Alexander Sokurov encerra sua tetralogia com Fausto, vencedor do Leão de Ouro no
Festival de Veneza, baseado livremente no famoso livro filosófico do festejado
Goethe, considerado símbolo cultural
da modernidade e de proporções épicas que relata a tragédia do Dr. Fausto, um
médico e estudioso da astrologia desiludido que faz
um pacto com o demônio e recebe as endiabradas energias insufladoras da paixão.
Foi levado ao cinema pela primeira vez pelo cineasta alemão F. W. Murnau, em
1926, consagrando-se como um autêntico filme do cinema mudo. Embora haja alguma
resistência em vê-la como uma obra dentro do contexto, tendo em vista que os
longas da trilogia, até então, eram baseadas em homens políticos de carne e
osso, tais como: Hitler em Moloch(1999),
Lênin em Taurus (2001) e Hirohito em O Sol
(2005). São vazias as argumentações contrárias, numa visão caolha apressada, provavelmente.
O cineasta russo demonstra no filme toda sua capacidade
inventiva de criação e de sedução com o cinema na melhor tradição europeia
expressionista, ao abordar com desenvoltura um clássico da literatura alemã.
Coloca-o dentro de uma sequência de filmes sobre os tiranos que fizeram a
humanidade padecer, principalmente com as inúmeras atrocidades dentro de seus respectivos
países, como na forte cena inicial da dissecação de um corpo humano para
estômagos menos sensíveis. Ali, já se afasta do tom glamouroso da obra-prima Arca Russa (2002), onde havia uma simbiose
de cinema, história e artes plásticas, filmado em um único plano-sequência de
97 minutos, sem cortes, atravessando as salas do museu e transformando a tela num
quadro vivo por onde desfilam personagens da história da Rússia: Pedro, o
Grande; Catarina, a Grande; Catarina II, Nicolau e Alexandra.
A trama enfatiza o Dr. Fausto (Johannes Zeiler), uma pessoa
materialista à procura de uma linda mulher, ou seja, Margarida (Isolda Dychauk)
e muito dinheiro, que perde a dignidade ao vender a alma para o diabo
Mefistófeles (Anton Adasinsky), um sujeito manipulador e horrendo, de corpo
deformado, traiçoeiro, fedorento ao extremo, que anda num cenário da Idade
Média, onde há muita fome e miséria num lugarejo alemão, por reflexos da
corrupção que ali campeia solta. Ao submeter-se como um dependente físico e
espiritual do mentor diabólico, o médico acaba por cometer um crime, refletindo
em abalos profundos na sua existência, levando-a conhecer as profundezas e os
horrores inóspitos do inferno. Num duelo entre o bem e o mal, Sokurov mostra
que nada resta após a dignidade ter sido negociada de maneira irreversível com
as forças satânicas do além.
Sokurov é um discípulo de
seu compatriota e amigo Andrei Tarkowsky, outro genial cineasta russo, e ao concluir
a tetralogia apresenta como seu tirano maior e pai de todos o Satanás, buscando
inspiração no clássico de Goethe, para de forma alegórica e fulminante refletir
se existe salvação ainda para o ser humano, numa colocação brilhante, não deixa
pedra sobre pedra, vai embrenhando-se pelas cavernas que começam na Terra e
atravessam fronteiras. Faz uma alusão a Ingmar Bergman, como no funeral e a
pompa lúgubre dos que partem para o infinito, marcados pela dolorida perda
entre seus próximos, lembra o drama Morangos
Silvestres (1957), no temor da morte que se aproxima e nas lembranças que
estão presentes ao encontrar diversas pessoas pela estrada; ou ainda nos
reflexos do rosto petrificado pelas sombras e dúvidas de Margarida, como uma
típica figura bergmaniana.
Há algumas cenas marcantes,
como na do vinho jorrando das paredes, servindo como mote induzido para o
grande blefe; ou na morte involuntária do jovem, mas que bem poderia ter sido
premeditada pelo símbolo da violência e da loucura, que tem a condução e as
soluções da caminhada inglória. Logo adiante há o reencontro entre os protagonistas
do ato, sendo que a vítima ainda sofre e vive como uma alma penada no
purgatório. O diretor russo não deixa
margem para dúvidas no seu libelo contra a opressão e das lutas sem sentido
patrocinadas pelos ditadores, como na cena dos soldados vindos da guerra,
cruzam com Fausto e Mefistófeles, todos eles têm na morte suas lembranças
maiores que ficaram para trás, num ambiente sombrio e horripilante, com um
visual arrebatador e dolorido. É o indivíduo perdido na escuridão da eternidade
e sua luta tenaz pela volta.
O cineasta segura firme o
longa-metragem, num cenário estupendo e alicerçado por um figurino impecável de
época, abordando com coragem e contundência a repressão tão contestada em seu
país, para dar luzes mórbidas num clima de desespero pela volta ao estado anterior
do médico, aonde os enigmas vão se desanuviando numa implícita alegoria aos
expurgados dissidentes inconformados de um regime autoritário. Os caminhos são
mostrados como irreversíveis neste fabuloso Fausto,
um filme sobre a dignidade humana perdida dentro de um contexto formado pela
tirania de falsos líderes.
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