Herança
Assim como surgiu estreando atrás das câmeras Sandrine
Bonnaire com o ótimo Na Sua Ausência (2012),
outrora uma ótima atriz, também estreia como diretora a israelense Hiam Abbas,
que interpretou ótimos papéis em filmes como A Noiva da Síria (2004), Free
Zone (2005) e Munique (2005),
sempre em grande estilo. Seu primeiro longa é este magnífico Herança, onde também atua em boa forma.
Demonstra-se uma cineasta competente e já dá sinais de ser plenamente autoral.
É um bom candidato ao melhor filme da 36ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste
ano.
A trama está centrada numa família de uma aldeia no norte da
Galileia, no conflitado território reivindicado pelos palestinos. Reúnem-se
para celebrar o casamento de uma das netas de um velho patriarca e tradicional
morador daquele lugar. Inesperadamente entra em coma e conflitos internos
explodem no seio familiar, enquanto a morte está rondando cada vez mais o
enfermo.
Herança é um belo
painel sobe os conflitos familiares e serve de metáfora para as constantes guerrilhas
entre Israel e os habitantes do propalado futuro Estado da Palestina. A crítica
situação do avô da noiva em coma nada mais é do que a crônica doença instalada
na região convalescente e sem cura entre palestinos e israelenses, sempre em
disputas acirradas, onde aviões de guerra rasgam o céu e bombas explodem por
todos os cantos e acabam por interromper o casamento, com o soar intermitente
das sirenes. Tudo funciona como elementos de uma agonia martirizada para seus
habitantes.
Abbas aborda o tenso e comovente embate com a proximidade da
morte rondando o patriarca. É metaforicamente o Estado com seus filhos brigando
por dinheiro ou em delicadas situações da tradição árabe. São cinco filhos antagônicos:
o médico estéril e perdido na continuidade do matrimônio com a bela esposa que
insiste em ser mãe; o advogado que trai a esposa que não ama e é candidato a
prefeito, sofre acusações de ser colaboracionista dos inimigos; o pequeno
empresário e pai da noiva é um fracassado nato, está de olho no espólio e nem
espera o pai morrer e já vai atrás das assinaturas dos irmãos para administrar
os bens, mas tem como característica principal não pagar seus credores; a irmã
mais velha é casada com um taxista moralista que finge trabalhar; mas a grande
sacada do longa é a filha caçula que namora um professor inglês, embora
prometida em casamento para um primo, rebela-se e vai às ultimas consequências.
O drama retrata com grande fidelidade como símbolo da
resistência a garota hostilizada, caçulinha da família, mas que sabe o que
quer. Seu confronto com os irmãos e demais parentes, exceto a irmã da noiva e a
mana mais velha, é a alegoria da liberdade como os pássaros que voam para irem
ao encontro de seus destinos, como ela mesma profetiza. Herança reflexiona
a opressão envolta dos tabus familiares incrustados naquela região belicosa de
pessoas conservadoras, com suas tradições decorrentes de uma cultura que impede
a felicidade de quem quer ter liberdade em decidir seu futuro. A menina rebelde
é alcunhada de piranha e traidora, por ter ideias próprias e almejar uma
independência que não é bem vista entre a maioria de seus parentes.
Um filme que se insere como um grande observador dos
conflitos entre palestinos e israelenses com as metáforas familiares servindo
como reflexão de um novo amanhã, embora o presente esteja eivado de cicatrizes
abertas dos conflitos internos e externos pelos excessos da cultura ainda
primitiva e conservadora arraigada nas populações e das comunidades próximas. A
diretora criou personagens psicologicamente fortes em sua construção, embora contraditórios,
onde não há inocentes pelas circunstâncias das peculiaridades que dão
consistência para este muito bom drama de uma neófita.
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