha clássica de uma tragédia grega, mas sem se deixar levar por emoções exageradas ou choros incontidos, afastando sempre a pieguice. A mãe morta Nawal (Lubna Azabal) aparece em flasbacks contando a história, surgindo em diversos lugares marcantes de sua vida pretérita com passagens pelo terrorismo. Jeanne (Melissa Désormeaux-Poulin) é a filha que encarna na pele a própria mãe e segue literalmente seus passos tendo pouca ajuda do irmão Simon (Maxim Gaudette), que surge para ficar nas cenas finais, tendo um papel bastante participativo e decisivo.

Um longa-metragem sobre os dilemas, intolerâncias e devaneios das múltiplas guerras oriundas de divergências religiosas implacáveis, principalmente entre cristãos e muçulmanos, num cenário que tudo indica seja o Líbano, pelas constantes desavenças entre os povos irmãos, porém divididos pela nem tão singela opção religiosa, onde se estabeleceu um conflito interminável que gerou uma guerra civil de 1975 a 1990, num derramamento de sangue desnecessário se houvesse bom senso, mas que diante de um radicalismo exacerbado resultou em mais uma tolice absurda naquela região conflitada. As cenas vão sendo construídas meticulosamente, desde um início em que já se pressupõe que a violência está arraigada naquele lugar, como na estúpida execução pelos futuros cunhados do jovem ativista namorado da adolescente Nawal, mesmo que ela se encontrasse grávida, razão pela qual ao deixar seu testamento afirma que a infância é como se fosse uma faca na garganta a espreitar. Seu filho nasceu sob a égide do ódio e da barbárie, fruto de uma bestialidade descabida. Será o mesmo que receberá uma das cartas e o mundo implodirá aos seus pés, diante dos fatos e acontecimentos inusitados. Como numa ciranda o ódio que se transformou em vingança, restará numa dor que verterá e o possuirá por todo seu corpo e alma combalidos.

O cineasta tem na imparcialidade um de seus méritos incontestáveis, ao apresentar uma guerra sem vencedores, onde todos são vítimas, inclusive o próprio carrasco e torturador, que é fruto de um sistema de incivilidade das pessoas levadas por uma causa religiosa fanática. Está bem demonstrado na cena do ônibus incendiado pelos cristãos, com a conversão da mãe pela causa muçulmana, prevalecendo o instinto materno na convincente cena da execução, onde tenta proteger a criança inutilmente. O filme tem um nível dramático permanente do início ao fim, sem perder ou diminuir a intensidade, num final perturbador e revelador, onde há uma desintegração total dos valores, restando como cacos de vidros recolhidos de uma contundência devastadora e o epílogo se enquadra numa apoteose de arrasa-quarteirão.

O diretor critica implacavelmente a tortura, a guerra e os dogmas do fanatismo das religiões, sem fazer objeções ou preferências, num cenário que lembra em muito os filmes iranianos, com as longas sequências filmadas dos veículos nas estradas poeirentas, como na obra-prima O Gosto de Cereja (1997), de Abbas Kiarostami. Tanto pela coragem, como pela beleza plástica das imagens mesclada com a dor e o sofrimento dos três irmãos, a intransigência dogmática já viciada, todos vítimas de um sistema falido de vida e conduta, fazem de Incêndios uma obra maior e quase que inigualável na sua temática, inscrevendo-se desde já como uma das 10 melhores realizações passadas nas salas do Brasil neste 2011.

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