segunda-feira, 23 de maio de 2011

Homens e Deuses














Religão e Política

O longa-metragem Homens e Deuses com a brilhante direção de Xavier Beauvois foi o vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 2010. Premiado ainda com o César (o Oscar francês) para melhor filme, fotografia e ator coadjuvante para Michael Lonsdale. Baseado em fatos reais ocorridos em 1996, no interior da Argélia, onde um mosteiro com freis franceses em missão pacífica vive harmoniosamente com os moradores muçulmanos, é o alvo da intolerância religiosa e política daquele país africano em convulsão social.

De um lado, um governo truculento que acusa a França de imperialismo e responsável pelo atraso, pobreza e inferioridade de seus cidadãos- numa crítica velada e verdadeira-, sugerindo profeticamente a retirada imediata dos religiosos para salvar-lhes suas vidas, chegando ao cúmulo de proibi-los de prestar ajuda ou qualquer auxílio para os opositores enfermos. De outro lado, um grupo de manifestantes fundamentalistas islâmicos que procuram remédios e dinheiro no mosteiro, sem qualquer cerimônia, justamente na noite de Natal. Os oito monges que ocupam aquele lugar singelo entre os humildes, com o intuito de pacificação, logo se veem acuados na comunidade muçulmana pobre e carente de recursos, tendo no frei Luc (Michael Lonsdale, em atuação singular e irrepreensível) um médico atento para todos os momentos e com os problemas de saúde daqueles sofridos seres humanos sem assistência do governo.

A intransigência dos homens do governo e dos fanáticos islâmicos colocam em ebulição e põem fim na paz daquele lindo lugar prazeroso, onde está plantado o mosteiro no alto da colina, com uma vista deslumbrante servindo de cenário àquele lugar que mais parece uma pintura desenhada num lindo quadro pelo impressionista clássico Renoir ou o barroco europeu Rembrandt. O diretor é cáustico e não poupa sequer a cena da degola dos croatas pelos rebeldes islâmicos, sem dó nem piedade; como também a chacina dos insurretos na estrada poeirenta e perigosa, comandada pelo ataque e execução sumária dos homens do exército governante. O filme tem uma eloquência de cenas com uma transição invejável, tendo em Beavois uma segurança precisa, mantendo o suspense e a elaboração do roteiro sempre num tom de expectativa e com uma densidade poucas vezes vista nos filmes atuais, mais preocupados em apresentar as últimas inovações tecnológicas como a febre do 3D.

Uma cena marcante que deve ser ressaltada é a do helicóptero sobrevoando a casa religiosa com seu ronco ensurdecedor e atemorizante, mas direcionando a câmera aos freis que demonstram também serem humanos e revelam suas fragilidades, medos e anseios inerentes aos mortais, pois de deuses têm pouco, exceto a fibra e a crença como clamor de uma fé por uma luta inglória. Mas nada se compara com a cena da última ceia, talvez a mais bela filmada pelo cinema nas últimas décadas. O frei e médico Luc serve vinho a todos os companheiros religiosos e coloca uma fita cassete de O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, com a câmera percorrendo o rosto de todos os demais monges, fechando em close-ups um a um, inclusive no líder Christian (Lambert Wilson- de atuação estupenda) que deixa sua emoção contagiar o grupo, ao derramar lágrimas de sufoco, tensão e angústia, como uma redenção de amor ao próximo e arrependimento pelo pior que poderia acontecer ao som da música que toma conta do ambiente.

Fé e coragem são demonstrações que não faltam, apesar do final pessimista, mas revelador de uma a intransigência animalesca e verossímil com a estupidez dos homens, principalmente quando mistura-se religião e política, sem o menor escrúpulo ou abertura para um diálogo próspero. Homens e Deuses tem no seu formato inicial e o cenário a lembrança de O Nome da Rosa (1986), de Jean-Jacques Annaud, logo se afastando, deixando que o roteiro pela sua contundência e grau de maturidade estética e formal, fizesse deste um filme magnífico e comovedor com seus cantos gregorianos, como no epílogo pela sua fotografia radiante na neve com um nevoeiro cinza-claro, remetendo para o apocalipse dos homens numa alegoria da morte, como se estivesse aproximando-se tragicamente.

Este é um drama francês que se insere como um dos melhores da temporada, pela sua elegância ácida de filmar e na sensibilidade narrativa, contrastando com a intolerância de classes e o fanatismo religioso islâmico fundamental extremado, tentando decifrar pelas várias citações bíblicas como se o mundo estivesse de cabeça para baixo, como nos créditos iniciais prenuncia: “vós sois deuses, todavia morrereis como homens”. Porém, pregar o bem tem um preço caro e logo são aviltados, dando lugar para o ódio e a violência, ainda que a Bíblia e o Alcorão estivessem lado a lado na pregação das rezas. Fica o sacrifício pelo ideal da fé religiosa tentada como demonstração de amor.

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