sexta-feira, 18 de abril de 2014

Festival Varilux Cinema Francês (Uma Relação Delicada)


Uma Relação Delicada

Uma das surpresas positivas do Festival Varilux de Cinema Francês deste ano é Uma Relação Delicada (título original Abus de Faiblesse), vencedor de melhor filme do Festival de Londres, dirigido pela veterana cineasta francesa Catherine Breillat, uma das mais importantes da França atualmente. Tem em sua filmografia 15 longas-metragens, numa carreira de quase 40 anos, entre os quais Sexo é Uma Comédia (2001), A Última Amante (2007), Barba Azul (2009) e o mais famoso é Romance (1999), ao celebrar a moda de incluir cenas de sexo explícito picantes em filmes de arte, utiliza inclusive um ator pornô para contracenar. Faz algo semelhante agora com o cantor de rap Kool Shen para contracenar com Isabelle Huppert.

Neste seu último longa, em que também assina o roteiro, de certa forma é um filme autobiográfico, diante da trama esquematizada, pois Huppert interpreta Maud, uma cineasta que sofre AVC e fica comprometida em seus movimentos físicos corporais. Tem uma atuação antológica por encarnar com humanismo e garra uma protagonista sequelada e retorcida nas mãos, pés e boca. Caminha com extrema dificuldade e está completamente desglamourizada, reforçada por uma construção dramática invejável ao passar para o espectador um realismo cênico admirável e singular.

O drama aborda a escolha de Maud por Vilko (Shen tem carisma e um desempenho impecável), um trapaceiro de celebridades na vida real e que conta na televisão as diversas bravatas sem arrependimento. Ela acredita cegamente que descobriu o ator ideal para seu próximo filme, já com um roteiro embrionário na cabeça. A diretora constrói uma relação inverossímil entre os dois, deixando que o empréstimo de dinheiro servisse apenas como um mote da trama. A ausência de sexo sem qualquer aproximação física representa o platonismo existente entre eles, o que remete para uma semelhança com Intocáveis (2011), de Eric Toledano e Olivier Nakache, na comovente adaptação para o cinema de uma história real de uma inesperada amizade genuína, entre um milionário tetraplégico e um ex-assaltante de uma joalheria, um imigrante do Senegal.

A improbabilidade da vinculação logo se caracteriza e se esboroa, através de um personagem hipnotizador, que faz a ficção tornar-se realidade. Na comédia de Toledano e Nakache há um componente otimista, o que não ocorre no drama de Breillat, diante do instinto predador de Vilko que começa a tirar dinheiro da protagonista, num típico relacionamento sadomasoquista. A afetividade não passa de uma loucura, que logo dá lugar para o descontrole emocional pela perda iminente da lucidez, tendo em vista que a razão soçobrou, ao desgovernar e descer ladeira abaixo. Há aparências torcidas com desdobramentos para vários horizontes nesta bancarrota, embora Maud sofra muito pela dor física da paralisia, mas seus sentimentos de ser humano também são alvos de abalos e choques, sem ceder à emoção barata.

Uma Relação Delicada retrata com dignidade a solidão inexorável que deixa vulnerável a protagonista presa à cama, mas determinada a levar adiante seu projeto cinematográfico de qualquer maneira. Não pode contar muito com os filhos distantes, com suas vidas já adultas e direcionadas pela independência, quando a procuram querem interná-la numa clínica de repouso para sua revolta e indignação. Era inevitável o desenlace daquele destino que traçou com aquele embusteiro de gente famosa, trocando o patrimônio por falsas e frágeis alegrias.

Eis uma narrativa que procura partir da premissa de personagens contundentes e em torno deles erguer uma história com realismo sobre lucidez e loucura, razão e emoção, sobre um processo de reconstrução pela perda. Há uma estrutura de imagens e diálogos adequados e sólidos para um quadro definitivo no final. É demonstrada com isenção a ideia de que certas alternativas nem sempre encontram guaridas pelo comportamento rotulado e inaceitável pela corrompida civilização. Há evidências de desprendimentos e a refutação de quaisquer tipos de ressentimentos, com notáveis cenas emotivas flutuando entre os espectadores, pelo olhar atento da cineasta que flerta com a sensibilidade e a compaixão, através de uma luz lançada na humanidade pelos méritos inegáveis ao mostrar uma relação paradoxal de duas pessoas, além da gratidão e superação, nesta obra magnífica que se afasta do politicamente correto para buscar a alegria de viver sem tédio.

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