O Passado
Outro aguardado filme que não decepcionou no Festival Varilux
de Cinema Francês foi o drama O Passado,
dirigido impecavelmente por Asghar Farhadi, que tem na sua filmografia o ótimo À Procura de Elly (2009), no qual
abocanhou o prêmio Urso de Prata no Festival de Berlim daquele ano. Com A Separação (2010) ganhou o Oscar de
melhor filme estrangeiro em 2012, Globo de Ouro e Urso de Ouro em Berlim, demonstrando
muita simplicidade, reflexão religiosa, filosófica, cultural e política nesta extraordinária
metáfora do regime ditatorial, de poucos ou quase nenhum direito, representado
simbolicamente pelo marido bancário, através do olhar desencantado pelas lentes
deste incrível cineasta iraniano.
Farhadi novamente mostra em seu sexto longa-metragem, que é
um diretor voltado essencialmente paras as coisas do cotidiano de seu país,
embora tenha filmado na França, bem distante de seu povo, não se afasta das
relações intrincadas e apresentadas com a tradicional naturalidade. Em A
Separação tinha a câmara na mão e muito barulho, nada de
silêncio e reflexões demoradas, típicas do dia a dia de Teerã. Não faz parte dos
conterrâneos do cinema que tinham como cenário o interior do Irã, predominando
o chão batido de terras poeirentas, onde se consagraram: Abbas Kiarostami com Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a
obra-prima Gosto de Cereja (1997), e
ainda O Vento nos Levará (1999);
notabilizou Mohsen Makhmalbaf com A
Caminho de Kandahar (2001); bem como Jafar Panahi em O
Balão Branco (1995) e O
Círculo (2000).
Neste filme a dramaticidade decorrente de uma crise conjugal
volta a ser explorada com muito talento e sensibilidade. Outra vez a ruína da
relação entre o marido iraniano Ahmad (Ali Mosaffa) e sua esposa francesa Marie
(Bérénice Bejo- ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes 2013), o
que o leva a retornar à Paris quatro depois de separados para assinar o divórcio. Ao voltar
depara-se com a mulher em um novo relacionamento, Samir (Tahar Rahi-
protagonista de O Profeta) é um homem
parecido com ele em quase tudo, até na paciência para lidar com as situações
críticas apresentadas pela destrambelhada Marie, embora tenha um confronto
direto com a filha dela Luci (Pauline Burlet).
A tensão estabelecida entre a filha com a mãe está ligada
diretamente ao novo romance desta pela reprovação da relação. O conflito
instalado trará muitas revelações do passado e feridas abertas sem cicatrização
serão removidas com crueza e uma sucessão de mal-entendidos serão colocados em
xeque para os personagens conviverem e discutirem as nuances marcadas pelo
tempo. A chegada de Ahmad irá aflorar alguns segredos guardados e jogados para
baixo do tapete, diante da maneira controvertida da mãe em conduzir os fatos
inusitados que vêm à tona. Há um grande imbróglio e trocas de acusações,
principalmente pela falta iminente de paternidade para as duas filhas de pais
diferentes daquela mulher perdida em seus sentimentos de poucos escrúpulos e
com um vazio existencial latente.
Há um olhar de interrogação e dúvida do esposo em vias de
separação sobre o futuro e as dificuldades que o levaram para romper o vínculo
matrimonial e voltar para seu país, bem ao contrário no cenário encontrado na
obra anterior, quando a esposa queria fugir do Irã, um lugar de liberdade
limitada ao extremo, em que as mulheres não passam de meras coadjuvantes e de
restritos direitos, porém de enormes obrigações, mas que a vontade maior era
levar para o exterior a filha adolescente. Nos dois filmes há uma grande
semelhança conceitual com a figura do marido que quer permanecer no Irã. A
observação é pela visão feminina, pois há entre os homens o sentimento
arraigado de permanecer em seu país para defender o sistema, enquanto isto as
mulheres querem ficar bem longe na busca da liberdade como forma de
independência.
O drama retrata um presente muito atual com verdades
irrecuperáveis para uma reflexão sobre a culpa que está registrada em cada
personagem, bem como o que não foi e poderia ser realizado com dignidade, diante
da interação estabelecida com o espectador. O diretor lança as dúvidas e não
radicaliza com nenhum personagem. É proposital quando ele muda o foco de Ahmad
para Marie, desta para Luci, repassando para Samir, depois para a empregada. A
emoção é bem contida com um tom derivando de uma situação peculiar como o
divórcio para a complexidade do enredo e dos personagens que se alinham em
conflitos insolúveis aparentemente.
O Passado é
decorrência de A Separação e há
muitos personagens em
comum. Não visa mostrar inocentes neste painel de erros,
culpas e arrependimentos, onde todos estão interligados nesta babel de
confrontos e acusações. Todavia, nem mesmo o que há como elementos fortes de
ligação justificam as atitudes que ficam à deriva como consequência de um
regime totalitário implantado como forma de subtrair ideias e manifestações
livres e com as angústias que os acompanham. A temática é consistente aos
planos intimistas do cineasta que se detém mais na abordagem moral e ética
familiar do que cultural neste confronto de questões. Assim, como também no
filme anterior que desenvolvia um argumento que dava importância às palavras
nos diálogos numa forma bem estruturada, neste repete-se o olhar realista para um
mundo em ruínas, inexistindo atitudes certas ou erradas, bem longe do
maniqueísmo, através de uma segura direção com um elenco impecável que dá
brilho nesta obra significativa no conteúdo e magnífica no contexto.
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