segunda-feira, 5 de maio de 2014

Pelo Malo


Desemprego e Conservadorismo

A diretora estreante Mariana Rondón é filha de um ex-integrante de um grupo guerrilheiro venezuelano, que viria dirigir o drama Postales de Leningrado (2007). Ela obteve vários prêmios internacionais com Pelo Malo, entre eles o de melhor longa no Concha de Ouro do Festival de San Sebastian, na Espanha; também esteve presente e com imenso sucesso de público na Mostra de Cinema de São Paulo do ano passado. Não é bem-vista pelos chavistas, mas venerada pela oposição, por ter a ousadia de desafiar o regime situacionista com esta poderosa denúncia social contra seu país de origem.

Eis um drama familiar que surpreende pelo ingrediente político embutido numa Venezuela envolta numa crise imensurável sócio-econômica. A trama gira em torno do garoto de nove anos Junior (Samuel Lange Zambrano- de atuação espetacular), que sonha em alisar o cabelo encaracolado que diz ser ruim, para ficar mais parecido com a imagem do grande cantor cabeludo e ídolo pop Henry Stephen. Tem na mãe Marta (Samantha Castillo- de interpretação irrepreensível) que luta para sustentá-lo com o irmão bebê, após a morte do marido em circunstâncias trágicas, um gigantesco entrave, tendo em vista que ela quer evitar este seu jeito diferente, visto como uma vaidade gay.

O enredo mostra a avó paterna Carmen (Nelly Ramos) que não quer o mesmo fim precoce para o neto, como foi de seu filho, por isto pretende a guarda dele, que é um obstinado pelo alisamento das madeixas de qualquer maneira. Vê na figura materna um obstáculo intransponível, embora seja de um falso moralismo repressor simbolizando o modelo político vigente tutelado por Hugo Chávez. Encarna o conservadorismo e o modo emblemático autoritário daquele país latino-americano no cenário atual. Ela mesma sofre com o desemprego, custa para empregar-se e não para em lugar nenhum.

É um retrato típico do medo de uma mãe que não suporta a ideia de ver seu filho homossexual, porém discute de maneira estéril as circunstâncias que se apresentam como indicativas da situação que se desenha aos seus olhos e a cegueira que a domina. Não enxerga que falta carinho, atenção e amor para o menino que busca referência masculina no amigo próximo e sonha também em ser um atleta como os jogadores vizinhos no cortiço onde mora. A obsessão de Marta é tão grande que premedita uma grande surpresa heterossexual, para dar o exemplo ao filho se espelhar, sem prever os efeitos colaterais e o choque que criará numa criança ainda sem o entendimento correto de um coito, que se sente desamada e com profunda revolta.

O filme tem um componente político forte e é realizado com muita sensibilidade pela eficiência, domínio de elenco para uma neófita diretora, que mantém uma consistência e coesão, com uma performance acima da média na criação de personagens sólidos e psicologicamente bem construídos. É o caso de Junior e o comovente ensaio musical com a avó em Meu limão, Meu Limoeiro, composição de José Carlos Burle, em 1937, e consagrada pelo maldito e hostilizado Wilson Simonal, com uma melodia adaptada para o espanhol de maneira sedutora. Também da garotinha que pretende ser miss, fica claro a ironia sobre o tema dos concursos de beleza quase sempre já com resultados pré-definidos e com atitudes preconceituosas sobre a gordura.

Há um abordagem fiel num ambiente familiar degradado pela falta de opção de trabalho, visto com muita sutileza e reflexão sobre um momento delicado que vive os venezuelanos, assim como no recente e ótimo suspense 7 Caixas (2012), da dupla desbravadora Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori, que colocam o Paraguai em evidência, embora seja um mercado sem qualquer tradição. Vem provar que existe cinema de grande qualidade também na Venezuela e não apenas Argentina, Brasil, Uruguai e Chile são polos industriais do cinema na América Latina.

Pelo Malo entra para a história de seu país como um instigante drama que retrata com dignidade a pobreza e busca no humanismo de seus personagens os fatores preponderantes como um manifesto da indignação de um sistema envelhecido pelo caudilhismo ultrapassado, pela amostragem fiel de uma classe que sofre pelo desemprego e de um país sem perspectiva de condições básicas sociais numa realidade injusta com seu povo, diante de uma instabilidade anômala, diante da estupenda visão deste longa bem elaborado e com vigor sobre os vínculos afetivos corroídos.

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