O Gebo e a Sombra
Manoel de Oliveira parece um garoto de cabeça arejada e
juvenil que fará 104 anos no dia 11 de dezembro. Embora seja um veterano na
sabedoria, experiência e galhardia, no seu velho estilo formal e clássico de
fazer cinema da melhor qualidade para um público ávido da essência da sétima
arte, cada vez mais rara e distante, diante das mediocridades que se acumulam e
brotam volumosamente pelas salas nas sessões teoricamente ditas vanguardas ou classicismos
superados por formas esgotadas e velhacas.
O velho mestre português continua cada vez mais inspiradíssimo
e novamente sua lucidez é abundante e não para de transbordar, tornando-o
imortal e interminável para o bem dos cinéfilos que adoram ver uma obra deste
tamanho como O Gebo e a Sombra, baseada
numa peça de quatro atos, aproveitadas apenas três, escrita nos anos de 1920,
pelo dramaturgo português Raúl Brandão. Desfila seus personagens heterogêneos nas
telas escuras das salinhas, levando um frescor invejável e uma aula para todos
que saboreiam um bom cinema. E já está trabalhando no seu próximo filme que
será baseado no conto A Igreja do Diabo,
de Machado de Assis.
Este seu último longa-metragem aborda o velho cansado
contador e cobrador Gebo (Michael Lonsdale- que arrasa e comove em seu papel)
que continua trabalhando para sustentar a família até altas horas da noite,
fazendo escrituras contábeis num velho e surrado livro-caixa. Vive a com a esposa
Doroteia (Claudia Cardinale-a veterana continua em boa forma) sempre na
expectativa da volta ao lar do filho. Seu marido evita a qualquer preço
magoá-la se contar as falcatruas do fruto de seu amor fiel, extraordinário e
inesquecível pelas suas circunstâncias peculiares. Na mesma casa mora com eles a
nora Sofia, chamada de filha pelo sogro (Leonor Amarante- presente na sessão de
estreia em São Paulo ),
que sofre calada a ausência e teme o regresso do esquisito e rebelde marido
João (Ricardo Trêpa- atuou em outros longas, entre eles o ótimo Singularidades de uma Rapariga Loura (2009), em
atuação irreparável o neto do diretor). Faz parte ainda do elenco a vizinha
fofoqueira Candidinha (Jeanne Moreau- outra veterana em grande forma) e o
vizinho amante da poesia e das artes (Luís Miguel Cintra- que também não deixa
a peteca cair).
Oliveira sabe como ninguém montar uma locação singular numa
sala quase escura de uma casa antiga e em estado de decomposição, dando um foco
principal para Gebo escrevendo no seu livro-caixa, refazendo cálculos de cabeça
e sem máquinas auxiliares. Vara noites intermináveis para ter o sustento
humilde, mas com honestidade da família. O café é sorvido como uma saborosa
droga, acompanhado de biscoitos para manter-se ativo e não dormir, apesar da velhice
que lhe assola, não desiste e vai em frente para ter o que comer no dia
seguinte. Há nestas cenas uma alusão à crise preocupante da Europa e os
estouros financeiros das economias de países como Grécia, Espanha e no caso
específico, Portugal.
A grande expectativa do longa é a espera do filho pela mãe e
pela mulher. Não existem indicativos concretos onde possa estar João, podendo ser
um prisioneiro por atitudes e atos ilegais, porém ao sussurrar para sua nora em
desespero, filosofa: “eu grito por dentro, mas falo baixo”.
É inegável que o cenário de um ambiente soturno ajuda o
roteiro teatralizado com eloquência soberba, mas com uma linguagem
indiscutivelmente cinematográfica. A fotografia é artesanalmente deslumbrante e
realizada em meios-tons, sendo iluminadas apenas pelos lampiões antigos e velas
nas partes superiores, uma bandeja com saborosas maçãs vermelhas, lembrando um
quadro de arte, paredes rústicas, uma mesa antiga e uma porta que se abre em
forma de cortina de teatro para a entrada em cena dos protagonistas em forma de
dramaturgia clássica.
O veterano diretor mantém intacta a figura da mãe na esperança
de saber a realidade sobre seu filho, um rapaz revoltado e que não aceita ser
pobre, tal qual a genitora é ambicioso, custe o que custar e não aceita a
mesmice que lhe revolta, bem como a rotina dos pais e da acomodada mulher, logo
surge como um furacão fantasmagórico na sala para refutar a miséria, pois a
honra dos pais lhe soa como algo promíscuo e abjeto. O diretor segue sua trajetória
de dignidade e na reta final a confissão falsa é um sinal de que a vergonha e o
amor pela mulher e o filho falam mis alto, contrapondo a honestidade com a
ilegitimidade dos meios. João busca a liberdade como se depreende
metaforicamente nos barcos ancorados na cena inicial, pensando deixar suas
origens para trás e dar voos além-mar.
Oliveira ironiza a sociedade burguesa de Portugal com sua
maestria formal como se fosse uma solenidade de um teatro de mentiras e prisões,
num filme instigante e perturbador pela sua complexidade, desenvolve com
soberba lucidez um estonteante painel de metáforas, encontradas nesta autêntica
mini obra-prima, escalando-se como um dos favoritos para abocanhar o prêmio de
melhor filme desta 36ª. Mostra de São Paulo, depois de ser bem recebido no
Festival de Veneza.
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