Tributo à Italiana
No seu 42º longa-metragem, Woody
Allen, além de diretor, acumulou as funções de roteirista e ator em Para
Roma , com Amor,
contando quatro histórias na Capital italiana, baseadas em Decamerão de Bocaccio, porém ficou bem aquém de sua capacidade de
construção de um cinema voltado para as inquietações angustiantes do dia a dia.
Evidente que poucos filmes se comparam com Zelig (2003), uma das
obras-primas do cineasta; ou o inesquecível longa, talvez o maior filme do velho mestre,
A Rosa Púrpura do Cairo (1985), naquela que se consagrou como cena
antológica do cinema, a saída do herói da tela indo ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a
película, para fugir do martírio de sua vida cotidiana
na época da Grande Depressão dos EUA.
Depois que começou sua fase europeia,
ao filmar em lugares distantes de sua querida Nova Iorque, iniciando por Londres
com Ponto Final- Match
Point (2005), um dos
melhores dos últimos anos; Scoop- O
Grande Furo (2006);
e O Sonho de Cassandra
(2007).
Seguiu como turista com sua câmera na mão e ancorou na Espanha com Vicky Cristina Barcelona (2008). Passou pelos EUA de
regresso e assinou Tudo Pode Dar Certo (2009), onde escolhe com
perfeição seu alter ego como Boris (Larry
David), no papel do velho rabugento e neurótico. Retorna para a Inglaterra e realiza Você
Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos (2010); passando pela França dirige Meia-Noite
em Paris
(2011), possivelmente sua melhor obra nos últimos anos, tanto pela grandeza
artística como pela ótima recepção de público e crítica, num filme
singular e magnífico, ao transpor as barreiras da ficção pragmática, mergulha
na fantasia e nos sonhos, deixa a realidade como fator secundário, não sem
antes dar algumas alfinetadas nos americanos estereotipados e engajados com o
consumismo e com as guerras frias.
Para Roma, com Amor tem como ponto de referência um casal americano que vai conhecer os familiares
ricos do marido Antônio (Alessandro Tiberi), que acaba de apresentar numa farsa
a prostituta (Penélope Cruz) e não a mulher verdadeira (Alessandra Mastronardi-
de beleza marcante e grande revelação no elenco), causando situações embaraçosas
e desconcertantes. Outra figura estranha é Leopoldo (Roberto Begnini), que
acorda de manhã famoso, sendo perseguido pelos paparazzis ensandecidos na procura de alguém para a fama
instantânea, numa abordagem sobre a transitoriedade de pessoas do povo para a glória
repentina, em prol de notícias de notoriedades fabricadas, como se vê na sequência
com outro ilustre desconhecido. A película tem fatos inusitados
como do arquiteto John (Alec Baldwin) sendo abordado pelo jovem Jack (Jesse
Eisenberg- cada vez mais o alter ego do diretor), que se apaixona por Mônica
(Ellen Page), a melhor amiga da namorada e no desenrolar da trama revive
momentos tristes da trajetória de sua vida. John circula por Roma e surge como
um anjo da guarda e voz presente para Jack, dando-lhe conselhos e tornando os
personagens num só.
Mas as grandes tiradas se
concentram em Jerry (Allen), um músico de orquestra aposentado que descobre um
grande talento cantando no banheiro. Nada mais, nada menos, do que o sogro de
sua filha. Sofre, entretanto, a oposição de seu genro, um comunista ferrenho,
que não quer ver o pai deixar a profissão de dono de uma funerária para tentar
ser tenor ao melhor estilo de Caruso. Os fatos se sucedem e a montagem da ópera
do Pagliacci, de Leoncavallo, acaba
por ser uma realidade magnífica numa solução encontrada para o desfecho
insólito e arrebatador, dentro do contexto criativo para aproveitar-se o
potencial artístico da revelação musical.
Allen se debruçara em imagens
bem conhecidas no longa Meia-Noite em
Paris, como a Torre Eiffel, o rio Sena com seus barcos e o Arco do Triunfo;
agora já na abertura desta última produção, mostra o carrossel da Piazza del
Pappolo, com um guarda se descuidando de seus afazeres provocando um acidente
de trânsito. A comédia é divertida, mas contida, e o humor sarcástico está
presente mesclado com um surrealismo em quase todas as cenas, como se Fellini
estivesse ali com seus notáveis A Doce
Vida (1960) ou em Abismo de um Sonho (1952),
no episódio da mulher casada perdida na cidade; ou ainda na homenagem à ópera,
como na bela cena do epílogo.
O cineasta tem fôlego e monta
uma verdadeira associação de seres diferentes dentro da mesma espécie, como nas
inter-relações íntimas de traições, como se fosse uma simbiose. Enfoca Roma e o
painel ali existente de várias castas da sociedade, inclusive sem deixar de
mostrar a evolução de uma era primitiva para os novos tempos, estando no meio
das ruínas o simbólico Coliseu, como uma metáfora civilizatória para a
modernidade. Aborda com relativo interesse as neuroses e os relacionamentos
despudorados, bem como as traições voluntárias ou induzidas, com métodos de
sedução nada convencionais para libertar e expulsar os fantasmas como numa
terapia nada ortodoxa, neste filme mediano de encontros e desencontros e
situações surreais de expurgos das angústias atormentadoras.
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