terça-feira, 7 de julho de 2009

A Partida

















Cerimônia da Morte

O Japão já produziu grandes cineastas, entre eles o mitológico Akira Kurosawa, ganhador da estatueta de melhor filme estrangeiro no Oscar de 1975, com o inesquecível filme Dersu Uzala, embora concorrendo pela extinta URSS. Pela primeira vez, de forma oficial, o país teve um ganhador desta categoria criada em 1957, obtendo o prêmio máximo em 2009, desta feita com A Partida, dirigido por Yojiro Takita (A Última Espada). Este filme, além de ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, também foi vencedor do Grand Prix des Amériques, no Festival de Montreal, e ainda de Melhor Filme do Júri Popular no Festival de Palm Springs. Há uma curiosidade a ser ressaltada, foi filmado em menos de 2 meses, ou seja: de 18 de abril a 10 de junho de 2007.

A Partida é um poderoso drama humano de extrema sensibilidade, que trata da relação dos mortos com quem vive dela como profissão e da transitoriedade da vida. É até certo ponto uma temática tabu no cinema ocidental, especialmente no brasileiro, mas construído todo seu envolvimento pelos orientais com muita sensibilidade e delicadeza. Entretanto, o filme não é só isso, pois carrega uma carga emocional dos familiares e amigos do falecido, bem conduzida pelo talentoso diretor, sem deixar cair no piegas, ou em lágrimas excessivas. A trilha sonora se comporta com harmonia, com uma fotografia digna dos grandes filmes, afastando qualquer morbidez que pudesse atrapalhar ou descambar para uma outra categoria.

O jovem desempregado violoncelista Daigo (Masahiro Motoki) retorna à sua cidade natal no interior do Japão, logo após a dissolução da orquestra que tocava. Encontra emprego como assistente do experiente agente funerário Ikuei (Tsutomu Yamazaki), tendo que buscar os corpos em locais mais variados, sendo a primeira tarefa um já em adiantado estado de putrefação, causando-lhe náuseas e vômitos, numa cena das mais fortes. Sua bela esposa Mika (Ryoko Hirosue) só vem descobrir seu novo emprego, por acaso. Entende como indigno e não admite que o esposo tenha lhe ocultado, abandonando-o, mas logo retorna para lhe dizer que será pai e que seu filho não irá se orgulhar. Ainda assim tenta demovê-lo do ingrato e desconfortante labor, mostrando com revolta sua rejeição pelo marido que a toca em seu corpo, estabelecendo-se o conflito no casamento. As cenas do casal demonstram que o tabu da profissão visivelmente está eivado de preconceitos.

O filme mostra o ritual da passagem da vida para a morte com o destino da eternidade, como lavar, colocar no caixão e fundamentalmente maquilar com todo requinte para deixar resplandecer a melhor beleza para os rostos, nem que seja uma única vez. Não pode haver erro, pois a cerimônia da preparação do cadáver é realizada artesanalmente para a entrega aos parentes e o rol de amizades que acompanham silenciosamente. Após o ritual, o insepulto vai para o derradeiro ato da cremação. Não é um velório ao estilo ocidental, mas evidencia-se com clarividência do contraste da beleza do corpo maquilado com a dor e a tristeza refletida dos rostos e olhares dos familiares. Há um respeito solene com os mortos. Temos cenas de conflitos familiares na hora do ritual da partida definitiva, sendo palco para acusações descabidas e busca de culpa. Há o filho ausente que queria ver a mãe mais uma vez antes da cremação, esbarrando numa relação extraconjugal com o mordomo, que lhe acompanhou até o fim. A filha hermafrodita sem uma identidade definida, causa constrangimento na hora da maquilagem.

O longa encontra nas metáforas soluções para seu desenvolvimento, como dos salmões que nadam e morrem no final de seu destino, parece querendo voltar para casa ou suas origens, tais como o ex-violoncelista. O polvo jogado ainda com vida na água pela esposa Mika, não se sustenta e morre, num prenúncio da profissão de seu marido. Uma das cenas mais belas, são as imagens à beira de um campo verdejante e Daigo toca com todo esplendor seu violoncelo, tendo como pano de fundo o belo cenário do voo dos gansos selvagens mostrando que a essência da vida está presente em seus sentimentos.

Eis um filme de extraordinária dignidade, tanto pelas suas sutilezas como pelas sua simplicidade, onde um trabalho praticamente tabu, mas digno, estabelece um conflito tenaz contra o preconceito da morte. Na cena final da pedra-carta há a revelação e a continuidade da vida, ao realizar seu relutante reencontro com o pai, após anos de ausência. Um filme tocante, pois faz o espectador refletir sobre a transição da vida para a eternidade ou não morte. Não há como deixar de ser tocado pelo instigante provocação desta obra-prima da filmografia japonesa.

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