quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Mostra de Cinema São Paulo (Herança)













Herança

Assim como surgiu estreando atrás das câmeras Sandrine Bonnaire com o ótimo Na Sua Ausência (2012), outrora uma ótima atriz, também estreia como diretora a israelense Hiam Abbas, que interpretou ótimos papéis em filmes como A Noiva da Síria (2004), Free Zone (2005) e Munique (2005), sempre em grande estilo. Seu primeiro longa é este magnífico Herança, onde também atua em boa forma. Demonstra-se uma cineasta competente e já dá sinais de ser plenamente autoral. É um bom candidato ao melhor filme da 36ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano.

A trama está centrada numa família de uma aldeia no norte da Galileia, no conflitado território reivindicado pelos palestinos. Reúnem-se para celebrar o casamento de uma das netas de um velho patriarca e tradicional morador daquele lugar. Inesperadamente entra em coma e conflitos internos explodem no seio familiar, enquanto a morte está rondando cada vez mais o enfermo.

Herança é um belo painel sobe os conflitos familiares e serve de metáfora para as constantes guerrilhas entre Israel e os habitantes do propalado futuro Estado da Palestina. A crítica situação do avô da noiva em coma nada mais é do que a crônica doença instalada na região convalescente e sem cura entre palestinos e israelenses, sempre em disputas acirradas, onde aviões de guerra rasgam o céu e bombas explodem por todos os cantos e acabam por interromper o casamento, com o soar intermitente das sirenes. Tudo funciona como elementos de uma agonia martirizada para seus habitantes.

Abbas aborda o tenso e comovente embate com a proximidade da morte rondando o patriarca. É metaforicamente o Estado com seus filhos brigando por dinheiro ou em delicadas situações da tradição árabe. São cinco filhos antagônicos: o médico estéril e perdido na continuidade do matrimônio com a bela esposa que insiste em ser mãe; o advogado que trai a esposa que não ama e é candidato a prefeito, sofre acusações de ser colaboracionista dos inimigos; o pequeno empresário e pai da noiva é um fracassado nato, está de olho no espólio e nem espera o pai morrer e já vai atrás das assinaturas dos irmãos para administrar os bens, mas tem como característica principal não pagar seus credores; a irmã mais velha é casada com um taxista moralista que finge trabalhar; mas a grande sacada do longa é a filha caçula que namora um professor inglês, embora prometida em casamento para um primo, rebela-se e vai às ultimas consequências.

O drama retrata com grande fidelidade como símbolo da resistência a garota hostilizada, caçulinha da família, mas que sabe o que quer. Seu confronto com os irmãos e demais parentes, exceto a irmã da noiva e a mana mais velha, é a alegoria da liberdade como os pássaros que voam para irem ao encontro de seus destinos, como ela mesma profetiza. Herança reflexiona a opressão envolta dos tabus familiares incrustados naquela região belicosa de pessoas conservadoras, com suas tradições decorrentes de uma cultura que impede a felicidade de quem quer ter liberdade em decidir seu futuro. A menina rebelde é alcunhada de piranha e traidora, por ter ideias próprias e almejar uma independência que não é bem vista entre a maioria de seus parentes.

Um filme que se insere como um grande observador dos conflitos entre palestinos e israelenses com as metáforas familiares servindo como reflexão de um novo amanhã, embora o presente esteja eivado de cicatrizes abertas dos conflitos internos e externos pelos excessos da cultura ainda primitiva e conservadora arraigada nas populações e das comunidades próximas. A diretora criou personagens psicologicamente fortes em sua construção, embora contraditórios, onde não há inocentes pelas circunstâncias das peculiaridades que dão consistência para este muito bom drama de uma neófita.

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