sexta-feira, 23 de maio de 2014

Praia do Futuro


Liberdade Sofrida

Em seu quinto longa-metragem Praia do Futuro, que foi muito bem recebido no Festival de Berlim, uma coprodução com a Alemanha, o cineasta Karim Aïnouz lança um olhar com maturidade ao tema da relação homoafetiva, ao abordar com sensibilidade e sutileza o vínculo amoroso estabelecido entre o salva-vidas Donato (Wagner Moura- mais uma vez está ótimo num papel difícil) com o turista alemão Konrad (Clemens Schick- de 007 Cassino Royale). O drama tem uma estrutura impecável e sem superficialidades, diante de lacunas entremeadas pelo silêncio para atingir um resultado digno inspirado no cinema de Rainer Werner Fassbinder, como o próprio diretor assume ser um admirador de suas obras.

A trama é dividida em três atos distintos que se entrecruzam. Começa em Fortaleza numa competição internacional de motovelocidade e terminará em Berlim com a chegada do irmão caçula, Ayrton (Jesuíta Barbosa- revelação no longa Tatuagem). O mote é a morte do companheiro de Konrad no mar, embora todo o esforço do profissional em tirá-lo vivo das águas, o rapaz desaparece nas profundezas perigosas. Numa exposição de fragilidades, surge a aproximação entre o sobrevivente resgatado com o brasileiro que vive nas areias da capital cearense salvando pessoas afogadas. Os dois tentam encontrar o desaparecido a qualquer custo, fazem vigília com uma procura inglória.

Aïnouz tem uma filmografia voltada para a solidão, as perdas, o abandono e os encontros inusitados, como visto no bom e dinâmico Madame Satã (2001); no excelente O Céu de Suely (2006) alcança seu apogeu e brilha com o drama familiar inerente à classe pobre brasileira, onde a protagonista tenta rifar seu próprio corpo para conseguir dinheiro suficiente e comprar passagens de ônibus, ir para bem longe de seu domicílio para iniciar uma nova vida com seu filho menor; e em codireção com Marcelo Gomes realizou o controvertido Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), surge a saudade da família deixada para trás e a falta da esposa; em O Abismo Prateado (2011) há a criatura abandonada e sua epopeia para encontrar o caminho de volta para a lucidez. Ou seja, colocar a cabeça no lugar após o trauma violento do desprezo inexplicável com o rompimento do vínculo do amor.

Em A Praia do Futuro, o emocional está voltado para o casal gay e a intromissão do irmão que vai ao encontro deles na bela e fria Berlim, sem saber da relação, num primeiro momento revolta-se e o clima não é nada pacífico, pois sempre viu Donato como seu herói na infância. Agora na fase adulta com o reencontro, fará o diretor instigar um resgate da liberdade alcançada pelo protagonista bem longe, distante do meio conservador e repressor da origem. Há uma coragem colocada em xeque para, finalmente, assumir a preferência sexual, como forma de libertar-se das amarras do passado, ainda que corra riscos na sua trajetória de esquecimento e de abandono familiar, com a morte da mãe recebida em silêncio dolorido, surge a perda existente no prólogo, um tema recorrente na filmografia do cineasta.

O filme vai direcionar as alternativas que o mundo pode oferecer, inclusive o choque civilizatório entre dois países completamente diferentes, como se vê nas primeiras cenas do imaginativo epílogo no nevoeiro, que nos remete para o fabuloso drama holandês Em Silêncio, dirigido pela promissora estreante Ricky Rijneke, ainda inédito no circuito comercial, tendo passado na Mostra de Cinema de São Paulo do ano passado. Neste havia a primeira separação dos irmãos num posto de gasolina, na beira de uma estrada deserta, reduto de caminhões gigantescos e despersonalizados, como uma premonição da história. Em ambos os filmes, os personagens são revestidos de grande humanismo como elementos essenciais, apresentando suas dores, medos e ansiedades. No longa holandês, o furto do colar com o peixinho retrata metaforicamente o desenlace da trama na última cena como uma perda irreparável simbolizada, como se verá pelo nevoeiro que se aproxima e se distancia pelo enquadramento da câmera, tal qual acontece com os três personagens andando de moto pela rodovia em A Praia do Futuro, numa marcante imagem de uma tomada estupenda e reveladora. O prólogo está se decifrando no final e a solidão mesclada com a busca da liberdade presente somam-se às perdas doloridas que ficaram para trás.

A reflexão passa também pelas culturas opostas e o destemor dos personagens com a clarividência do propósito no futuro como ingredientes de subsídios para uma magnífica e dura realidade, após os transtornos dos percalços oferecidos pelo destino. As mortes são reflexos de um contexto de diferenças e obra do acaso, mas que vão se encaixar e tornar uma relação madura e consistente, já com a presença do irmão como símbolo do passado da ausência transformadora da rotina, dando causas e contrastes por extensão, após o baque pessoal de uma estabilidade falsa arrebentada pelo desaparecimento. Assim como em O Abismo Prateado, o mar está de volta e as águas lambem a areia docemente, após as longas caminhadas lançarão os três noutro universo, agora de asfalto e uma outra realidade, com a sugestão da emoção motivadora da existência, diante da sensação de vazio e isolamento, numa abordagem pungente e intensa com uma atmosfera singular.

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