quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Mostra de Cinema São Paulo (O Gebo e a Sombra)















O Gebo e a Sombra

Manoel de Oliveira parece um garoto de cabeça arejada e juvenil que fará 104 anos no dia 11 de dezembro. Embora seja um veterano na sabedoria, experiência e galhardia, no seu velho estilo formal e clássico de fazer cinema da melhor qualidade para um público ávido da essência da sétima arte, cada vez mais rara e distante, diante das mediocridades que se acumulam e brotam volumosamente pelas salas nas sessões teoricamente ditas vanguardas ou classicismos superados por formas esgotadas e velhacas.

O velho mestre português continua cada vez mais inspiradíssimo e novamente sua lucidez é abundante e não para de transbordar, tornando-o imortal e interminável para o bem dos cinéfilos que adoram ver uma obra deste tamanho como O Gebo e a Sombra, baseada numa peça de quatro atos, aproveitadas apenas três, escrita nos anos de 1920, pelo dramaturgo português Raúl Brandão. Desfila seus personagens heterogêneos nas telas escuras das salinhas, levando um frescor invejável e uma aula para todos que saboreiam um bom cinema. E já está trabalhando no seu próximo filme que será baseado no conto A Igreja do Diabo, de Machado de Assis.

Este seu último longa-metragem aborda o velho cansado contador e cobrador Gebo (Michael Lonsdale- que arrasa e comove em seu papel) que continua trabalhando para sustentar a família até altas horas da noite, fazendo escrituras contábeis num velho e surrado livro-caixa. Vive a com a esposa Doroteia (Claudia Cardinale-a veterana continua em boa forma) sempre na expectativa da volta ao lar do filho. Seu marido evita a qualquer preço magoá-la se contar as falcatruas do fruto de seu amor fiel, extraordinário e inesquecível pelas suas circunstâncias peculiares. Na mesma casa mora com eles a nora Sofia, chamada de filha pelo sogro (Leonor Amarante- presente na sessão de estreia em São Paulo), que sofre calada a ausência e teme o regresso do esquisito e rebelde marido João (Ricardo Trêpa- atuou em outros longas, entre eles o ótimo Singularidades de uma Rapariga Loura (2009), em atuação irreparável o neto do diretor). Faz parte ainda do elenco a vizinha fofoqueira Candidinha (Jeanne Moreau- outra veterana em grande forma) e o vizinho amante da poesia e das artes (Luís Miguel Cintra- que também não deixa a peteca cair).

Oliveira sabe como ninguém montar uma locação singular numa sala quase escura de uma casa antiga e em estado de decomposição, dando um foco principal para Gebo escrevendo no seu livro-caixa, refazendo cálculos de cabeça e sem máquinas auxiliares. Vara noites intermináveis para ter o sustento humilde, mas com honestidade da família. O café é sorvido como uma saborosa droga, acompanhado de biscoitos para manter-se ativo e não dormir, apesar da velhice que lhe assola, não desiste e vai em frente para ter o que comer no dia seguinte. Há nestas cenas uma alusão à crise preocupante da Europa e os estouros financeiros das economias de países como Grécia, Espanha e no caso específico, Portugal.

A grande expectativa do longa é a espera do filho pela mãe e pela mulher. Não existem indicativos concretos onde possa estar João, podendo ser um prisioneiro por atitudes e atos ilegais, porém ao sussurrar para sua nora em desespero, filosofa: “eu grito por dentro, mas falo baixo”.

É inegável que o cenário de um ambiente soturno ajuda o roteiro teatralizado com eloquência soberba, mas com uma linguagem indiscutivelmente cinematográfica. A fotografia é artesanalmente deslumbrante e realizada em meios-tons, sendo iluminadas apenas pelos lampiões antigos e velas nas partes superiores, uma bandeja com saborosas maçãs vermelhas, lembrando um quadro de arte, paredes rústicas, uma mesa antiga e uma porta que se abre em forma de cortina de teatro para a entrada em cena dos protagonistas em forma de dramaturgia clássica.

O veterano diretor mantém intacta a figura da mãe na esperança de saber a realidade sobre seu filho, um rapaz revoltado e que não aceita ser pobre, tal qual a genitora é ambicioso, custe o que custar e não aceita a mesmice que lhe revolta, bem como a rotina dos pais e da acomodada mulher, logo surge como um furacão fantasmagórico na sala para refutar a miséria, pois a honra dos pais lhe soa como algo promíscuo e abjeto. O diretor segue sua trajetória de dignidade e na reta final a confissão falsa é um sinal de que a vergonha e o amor pela mulher e o filho falam mis alto, contrapondo a honestidade com a ilegitimidade dos meios. João busca a liberdade como se depreende metaforicamente nos barcos ancorados na cena inicial, pensando deixar suas origens para trás e dar voos além-mar.

Oliveira ironiza a sociedade burguesa de Portugal com sua maestria formal como se fosse uma solenidade de um teatro de mentiras e prisões, num filme instigante e perturbador pela sua complexidade, desenvolve com soberba lucidez um estonteante painel de metáforas, encontradas nesta autêntica mini obra-prima, escalando-se como um dos favoritos para abocanhar o prêmio de melhor filme desta 36ª. Mostra de São Paulo, depois de ser bem recebido no Festival de Veneza.

Nenhum comentário: