sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Mostra de Cinema São Paulo (A Caça)

















A Caça

Thomas Vinterberg em parceria Lars von Trier, em março de 1995, em Copenhague, lançaram um manifesto cinematográfico internacional denominado Dogma 95, um movimento estético, exatamente no centenário de nascimento da sétima arte. Começa com a publicação de dez regras de ética e valores, conhecidos como voto de castidade, tendo como o objetivo principal o resgate de um cinema mais realista e menos comercial, anterior à exploração industrial de Hollywood, caso aprovado pelos seus membros, recebe o Certificado Dogma 95. Foi a mais inventiva escola, depois da celebrizada Nouvelle Vague.

Von Trier dá a partida com Os Idiotas (1998), segundo filme do movimento, depois vem Dançando no Escuro (2000), com o Palma de Ouro em Cannes de melhor filme, consagra o Dogma 95 com o extraordinário Dogville (2003), que tem sequência com Manderlay (2005), também em grande performance e fiel ao seu estilo proposto de um cinema mais simples, sem muita luz artificial e com cenários externos exclusivamente. Mas foi Vinterberg que recebeu o selo nº. 01 de certificado Dogma 95 para seu filme Festa de Família (1998), que mostra uma sessão de terapia coletiva, revelando ressentimentos e aflorando fortes revelações num aniversário. Fracassou com Dogma do Amor (2003), melhorou muito e cresce com Querida Wendy (2005). Retornou com vigor e todo seu fôlego em Submarino (2010), deixando definitivamente para trás o movimento que criou, numa trama bem urdida de dois irmãos com grandes recordações e feridas abertas de uma infância conturbada pela tragédia da perda do caçula e, sobretudo, pela convivência diária com a mãe alcoólatra e agressiva com seus dois filhos maiores. Símbolo de um lar desestruturado e destroçado pelo vício e a morte rondando permanentemente.

Agora na 36ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano lança A Caça, que tem uma trama centrada em Lucas (Mads Mikkelsen- impecável na interpretação) que acaba de se divorciar, com 40 anos, arruma um emprego numa creche de crianças até 6 anos, reconstrói sua vida com uma nova namorada e aos poucos vai conquistando a confiança do filho adolescente Marcus.

O grande mote do filme é a mentira e a injustiça que se faz sem provas concretas contra um homem inocente, não paira nenhuma dúvida para o espectador sentado na cadeira do cinema, mas a bola de neve que se espalhou contra Lucas é praticamente irreversível e o mal-estar vai tomando conta dos personagens envolvidos, inclusive o pai da suposta vítima e melhor amigo do acusado explode em fúria. Cria-se uma atmosfera de violência e vingança com o passar do tempo.

Vinterberg deixa propositalmente que o espectador saiba da inocência e a perversidade perpetrada contra aquele funcionário subalterno vitimizado pelo sistema feudal de bárbaros, tornando sua vida um inferno de Dante. É considerado por todos os pais como um bandido inescrupuloso, tomando conta a notícia após ser preso e responder processo. Espraia-se na comunidade pequena do interior da Dinamarca como uma rajada vinda de uma metralhadora giratória, inclusive com forte reação de truculência pelos empregados do supermercado. Um drama pessoal falsamente engendrado e levado em frente pela afoita diretora do estabelecimento, sem demonstrar qualquer cautela ou investigação preliminar, antes de imputar a culpa a seu subalterno de abuso sexual de uma criança, considera como definitivo o depoimento de uma menina de 4 anos.

O filme aborda a questão de forma transparente e coloca em xeque a crença de que crianças não mentem. A perversidade está nos rostos contraídos de cada pai e Lucas sofre indubitavelmente um linchamento moral sem precedentes, contrastando com a nevasca que cai e as luzes que iluminam o Natal, uma data de redenção e de amor, mas que passa distante daquele lugar. Ou seja, a infância não é um paraíso de inocência como pensam os pais. Freud constatou que os supostos ataques sexuais quase sempre existiam na imaginação dos pacientes e longe de uma realidade de pervertidos. Portanto, cuidado e muita cautela para o que as crianças dizem, pois não tem compromisso com a verdade.

A Caça lança para a plateia atônita que as evidências hipotéticas de um suposto crime não podem ser julgadas como definitivas, embora haja uma pequena verossimilhança e um induzimento contrário ao acusado. Lembram do caso de repercussão nacional da Escola de Base de São Paulo, onde a imprensa acusou, julgou e condenou sumariamente os proprietários daquele estabelecimento, sendo depois todos absolvidos pela justiça.

Um drama contundente sobre os preconceitos contemporâneos e de pressão de uma casta dentro de uma comunidade conservadora e caolha sobre os direitos e princípios morais do indivíduo acuado e liquidado moralmente para a eternidade como se depreende da última cena da caçada no mato. Um instigante olhar reflexivo da injustiça pelo julgamento apressado, porém dilacerante nesta estupenda película dinamarquesa sobre a dignidade.

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