Shun Li e o Poeta
Um filme surpreendente na 36ª. Mostra de Cinema de São Paulo
é este fabuloso Shun Li e o Poeta,
que procede da Itália em coprodução com a França, abocanhou três prêmios no Festival de Veneza deste ano, tem na direção o promissor
Andrea Segre. Tem em sua filmografia filmes como Marghera Canal do Norte (2003), Che
Cosa Manca (2006), La Mal ’ombra (2007), A Sud di Lampedusa (2007) e Como
um Homem Sobre a Terra (2008), participou da 33ª. Mostra de São Paulo.
Este longa é um retrato sobre o preconceito racial, a
intransigência e, sobretudo uma solidariedade em forma de uma grande amizade
despida de sexo. Há pureza e sensibilidade no relacionamento entre dois seres
que trilharam o mesmo caminho da imigração por vias da transgressão. O orgulho
ferido e a desconfiança estão presentes em meio ao clima de poesia e beleza
plástica fascinante do lugar.
Shun Li (Zhao Tao- de boa atuação) é uma chinesa que foi
transferida de Roma, onde era costureira, para Chioggia, uma pequena ilha de
pescadores na região do Vêneto, para trabalhar num bar, à beira de um rio, onde
estão ancorados os barcos de diversos tipos e tamanhos dos nativos dali. Sofre
inicialmente com a comunicação, pois fala apenas sua língua e até a aprender o
idioma italiano há bastante dificuldade, mas se esforça muito. Sua vida é só
trabalho e a cobrança existe de seus chefes chineses, que nunca dizem quando
trarão seu filho menor da China. Não sabe quanto deve e se haverá realmente o
reencontro, diante das precárias informações, apenas lhe resta submeter-se em
decorrência da sua ilegalidade daquela imigração.
O cineasta habilmente estabelece um vínculo de amizade da
chinesa com o velho pescador Bepi, conhecido como o Poeta (Rade Sherbedgia- em
desempenho irretocável). Uma pessoa de bom coração que desconhece as origens de
seu pai, apenas lembra que está ali há 30 anos, vindo da extinta Iugoslávia,
ainda sob o regime comunista de Tito e estabelecem um paralelo sobre o governo
de Mao Tsé-Tung, embora sem aprofundar-se em causas e efeitos, que estão subliminarmente
nas entrelinhas. A trama mostra que Shun Li também tem seu poeta no seu país
natal, fala das reverências que são feitas nas águas em qualquer lugar para
comemorar seu dia. É inevitável o surgimento de um vínculo de afeto naquela
relação sensível e calorosa de sutilezas para os espíritos solitários, mas que
botam fé no objetivo a ser buscado.
Há cenas de radiante lirismo como a visita de Shun Li num
barco pesqueiro até a cabana fincada no meio do rio, onde Poeta mora e guarda
seus apetrechos de pesca. Ali há as confissões singelas da jovem e sua história
comovente para reencontrar o filho ausente e toda a tristeza que habita seus
olhos, coração e alma. Logo surgem rumores maliciosos e preconceituosos de que
uma máfia de chineses usaria garotas para casarem com os velhos e herdarem
terras e bens, com o intuito de tomarem conta de redutos italianos. Um filme que aborda no truncamento da relação de amizade
pueril entre duas criaturas opostas apenas pelas raças e idades, mas próximas por
um vínculo de solidariedade e despidas de preconceitos, onde a truculência se
instala e eclode sob o manto da intransigência racial, fruto de uma xenofobia
escarrada, com hostilizações animalescas a pessoas de cores e idiomas
diferentes.
Numa analogia que deve ser ressaltada, o cineasta finlandês
Aki Karismäki ambienta com bastante eloquência este tema no filme O Porto (2011), na cidade portuária Le
Havre, na gris e sorumbática região da Normandia, retratando a solidariedade e
a amizade aos imigrantes que desembarcam clandestinamente na França, sendo mais
otimista que Claire Denis no instigante longa Minha Terra, África (2009); ou do arrasador O Segredo Grão (2007), do tunisiano Abdellatif Kechiche; ou ainda
do contundente Cachê (2003), de
Michael Haneke; sem esquecer de O
Visitante (2006), de Tom McCarthy, sobre a situação dos imigrantes ilegais,
também se questionava a política xenofóbica aplicada institucionalmente nos
EUA, derivando daí o ódio entre as raças.
Shun Li e o Poeta
não é somente uma película de pura poesia na defesa da solidariedade e da
amizade, mas antes de tudo um manifesto pela integração inter-racial, servindo
como reflexão dos excessos primitivos arraigados em populações conservadoras
num ambiente carregado de certa forma. Aponta o epílogo para um melhor bom
senso, neste manifesto crítico como um libelo contra a intransigência dos povos
ditos de primeiro mundo, irascível de uma política de imigração abominável que deve
ser questionada à exaustão.
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