sexta-feira, 16 de maio de 2014

Alabama Monroe


Canções Doloridas

Quando se fala em cinema da Bélgica, logo se pensa nos irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne, pelos notáveis filmes O Filho (2002), A Criança (2006), Lorna (2008) e O Garoto de Bicicleta (2011). Para mudar um pouco o cenário, surge agora o promissor cineasta Felix Van Groeningen, de apenas 35 anos, como sombra para os consagrados compatriotas, ao escrever o roteiro e dirigir este belíssimo Alabama Monroe, vencedor do prêmio do júri popular no Festival de Berlim; melhor atriz e roteiro no Festival de Tribeca; indicado ao Oscar como melhor filme estrangeiro e vencedor do César na França pela mesma categoria.

O drama familiar é contado sem cronologia dentro de uma contexto esfacelante, com idas e vindas em sucessivos flashbacks realizados com muita inspiração, inovando na forma de filmar um roteiro de muitas arapucas para o espectador mergulhar numa história rica de um amor improvável e estranho. A trama não linear tem no casal de protagonistas as diferenças abundantes e com grande chance de não encaixar uma avassaladora paixão. Ledo engano, apesar das diferenças, o relacionamento dá certo. O músico romântico Didier (Johan Heldenbergh) adora os Estados Unidos, toca banjo numa banda de músicas bluegrass, que não é exatamente um blues, mas um country de raiz, como explica o diretor. O cantor por onde passa espalha alegria e começa um grande romance com Elise (Veerle Baetens), uma mulher realista, embora passional, dona de um estúdio de tatuagem, seu corpo se revela com indicativos de transformações por situações desenroladas pela vida que são mostradas de forma explícita.

A paixão à primeira vista é o mote do longa que é embasado na peça teatral do ator protagonista Heldenbergh, mas a situação começa a mudar com a gravidez da mulher, diante da recepção fria pelo companheiro. Mas há a superação com o nascimento da graciosa Maybelle (Nell Cattrysse). Tudo ia bem até a descoberta da leucemia na filha de seis anos, causando uma desestabilização na família, com as dificuldades inerentes da grave doença e a recuperação cada vez mais difícil. Van Groeningen aborda com sensibilidade, sem se deixar levar pelo pieguismo, o drama que o golpe causou no casal, com a mãe já integrando a banda e de boa participação nos shows. As canções magnetizam como um libelo de indignação, principalmente o hino gospel em forma de prece Will the Circle be Unbroken.

A desestruturação do microcosmo familiar é enfatizada com a peça que o destino aplica nos pais, embora a mãe acredite ainda num mundo espiritual pela tendência religiosa. As convicções distintas entram em choque frontal com o marido ateu. Há acusações frequentes minando a ruptura de um vínculo forte entre os dois. Didier faz um verdadeiro discurso numa apresentação musical, em uma das cenas mais eletrizantes pelo impacto na plateia de fãs. Sobra para todo mundo ao xingar Jeová, execrar o velho testamento e demonstrar sua decepção com a terra prometida e amada, os EUA, diante do veto de George W. Bush às pesquisas da células-tronco para tratamentos específicos, que poderia vir salvar pessoas cancerígenas, entre elas sua filha.

A película é recheada de grandes momentos, comove pela dramaticidade e pela alta voltagem, como a do pássaro que morre nas mãos da garotinha, numa metáfora do voo cego e o fim pelo acidente de percurso inusitado e não previsto da trajetória da vida. Elise tentará reverter a situação colocando símbolos estilizados nas vidraças para evitar novas tragédias. A lua de mel do casal sucumbe com a fenda aberta entre eles, decorrentes dos conflitos gerados pela doença. São momentos de puro enfrentamento pós-desgraça, com a ira paterna contrastando com a doçura materna de resignação, em meio a um manancial de acusações.

Para o diretor a dicotomia é fundamental, pois embora não seja profundamente questionada a religião na sua essência, há uma crítica às bases na moral judaico-cristã que impedem avanços científicos, deixa transparecer que as pessoas precisam alimentar-se dela, no momento em que a culpa é colocada em pauta e os estilhaços são percebidos pela dor e pela tristeza de ambos numa relação que passa a ser tumultuada e ardente na sua intensidade dramática. Arrepia e faz o espectador se envolver na engenhosa elaboração de um roteiro, ao brincar sério com a plateia, traz imagens e diálogos do início da relação, pula para o clímax melancólico na fase mais crítica e avança para um epílogo inusitado sobre o destino daquela família arruinada e destruída pelas curvas da vida ali presentes.

A construção de personagens sólidos e com fragilidades psicológicas latentes estão presentes neste extraordinário Alabama Monroe repleto de emoção, com uma contundência fabulosa na inventiva forma oriunda da escola belga sempre atraente e preocupada com o contexto da linguagem cinematográfica, traz uma acentuada reflexão sobre a ciência e os avanços que poderiam salvar vidas, mas travados por dogmas religiosos. Um filme que tem o intuito de mexer e perturbar através de uma melancolia sutil que grassa suavemente, sem perder a dignidade pelo vigor das emoções existenciais que refutam a derrota. Credencia-se a ser um dos dez melhores de 2014.

Nenhum comentário: