A Caça
Thomas Vinterberg em parceria Lars von
Trier, em março de 1995, em Copenhague, lançaram um manifesto cinematográfico
internacional denominado Dogma 95, um movimento estético, exatamente
no centenário de nascimento da sétima arte. Começa com a publicação de dez
regras de ética e valores, conhecidos como voto de castidade, tendo
como o objetivo principal o resgate de um cinema mais realista e menos
comercial, anterior à exploração industrial de Hollywood, caso aprovado pelos
seus membros, recebe o Certificado Dogma 95. Foi a mais inventiva
escola, depois da celebrizada Nouvelle Vague.
Von Trier dá a partida com Os
Idiotas (1998), segundo filme do movimento, depois vem Dançando no
Escuro (2000), com o Palma de Ouro em Cannes de melhor filme, consagra o Dogma
95 com o extraordinário Dogville (2003), que tem sequência com Manderlay
(2005), também em grande performance e fiel ao seu estilo proposto de um
cinema mais simples, sem muita luz artificial e com cenários externos
exclusivamente. Mas foi Vinterberg que recebeu o selo nº. 01 de certificado
Dogma 95 para seu filme Festa de Família
(1998), que mostra uma sessão de terapia coletiva, revelando ressentimentos e
aflorando fortes revelações num aniversário. Fracassou com Dogma do Amor (2003), melhorou muito e cresce com Querida Wendy (2005). Retornou com vigor
e todo seu fôlego em Submarino (2010),
deixando definitivamente para trás o movimento que criou, numa trama bem urdida
de dois irmãos com grandes recordações e feridas abertas de uma infância
conturbada pela tragédia da perda do caçula e, sobretudo, pela convivência
diária com a mãe alcoólatra e agressiva com seus dois filhos maiores. Símbolo
de um lar desestruturado e destroçado pelo vício e a morte rondando permanentemente.
Agora na 36ª. Mostra de
Cinema de São Paulo deste ano lança A
Caça, que tem uma trama centrada em Lucas (Mads Mikkelsen- impecável na
interpretação) que acaba de se divorciar, com 40 anos, arruma um emprego numa
creche de crianças até 6 anos, reconstrói sua vida com uma nova namorada e aos
poucos vai conquistando a confiança do filho adolescente Marcus.
O grande mote do filme é a mentira e a injustiça que se faz
sem provas concretas contra um homem inocente, não paira nenhuma dúvida para o
espectador sentado na cadeira do cinema, mas a bola de neve que se espalhou
contra Lucas é praticamente irreversível e o mal-estar vai tomando conta dos
personagens envolvidos, inclusive o pai da suposta vítima e melhor amigo do
acusado explode em
fúria. Cria-se uma atmosfera de violência e vingança com o
passar do tempo.
Vinterberg deixa propositalmente que o espectador saiba da
inocência e a perversidade perpetrada contra aquele funcionário subalterno
vitimizado pelo sistema feudal de bárbaros, tornando sua vida um inferno de
Dante. É considerado por todos os pais como um bandido inescrupuloso, tomando
conta a notícia após ser preso e responder processo. Espraia-se na comunidade
pequena do interior da Dinamarca como uma rajada vinda de uma metralhadora giratória,
inclusive com forte reação de truculência pelos empregados do supermercado. Um
drama pessoal falsamente engendrado e levado em frente pela afoita diretora do estabelecimento,
sem demonstrar qualquer cautela ou investigação preliminar, antes de imputar a
culpa a seu subalterno de abuso sexual de uma criança, considera como
definitivo o depoimento de uma menina de 4 anos.
O filme aborda a questão de forma transparente e coloca em
xeque a crença de que crianças não mentem. A perversidade está nos rostos contraídos
de cada pai e Lucas sofre indubitavelmente um linchamento moral sem
precedentes, contrastando com a nevasca que cai e as luzes que iluminam o
Natal, uma data de redenção e de amor, mas que passa distante daquele lugar. Ou
seja, a infância não é um paraíso de inocência como pensam os pais. Freud constatou
que os supostos ataques sexuais quase sempre existiam na imaginação dos
pacientes e longe de uma realidade de pervertidos. Portanto, cuidado e muita
cautela para o que as crianças dizem, pois não tem compromisso com a verdade.
A Caça lança para
a plateia atônita que as evidências hipotéticas de um suposto crime não podem
ser julgadas como definitivas, embora haja uma pequena verossimilhança e um induzimento
contrário ao acusado. Lembram do caso de repercussão nacional da Escola de Base
de São Paulo, onde a imprensa acusou, julgou e condenou sumariamente os
proprietários daquele estabelecimento, sendo depois todos absolvidos pela
justiça.
Um drama contundente sobre os preconceitos contemporâneos e
de pressão de uma casta dentro de uma comunidade conservadora e caolha sobre os
direitos e princípios morais do indivíduo acuado e liquidado moralmente para a
eternidade como se depreende da última cena da caçada no mato. Um instigante
olhar reflexivo da injustiça pelo julgamento apressado, porém dilacerante nesta
estupenda película dinamarquesa sobre a dignidade.
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