quarta-feira, 30 de agosto de 2017

João, O Maestro


Superação de Vida

Considerado unanimemente como um dos grandes talentos da música brasileira, o maestro João Carlos Martins volta a ser tema no drama cinebiográfico João, O Maestro, filme apresentado recentemente na abertura do 45º. Festival de Cinema de Gramado deste ano. Escrito e dirigido por Mauro Lima, um especialista em cinebiografias, foi também o realizador de Meu Nome Não É Johnny (2008) e Tim Maia (2014), no qual o sarcasmo e a vida desregrada surgiam como pilares. A história do pianista descendente de uma família de portugueses é justamente o contrário por ser solene e até moderada. Recontada novamente, depois de ser transposta para a telona no documentário A Paixão Segundo Martins (2004), pela ótica da cineasta alemã Irene Langemann, que retrata a trajetória de triunfos, grandes momentos e fracassos do músico, traz no título uma brincadeira com Paixão Segundo S. Mateus, de Bach, mostra a herança deixada na gravação completa da obra do compositor alemão, que totalizam 21 CDs.

A trama no longa brasileiro é apresentada em três fases que se intercalam em flashbacks. Davi Campolongo é o intérprete na fase de criança, quando já se mostrava um apaixonado por música clássica e um prodígio do piano com amplo domínio de notas e partituras, embora tivesse uma saúde debilitada na infância. Iniciou a carreira aos 7 anos, quando recebeu um prêmio. A partir daí, estudou e se tornou uma celebridade mundial com apresentações no Uruguai, Argentina, EUA, Bulgária, Alemanha e outros países da Europa. É vivido por Rodrigo Pandolfo quando jovem, o ótimo ator gaúcho que despontou em Elis (2015) e Minha Mãe É Uma Peça (2013), tem uma entrega irretocável pela dedicação à arte e a obsessão pelo perfeccionismo técnico do personagem retratado. A terceira e última fase é a adulta, e que tem no papel o ator global Alexandre Nero, de discreta força dramática e com um desempenho burocrático, sendo um pouco mais contido seu histrionismo.

O protagonista deslancha e firma-se como um dos maiores intérpretes e conhecedores mundiais do vasto repertório de Johann Sebastian Bach (1685-1750), músico, compositor e organista, que faz parte da tríade ao lado de Mozart e Beethoven. Martins esteve presente ao lado das mais importantes orquestras do mundo e teve contato com artistas renomados. Pandolfo dá uma sustentação ao biografado numa construção psicológica exemplar, dá vida e emoção no maior papel de sua carreira, mesmo que esteja apenas dublando, atua com uma assombrosa naturalidade, muito além da expectativa. Está perfeito ao se desreprimir sexualmente num bordel em Montevidéu, há uma boa passagem pelas festas memoráveis com mulheres e conquistas amorosas que levam ao primeiro casamento (Fernanda Nobre), os dois filhos e à separação. Mas a carreira teve de ser interrompida por causa de dois acidentes. O primeiro ocorreu em 1966, em Nova Iorque, quando joga bola com os atletas da Portuguesa de Desportos (SP) num treino em um parque, seu time do coração, uma pedra entrou em seu braço, prejudicando os movimentos da mão direita que trará sérios transtornos. Depois de um longo tratamento, voltou a tocar com esforço redobrado, apresenta-se em concertos com uma mão só. Porém, o pior acidente viria mais tarde, em 1995, na Bulgária, ao reagir a um assalto levou um golpe na cabeça, que resultou numa lesão cerebral com desdobramentos na fala e nos movimentos da mão esquerda pelas dores intensas, além das dificuldades inerentes que o levaria a abandonar a carreira por muitos anos e se dedicar a empresariar cantores e lutas de boxe.

Com a nova esposa (Alinne Moraes) surge o retorno e a reinvenção do pianista, que não desiste da música. É o começo de mais uma superação diante das precárias condições físicas para tocar piano, que se dá na Orquestra Bachiana Filarmônia de São Paulo, através do auxílio institucional do SESI/FIESP, quando é guindado a regente. O diretor, porém, se perde nesta fase que encaminha para o desfecho e quase que liquida, mas macula, a isenção da realização, ao confundir merchandising com uma agressiva propaganda explícita e desnecessária de um dos patrocinadores do drama. Ficaria de bom tamanho se fosse inserida somente nos créditos finais. Apesar da derrapada, Lima tem méritos inquestionáveis neste tributo humanista ao insuperável homem da música, por construir um cenário edificante com acerto na reconstrução de época e a trajetória pobre na infância sendo bem pontificada.

Um bom filme que oscila do intenso para um pragmatismo recorrente no epílogo, numa narrativa didática com um elenco em que há homogeneidade, inclusive nas dublagens perfeitas na história incomum do emblemático maestro. As relações atribuladas com conquistas e desfazimentos afetivos pela compulsão, os acidentes pelos azares da vida sem pieguismos, mas além de tudo, um impressionante vigor acima de tudo para superar as turbulências sem deixar o desânimo tomar conta. São circunstâncias essenciais para uma vida intensa do virtuose biografado, de altos e baixos, advindos de reveses e vitórias das armadilhas do destino e sua força para manter-se de pé nos piores momentos neste passeio de fatos verídicos que marcaram uma existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma trajetória recheada de futilidades, dando lugar para uma saga que ainda segue o mestre enfrentando pelos infortúnios das dores físicas crônicas.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Afterimage


Arte e Política

Afterimage é o derradeiro filme do longevo cineasta polonês Andrzev Wajda, morto ano passado, aos 90 anos, em 9 de outubro, logo após o lançamento no Festival de Toronto, no Canadá, em 10 de setembro de 2016. Considerado um dos maiores diretores de todos os tempos, começou a estudar cinema depois da Segunda Guerra Mundial, na qual participou lutando com a Resistência Francesa, em 1942. Deixou um legado histórico e significativo para a sétima arte, com realizações abrangentes e muitas reflexões na construção de uma filmografia poderosa de humanismo e crítica contumaz da política repressora pela subserviência de seu país. Conquistou a Palma de Ouro em Cannes com O Homem de Ferro (1981), dirigiu os inesquecíveis Cinzas e Diamantes (1958), Terra Prometida (1974), O Homem de Mármore (1976), Danton- O Processo da Revolução (1982) e Katyn (2007). Pela trajetória de participação com quatro longas na disputa de melhor filme estrangeiro, ganhou em 2000 um Oscar honorário pelo conjunto da obra.

Sua despedida se deu em alto nível e novamente marca presença positiva com este drama biográfico, uma narrativa sem subterfúgios e com profundidade sobre a vida do pintor vanguardista Wladyslaw Strzeminski (1893-1952), nascido na Bielorrússia, mas cidadão polonês, com a estupenda interpretação de Boguslaw Linda. O cenário temporal da magnífica reconstituição de época vai de 1948 a 1952, num retrato das dificuldades físicas pela deficiência da falta de uma perna e um braço do artista, que sofre com o ódio, a crueldade e a indiferença das autoridades da Polônia, por ter batido de frente contra o cerceamento político e cultural às suas pinturas pelos soviéticos depois da II Guerra Mundial. Porém, apesar de toda a censura e castigo, torna-se um dos mais aclamados e renomados criadores do século XX.

Wajda mostra com realismo a dor e a amargura dos quadros sendo destruídos e apagados da memória de uma sociedade sufocada. O biografado sofre humilhações públicas por não conseguir emprego em lugar algum, diante de sua desobediência em aderir ao regime totalitário imposto pela extinta URSS, além da perseguição à filha (Bronislawa Zamachowska), com quem tem uma relação conturbada desde a separação da ex-esposa, também há ameaças e hostilidades diretas aos fiéis alunos da arte em seu local de trabalho. O prólogo do drama já dá indícios e evidenciam dificuldades que teria, na bela alegoria dos entraves físicos, quando rola como uma bola por um barranco abaixo para receber uma nova aluna que se juntará com o grupo de estudantes no campo da Escola Belas Artes de Lodz. Nas aulas, o seleto grupo fica atento à explicação do mestre sobre o sentido da imagem residual que permanece na visão após a versão original ser observada, dando novas cores e formas, que dá título ao longa-metragem da expressão Powidoki.

O cultuado cineasta Aleksandr Sokurov já havia retratado esta temática instigante sobre a opressão e o poder da arte em Francofonia- Louvre Sob Ocupação (2015), ao flutuar de uma simples narrativa para mesclar um docudrama, rompendo padrões clássicos na abordagem com desenvoltura e iluminar estas relações com a força dos usurpadores, através da sedução pela bela caminhada no Museu do Louvre, o singular templo edificante da civilização na preservação da história. Wajda denuncia para sugerir a interação e a aproximação, estreitando as distâncias no conjunto de aspectos peculiares, artísticos, morais e materiais de épocas dos países e das sociedades em seus falsos picos revolucionistas. Renova e não deixa margem para dúvidas no seu libelo contra os desmandos ditatoriais com um visual arrebatador da manutenção e da exaltação à arte como forma de sair da escuridão pelos caminhos mostrados como irreversíveis da resistência. Um período obscuro refletido no cinza captado nas imagens da fabulosa fotografia que dá uma conotação de uma visão dos tempos duros de imposição ferrenha aos amigos solidários, além dos alunos seguidores do artista que são jogados no ostracismo por serem resistentes à ética da preservação de um ideal sonhado.

Afterimage é um filme exemplar pela singularidade em seu contexto para celebrar o ocaso de um gênio da criação e da essência cinematográfica. Um retrato fidedigno da abrupta ocupação nazista em conluio com a Rússia que sustentou com toda a potência tirana pelo poderio bélico, subjugando seu país para o comunismo, sem deixar opção para outro regime. Strzeminski foi um dos fundadores do primeiro museu de arte da Polônia e um dos principais da Europa, mas mesmo assim não foi relevado, pois seu crime fora imperdoável, tendo em vista que as acusações se deveram pelo não engajamento cultural doutrinário para implantar o realismo preconizado pelo socialismo que alijaria o rigor estético formal sem ideologias de cunho político. O artista repelia terminantemente qualquer tipo de fusão, defendia a liberdade de expressão pela pureza da arte inspirada, refutando ideias e dogmas ditados por generais de plantão com o intuito de atrair o povo polonês para um sistema por decreto, através da burocracia dominante comandada por um vil ministro da Cultura simpático à intervenção. Uma narrativa com fôlego exemplar que foge da obviedade e amplia a universalidade do tema, que encontra sustentação no roteiro enxuto e direto de uma atmosfera que vem à tona com lucidez humanista, bem alicerçada neste vigoroso drama que encerrou a carreira com dignidade de Andrzev Wajda.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

O Filme da Minha Vida


Pai e Filho

O escritor chileno Antonio Skármeta é uma inesgotável fonte de inspiração para os cineastas e roteiristas atentos. Michael Redford levou para a telona o best-seller O Carteiro e o Poeta (1994); Fernando Trueba realizou A Dançarina e o Ladrão (2009) com base no romance O Baile da Vitória; já o conterrâneo Pablo Larraín adaptou para o cinema uma peça inédita El Plebiscito e consagrou-se com No (2012), indicado pelo seu país ao Oscar de melhor filme estrangeiro. O mineiro Selton Mello, por uma daquelas felizes coincidências da vida num encontro casual, teve sugerido pelo próprio romancista que lhe deu a ideia para adaptar seu livro Um Pai de Cinema. Era o que faltava para materializar seu terceiro longa-metragem, rebatizado de O Filme da Minha Vida, transpondo a história do interior do Chile dos anos de 1950 para a serra gaúcha, com locações nos municípios de Bento Gonçalves e Garibaldi (RS), na década de 1960, com a colaboração do roteirista Marcelo Vindicatto.

Um enredo que tem por tema a recorrente relação do núcleo familiar e o vínculo afetivo entre pai e filho, com um cenário estonteante de paisagens e brumas captadas pelas lentes do renomado diretor de fotografia Walter Carvalho. Selton segue sua trajetória intimista, como já o fizera na excelente estreia com o denso drama Feliz Natal (2008), ao abordar os vínculos de família corroídos pelo tempo e o balanço da vida do personagem principal, nas busca de reencontrar-se com o mundo. Na realização anterior, O Palhaço (2011) foi visto por mais de 1,5 milhão de pessoas, com sucesso de público e aclamado pela crítica, demonstrou todo seu talento no mergulho circense de personagens que buscam pelo interior do Brasil suas glórias e a maneira de sobreviver em um retrato fiel dos bastidores e a difícil arte de fazer rir, com ar melancólico e saudosista dos velhos palhaços. Um estilo muito semelhante na forma encontrada naquela galeria de figuras bizarras e a peregrinação pelas estradas poeirentas no paradigmático Bye Bye Brasil (1979), de Cacá Diegues, que tinha no roteiro três artistas mambembes cruzando o país, fazendo espetáculos para o setor mais humilde da população que ainda não tinham acesso à televisão.

O Filme da Minha Vida é uma trama intimista numa viagem ao passado, quando Tony Terranova (Johnny Massaro- de impecável desempenho), um jovem professor de 20 anos volta dos estudos da Capital para sua cidade natal, a fictícia Remanso, é surpreendido com a notícia de que seu pai, Nicolas (o consagrado ator francês Vincent Cassel) havia retornado para a França, seu país de origem, sob alegação de sentir falta dos amigos. Surge uma nova realidade, logo começa a lecionar para uma turma de adolescentes que, como ele, lidam com os conflitos e as inexperiências juvenis. O recém-chegado rapaz está diante da ausência daquele homem que lhe ensinou a andar de bicicleta, dar bons conselhos e, principalmente, amar o cinema acima de tudo, falando sempre de como gostar de bons filmes. As lembranças são doloridas e a saudade é imensurável e, além de tudo, observa a mãe (Ondina Clais) sofrendo em silêncio e sem dar maiores explicações sobre o abandono do marido.

Como Leon Tolstoi que ensinava: ao falar de sua aldeia estará falando do mundo, Selton desenvolve um painel romântico e enfatiza as vicissitudes da vida, a beleza de seu lugar com aparência de certa ingenuidade dos habitantes dali e as mazelas decorrentes das ocorrências naturais do cotidiano e pertinentes do ser humano. Aproxima-se de Luna (Bruna Linzmeyer), uma bela garota com quem pretende namorar, mas apenas flerta de longe na fase inicial, e que tem na estranha irmã (Beatriz Arantes), a chave do enigma que irá se desvendar no epílogo, além do vizinho e suposto amigo Paco (Selton Mello), um esquisito criador de porcos que nutre uma paixão velada pela sua mãe. É com ele que irá até o prostíbulo na cidade vizinha Fronteira para alguns fugazes momentos de prazer, onde aparece em rápidas cenas Skármeta como proprietário do bordel, ao melhor estilo Hitchcock, marcando presença. Completa o elenco o maquinista (Rolando Boldrin) e sua filosofia sobre a pressa em dar partida ao trem Maria Fumaça, com o olhar de testemunha dos fatos que pairam naquele lugar de poucos acontecimentos. Apesar de invasiva em algumas cenas, a trilha sonora é da melhor qualidade, com canções francesas primorosas, em especial, Charles Aznavour com Hier Encore e sua peculiar interpretação retratando os vinte anos; passando por Coração de Papel, com Sérgio Reis, uma antiga música que fez sucesso no início da carreira do cantor, que depois se desviou para o sertanejo.

Um filme que se debruça sobre as reminiscências e a angústia do tempo que custa a passar, com um tom nostálgico das lembranças do passado que se confundem com o presente, através de memórias e alguns flashbacks entre o pai e o filho na infância alegre, que direciona para o encontro inusitado na saída da sessão, na qual Tony assistia O Rio Vermelho (1948), o clássico faroeste do mestre Howard Hawks com o mocinho interpretado pelo lendário John Wayne. Embora esteja aquém das obras anteriores, sem uma pretensão maior como consistência de uma reflexão aprofundada, O Filme da Minha Vida é o mais disperso dos três, ainda que haja uma poética narrativa, com um elenco homogêneo em que ninguém chega a destoar, com uma fotografia esplendorosa e uma trilha que embala com deliciosas melodias. Um passeio ao passado sem pieguismos, com muitas imagens e uma visão onírica bem centrada numa fantasia de muito humanismo, doçura e um desfecho bem aos moldes dos velhos romances nostálgicos entrelaçados, sem perder a ternura para os incômodos conflitos que se sucedem, com a assinatura deste realizador que segue fazendo carreira como ator e conquista bons subsídios para uma promissora jornada por trás das câmeras com o olhar sutil para as delicadezas do microcosmo familiar.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Dunkirk


Encurralados

O filme Dunkirk- a versão nacional mantém o título em inglês- foi inspirado na história verídica da Operação Dínamo, na qual houve o resgate histórico realizado no início da Segunda Guerra Mundial, para salvar cerca de 400 mil homens das tropas aliadas da Inglaterra, França, Bélgica e Escócia. Foram literalmente encurralados contra o Canal da Mancha pelas forças do exército e aeronáutica nazistas de Adolf Hitler na Praia de Dunquerque, no Norte do território francês, numa batalha feroz sem limites e de proporções gigantescas. O local é raso e só na ponta do molhe que avança mar adentro haveria alguma possibilidade de atracar os destróieres que tentam desesperadamente recolher as filas enormes dos soldados acuados e sem uma perspectiva de fugir daquele lugar inóspito, um buraco sem saída, com a morte rondando a cada minuto.

O longa-metragem dirigido com habilidade pelo britânico Christopher Nolan, o mesmo do suspense Amnésia (2000), o drama O Grande Truque (2006), a ficção científica A Origem (2010), o super-herói Batman- O Cavaleiro das Trevas (2008), e Interestelar (2014). Um cineasta adequado para a combinação de suspense e entretenimento para o cinema-espetáculo. Realiza com bastante fôlego esta superprodução de guerra, numa abordagem de muito realismo e dificuldades extremas para a missão do resgate de milhares de combatentes durante o intenso bombardeiro aéreo, problemas com a maré baixa para os navios ancorarem. O governo britânico através de seu primeiro-ministro, Winston Churchill faz um discurso eufórico ao pedir ajuda aos civis ingleses para que, solidariamente, em seus barcos particulares de pesca, iates de passeios, botes e traineiras ajudem e façam quase que uma missão impossível na praia francesa, ou seja, trazer de volta para casa os compatriotas prioritariamente, como se vê nas cenas dramáticas de sobrevivência, deixando em segundo plano os coitados dos aliados.

A história é contada em três momentos distintos e entrelaçada, no fim de maio de 1940: explora a experiência nas batalhas por terra; foca com precisão os pilotos rasgando o céu em combates e perseguições a aviões caças alemães pelos ingleses; e dá uma entonação de intensidade com muito frenesi em alto-mar, no confronto de gigantes das forças aéreas despejando bombas sobre as cabeças dos soldados da força resistente aliada, bem como a tentativa dramática de socorrer os sobreviventes dos destroços dos navios em chamas afundando. Acompanha o piloto Farrier (Tom Hardy) que precisa destruir um avião inimigo; mostra o conterrâneo civil britânico Dawson (Mark Rylance) levando seu barco de passeio para ajudar a resgatar o exército de seu país; além do jovem soldado Tommy (Fionn Whitehead) como símbolo do medo da morte e sua luta para escapar de qualquer maneira. Porém está bem aquém do inesquecível prólogo do notável O Resgate do Soldado Ryan (1998), de Steven Spielberg.

O épico faz um retrato da falta de provisões e de água potável, das dificuldades de recuperação dos feridos, a estratégia errada do local para os combates, além da preferência pela retirada dos militares britânicos, com algumas pitadas leves de crítica social aos governos da época, exceto um personagem que questiona superficialmente sobre os filhos que morrem no front por culpa de quem os empurra para lá, bem distante do arrebatador discurso feito em tom de protesto no admirável drama Frantz (2016), de François Ozon. Dunkirk está mais para um tributo respeitoso ao império britânico derrotado do que uma homenagem reverencial às vítimas das forças aliadas, ou ainda um libelo antibelicista. Embora a dor das perdas e a derrota estejam estampadas nos rostos dos heróis sobreviventes, o cineasta não deixa de dar uma patriotada no desfecho, que evidencia as pretensões da obra e seu cunho de parcialidade, com didatismo de valores da tradição e da família, como visto em Argo (2012), pelo produtor, diretor e ator Ben Affleck. Eis um filme de guerra para ser visto em tela grande, de preferência em Imax, tendo vista que foi rodado em 70 milímetros, é desaconselhável ser assistido em plataformas de streaming, que perderia em muito a qualidade do som e na grandiloquência das cenas pirotécnicas de bombardeiros por terra, mar e ar.

Demora um pouco, mas logo os personagens se cruzam em suas sagas de luta num roteiro flexível e complexo pelo clímax neurotizante sem tempo para muitas delongas, deixando o fervor do cenário se diversificar. Há poucos diálogos, muitas bombas quase que ininterruptas explodindo e corpos boiando como reflexo de uma carnificina doentia pela estupidez humana, mas com uma reflexão pálida e sem um aprofundamento das causas e com raros questionamentos. Os efeitos se sobressaem para dar um tom de cinemão para aquele espectador menos exigente com teorias e satisfeito com o resultado aterrador imposto aos seus olhos de testemunha dos fatos, sem se preocupar com as redundâncias do realizador pelo extravagante som dos ruídos dos motores confundido com a trilha sonora de um melodrama lacrimejante e da imagem repetitiva captada no meio do turbilhão. A fotografia oscila entre cores radiantes para um saturamento de uma tomada em Tecnicolor completamente ultrapassada. Uma obra com o viés politicamente correto, que quase funciona quando retrata as individualidades, mas derrapa ao negligenciar as causas políticas e econômicas que pairam da loucura dos conflitos coletivos da chacina dos mortos pela irracionalidade.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

De Canção em Canção


Sussurros e Contemplações

Terrence Malick tem por formação a filosofia e é chamado de cineasta bissexto e ermitão. Levava uma vida enclausurada e não é de dar entrevistas, raramente é fotografado e passava anos sem filmar. Perfeccionista em seu trabalho, é conhecido por rodar centenas de negativos e usa seu tempo burilando material para editar uma obra. Realizou em 2011 o fabuloso A Árvore da Vida, que lhe deu a Palma de Ouro em Cannes. Porém, ultimamente, não está deixando passar muito tempo para lançar um novo longa e já é visto em público, abandonando gradativamente a clausura. Em forma de continuidade realizou Amor Pleno (2012), filosofando sobre o amor e as paixões desencontradas, o vazio existencial e a busca pelo imaginário da completude da vida. Se no drama transcendental anterior falava sobre a ausência de Deus, interligando religião com a perda de um dos três filhos, questionando a opressão do pai, no filme subsequente reverteu a situação e fez uma verdadeira ode a Cristo pelos ensinamentos de uma padre exilado que lutava arduamente com os desígnios da vocação. Em 2015, filmou Cavaleiro de Copas, tão irregular como o antecessor, ambas as produções descartáveis.

De Canção em Canção é seu oitavo longa-metragem, uma obra com uma trama novamente experimental sobre o nada e o tudo, ou o nada sobre o nada, recheado de traições, culpas, ressentimentos e retornos às mancheias, num enredo pouco convencional que prima pela inconstância e uma indefinição estéril. O roteiro é de idas e vindas, sussurros do início ao fim, com palavras e juras de amor brotando e se dispersando com o andar da história. A abusiva narrativa em off com diálogos repletos de lugares-comuns é debilitada e logo se esvai num cenário de personagens que flutuam como zumbis à procura de algo sem muita clarividência, em que as evasivas estão preponderantes e transbordam sobre a consistência cinematográfica de uma realidade objetiva. Tanto na forma como no conteúdo há o empirismo estético e recorrente de figuras humanas flanando de um lado para outro, sem se encontrar com o que querem ou nem sabem o que procuram. Descontextualizado e solto para manejar em off com som, imagem e música, resultando numa miscelânea desastrosa de montagem que sucumbe. Faltou clímax para a realização de Malick, que se passa nos bastidores de um efervescente festival de rock e suas tendências musicais em Austin, no Texas.

O enredo foca em dois casais: os compositores Faye (Rooney Mara) e BV (Ryan Gosling), o magnata da música (Michael Fassbender) com a sonhadora garçonete Rhonda (Natalie Portman). Eles perseguem o sucesso através de um cenário de rock and roll, sedução, decepções, flertes, sexo e drogas. Os personagens se encontram e trocam de parceiros em relações livres e bissexuais numa ampla cobertura com uma bela paisagem, mas sem a essência do cinema, através de uma explanação pulverizada que carrega no artificialismo, sem vínculo com uma existência distante e completamente vazia. Interagem com seus ídolos John Lydon, Red Hot Chili Peppers, Florence Welch e Pati Smith. Tudo é falso, nada é verdadeiro. Desfilam colagens de imagens numa fotografia esplendorosa em contraluz, o corte seco num enquadramento enviesado de rios, pássaros, um céu carregado com contrastes, um templo religioso, uma lanchonete, e por aí vai. Uma pretensa ousadia, mas sem densidade dramatúrgica no contexto das cenas que se tornam áridas por ausência rítmica de elaboração plausível.

De Canção em Canção está mais próximo de Amor Pleno, do que de A Árvore da Vida, completamente distanciado dos inesquecíveis Terra de Ninguém (1973) e Cinzas no Paraíso (1978), e do extraordinário drama de guerra Além da Linha Vermelha (1998), que realizou vinte anos depois do último sucesso cultuado, retornando em 2005 com O Novo Mundo. Malick, aos 73 anos, parece ter perdido o gosto de escrever seus roteiros e filmar. Dá sinais evidentes de cansaço e está cada vez mais indolente, como demonstra nas suas três últimas realizações tediosas. São filmes com roteiros soltos embevecidos de devaneios enfadonhos que logo cairão no esquecimento. Abusa do experimentalismo e da repetitiva contemplação, um método perigoso que acaba se tornando obsoleto.

Da trilha sideral, nem o blues Rollin’ and Tumblin, tantas vezes regravado, desta vez por Bob Dylan, salva o prolixo longa da mesmice, que tem um elenco recheado de estrelas, além dos personagens principais, os coadjuvantes têm nomes conhecidos como Holly Hunter, Cate Blanchett, Bérénice Marlohe e Val Kilmer, que não conseguem dar equilíbrio e sustentar, soçobra por falta de uma direção que se mostra frouxa. Sobra pouco, ou quase nada deste drama que tinha tudo para arrebatar, mas pelo contrário, faz as salas perderem boa parte dos espectadores antes do epílogo previsível, de pouca lucidez, que prega um moralismo barato: para ser feliz tem que ter uma vida simples. É o tédio fastidioso que danifica a ideia da continuidade, causando bocejos, diante do excessivo esvaziamento da proposta. Parece ser o crepúsculo de um notável diretor que perdeu a inspiração, embora tenha inegável talento já demonstrado em sua apreciada filmografia pungente. Talvez um período sabático lhe fizesse bem para um novo ciclo de fertilidade.

terça-feira, 18 de julho de 2017

Frantz


O Perdão

O prolífico cineasta francês François Ozon, nome constante em festivais como Cannes e Berlim nos últimos anos, está de volta com Frantz, uma adaptação livre da peça escrita por Maurice Rostand, que já havia sido adaptada para o cinema por Ernst Lubitsch em Não Matarás (1932). Um dos filmes mais badalados no último Festival Varilux, com sucesso de público e visto com entusiasmo pela crítica internacional. O drama histórico recebeu onze indicações ao Prêmio César, o Oscar da França, abocanhando a láurea de melhor fotografia que oscila do preto e branco nos momentos de tristeza para o colorido que pressupõe a esperança fugaz, sem a pretensão estilística, mas como um ingrediente eficiente da narrativa, e ainda agraciou com o prêmio de melhor jovem atriz no Festival de Veneza de 2016 para a bela Paula Beer, pelo seu desempenho irretocável no papel principal como Anna.

Depois dos longas O Refúgio (2009), Potiche-Esposa Troféu (2010), Dentro de Casa (2012) e Jovem e Bela (2013), o diretor constrói um painel contundente ambientado numa pequena cidade alemã, em 1919, após a desastrada Primeira Guerra Mundial, na qual a protagonista chora constantemente no túmulo de seu noivo alemão- que empresta o nome ao título da realização-, morto em uma batalha na França. Porém, num dia qualquer, encontra Adrien (Pierre Niney- magnífica interpretação), um rapaz francês que foi soldado e lutou pelo seu país, que por ironia ou compaixão, também leva flores no jazigo do suposto amigo que teria conhecido em Paris, logo após o revés da Alemanha no conflito bélico, causando repulsa e inflamando ressentimentos hostis da população dos derrotados.

Frantz acompanha e retrata com sutileza a aproximação do misterioso forasteiro e da moça condoída. Ambos sofrem pela perda da mesma pessoa, por situações diferentes e adversas, que se conhecem por acaso no cemitério e iniciam uma busca do passado e seus enigmas ocultos que aos poucos se decifram. O pai da vítima resiste em receber em sua casa um inimigo francês, mas a mãe vê com bons olhos a amizade com alguém que teria convivido com seu filho antes de sua morte trágica. Anna, que reside no mesmo teto com o sogro e a sogra, uma espécie de filha adotada por eles, faz a interação dolorida e tenta conciliar as mentiras e omitir a verdade por ser dura demais para todos. É o desencanto de uma geração que perdeu a juventude nos campos ensanguentados da guerra sem limites, alimentados pelos pais dos jovens que os incentivam e os mandam para morrer no front de forma brutal em nome da pátria, como na comovente cena do bar em que tomam cerveja e lastimam o revés, mas há o protesto como um desabafo angustiado do pai que deixa a pergunta no ar para a reflexão sobre as perdas de seus filhos, num questionamento legítimo e lúcido: Quem são os verdadeiros responsáveis?

Um drama que conta a história dura e cruel sobre a culpa e a busca do perdão dos resquícios logo após a guerra, em que dois países europeus se envolveram e perderam muitos compatriotas pela truculência exacerbada de bestiais interesses econômicos e políticos. Os momentos de prazer e alegria que teriam passado os amigos estão pontilhados em ficções como os passeios turísticos pelo Museu do Louvre e a fixação pelo quadro O Suicida (1880), de Édouard Manet. O encantamento dos pais de Frantz com o amigo estrangeiro desemboca na volta da alegria de viver, construído num imagninário falso de fantasias alegóricas como areias movediças para o esperado perdão de um segredo inimaginável. São situações criadas com esmero pelo diretor na sua versatilidade temática e o aprofundamento de questões instigantes numa trama bem urdida sobre as cinzas que pairam da loucura dos conflitos interpessoais coletivos.

Ozon se utiliza muito bem dos recursos para elaborar um cenário convincente da época em Frantz, como o trem cortando as estradas e seu uivo estridente como um silvo agudo de um animal angustiado que traz para os passageiros a melancolia e a agonia da ausência dos entes queridos próximos, simbolizado no olhar atônito e de tristeza da personagem central em sua viagem em busca da verdade e das revelações que lhe aguardam na aristocrática família francesa, bem como as causas e efeitos que proliferam para o remorso que acompanha o ex-soldado. Não há vítimas e nem algozes, todos são culpados e responsáveis pela chacina dos mortos numa guerra irracional. Um filme dilacerante e imparcial pelo olhar comovente deste realizador surpreendente em seus desenlaces para um reflexivo e perturbador desfecho de muito humanismo durante o luto familiar, os traumas decorrentes, e suas alternâncias com a dignidade questionada como um fardo insustentável e pesado que tomam dimensões estratosféricas.

quinta-feira, 29 de junho de 2017

A Garota Ocidental- Entre o Coração e a Tradição


Conflitos Civilizatórios

Escrito e dirigido pelo pouco conhecido cineasta belga Stephan Streker, que se baseou em fatos reais dos conflitos de civilizações que pululam entre o Ocidente e o Oriente, realizou com muita sensibilidade este instigante A Garota Ocidental- Entre o Coração e a Tradição, numa abordagem imparcial de um rígido núcleo de uma família muçulmana que entra em processo de desmoronamento justamente pela desagregação das tradições arraigadas. O diretor deixa fluir seu olhar para as intercorrências oriundas do microcosmo familiar dos problemas inerentes aos laços afetivos sobre as divergências dentro do universo de imigrantes paquistaneses, tanto pelos usos e costumes, como pela tradição e a religião. É mantida uma coerência bem demonstrada com méritos inegáveis pelos fatores apresentados e que são desenvolvidos durante a história.

A trama tem como protagonista a jovem paquistanesa Zahira (Lina El Arabi- de desempenho impecável da estreante atriz francesa), uma estudante de 18 anos que engravida do namorado também oriundo de seu país de origem, que rejeita a paternidade e vira as costas para a garota. Tanto o pai como a mãe e o próprio rapaz querem que ela aborte, o que vai contra os princípios éticos e morais da futura mãe, que vacila num primeiro momento e depois refuta a ideia terminantemente, após várias postergações do ato. Tem o apoio da melhor amiga do colégio, Aurore (Alice de Lencquesaing). O irmão Amir (Sébastien Houbani) lhe dá apoio inicialmente, mas com o passar do tempo também adere aos pais, bem como suas duas outras irmãs. O realizador demonstra uma boa influência da temática sempre bem esmiuçada entre pais e filhos pelos conterrâneos irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, autores dos excelentes dramas O Filho (2002), A Criança (2005) e O Silêncio de Lorna (2008).

É colocada em xeque a situação conturbada e o clímax que toma contornos de alta voltagem, quando Zahira é obrigada pelos familiares a optar por um marido arranjado entre três candidatos paquistaneses que ela jamais os viu, numa circunstância semelhante da mãe e da irmã que tiveram destinos idênticos, sem o direito de escolher livremente por amor a seus parceiros. O dilema aumenta com o transcorrer do tempo, com fugas e retornos à residência. O pai é cardíaco e sofre com a intransigência conflituosa e delicada com a filha rebelde, deixando transparecer de modo explícito toda a vergonha arrebatadora perante a comunidade muçulmana. São evidenciadas no longa a vergonha, a desonra, os usos costumeiros de uma tradição religiosa abalados completamente diante das divergências opostas estampadas como paradoxos ao velho mundo ocidental.

Esta coprodução da Bélgica, França, Paquistão e Luxemburgo, através desta temática pertinente coloca o longa num plano maior, em que a religião se mistura com as tradições de um povo que reside num país europeu com outros conhecimentos, outras maneiras de encarar a vida, em que a liberdade de expressão está acima das manifestações étnicas estabelecidas e avessas a mudanças diante de suas complexidades afloradas pelas lendas e ritos da qual não se visualiza uma fresta para uma solução harmônica de lucidez em detrimento da paixão conservadora. A equidade está acentuada na obra que retrata com um olhar de dualidade, sem tomar partido ou descambar para a panfletagem, mantendo-se isenta, distanciando-se de soluções fáceis ou pieguismo barato, embora a tragédia esteja anunciada nas entrelinhas durante o desenrolar frenético da trama com o impactante desfecho.

Um filme bem dosado e perturbador num contexto equilibrado na defesa da liberdade que aponta as incongruências das tradições que afetam os valores afetivos interpessoais que transformam as pessoas. Um fiel retrato na filosofia do modo de vida daquele povo com suas regras e rituais próprios advindos de uma cultura milenar religiosa e o fanatismo exacerbado, esculpido em personagens de carne e osso que funcionam como elementos essenciais, despidos com sensibilidade e pouco atentos às mudanças comportamentais em sua aldeia de origem, através de reflexões com a contundência contumaz sobre o seio familiar, através deste olhar antropológico pela comunidade muçulmana extremamente devota, que defende o pragmatismo acomodador do casamento arranjado que culminará no inevitável choque de pensamentos.

A Garota Ocidental é um drama universal que foca com vigor e verossimilhança um enredo típico das diferenças evidentes entre o mundo moderno em iminente choque frontal com as raízes viscerais retrógradas oriundas de uma transferência lendária de séculos. Uma reflexão para uma abordagem complexa de uma realização acima da média, que vai a fundo na questão do choque cultural de civilizações e dá contornos notáveis para uma conjuntura de uma aparente turbulência no núcleo de uma aparente família feliz. Porém, apenas como alegoria de uma estrondosa tensão que existe pelo mundo em vários guetos de imigrantes espalhados por este planeta em meio aos milhões de comunidades de costumes locais que formam características bastante particulares. Uma fabulosa analogia entre o passado com o presente, o arcaico com o moderno e as gerações novas que anseiam na busca da liberdade incondicional e o amor na sua plenitude, indo de encontro com os costumes antiquados e vistos como ultrapassados, embora ainda muito resistentes pela força física, pela chantagem emocional, pela coação financeira, até o abandono de um remanescente irresignado.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Neve Negra


Mistérios Familiares

Neve Negra é o filme argentino mais visto em seu país de origem neste ano e tem o retorno do cineasta Martin Hodara. No elenco está o astro Ricardo Darín, que volta a trabalhar com o realizador após dez anos ter dividido a direção no policial noir O Sinal (2007), porém desta vez apenas como intérprete no papel de Salvador, um homem rude que vive solitário e isolado do mundo numa cabana nas gélidas montanhas da Patagônia. Depois de trinta anos, ele recebe a inesperada visita do irmão Marcos (Leonardo Sbaraglia- o mesmo de O Silêncio no Céu e Relatos Selvagens) que volta contrariado da Espanha acompanhado de sua mulher, Laura (a atriz espanhola Laia Costa), uma companheira grávida que faz a ligação da trama pelo olhar do espectador. Antes passam para visitar a irmã Sabrina (Dolores Fonzi) que está internada numa clínica psiquiátrica sob efeito de medicação para evitar surtos violentos desde a morte do irmão caçula numa caçada, estopim da crise de relacionamento entre os familiares.

O thriller foca no prólogo, quando o casal volta do exterior para enterrar as cinzas do tirano pai dos irmãos, na busca do lugar exato em que fora pedido para depositar o que sobrou. Mas o objetivo maior será vender as terras e uma serraria que ficou de herança para um grupo de investidores canadenses, algo que não está previsto para o nativo que mora ali e sobrevive da caça e não pretende se mudar daquele lugar. Com reviravoltas no roteiro do diretor em parceria com Leonel D’Agostino, deixa o espectador confuso e muitas vezes se vê conduzido para uma solução aparentemente simples, porém logo é revista e o envolvimento é superado por outra hipótese ainda mais inusitada que será solucionada somente no final. Há méritos em torno da expectativa criada no imbróglio e as mudanças que sugerem um tom investigativo de dados duvidosos como nos bons policiais, mas com um recheio nos moldes do clássico cinemão de sessões lotadas.

No desenrolar da trama, há o encontro frente a frente nada amistoso entre Marcos e Salvador. Os dois vivem um conflito velado no qual rememoram um segredo do passado misterioso que só eles conhecem. Guardam mágoas e ressentimentos que beiram à discórdia sem perspectiva de reatarem as conturbadas relações sentimentais. A câmera capta as marcas negras na neve e em repetidos flashbacks conta a história em doses homeopáticas para ir desenrolando lentamente o emaranhado dos enigmas que restaram, como se estivesse investigando um possível crime, embora exista uma forte tendência, há dissimulações que causam algumas dúvidas. A culpa escondida e uma tênue vingança se entrelaçam e caminham juntas para um equivocado e dolorido desenlace. O irmão mais velho vitimizado por uma acusação nebulosa mergulha numa imensa solidão e com um trauma que lhe atormenta e corrói seus pensamentos com um devastador sentimento de injustiça observa os fantasmas decorrentes de uma situação da qual nunca se livrou com consequências nefastas do acaso.

Neve Negra tem um bom suspense com razoável construção psicológica num contexto de emoção contida e acertada, sem se afastar do ponto certo de um equilíbrio mesurado. A trilha sonora é adequada e não chega a interferir no clímax exato do transcorrer do enredo, que se não chega a surpreender, tem como méritos o conjunto da produção, tanto pela bela fotografia que explora as belezas naturais, como pelo homogêneo elenco, em especial o desempenho de Leonardo Sbaraglia que está impecável, e deixa em plano secundário Ricardo Darín em uma atuação muita caricata e pouco inspirada neste longa realizado com algumas surpresas, sem exageros ou excessos. Hodara cumpre bem a expectativa de manter atenta a plateia, deixando aflorar no epílogo as circunstâncias reveladoras, em face da abordagem com domínio sobre o que pretende retratar. A câmera atua como cúmplice na realidade temporal e pela invasão da privacidade novamente como um fator atordoante que traz com boa eficácia uma densidade narrativa pelo intenso frio, pela forte nevasca e a tempestade acachapante que se aproxima como indicativos de uma nova tragicidade que acentua a tensão existente entre os irmãos.

Uma construção típica de um filme do gênero com as ferramentas adequadas do suspense pelo isolamento do personagem central da narrativa dentro de um bem arquitetado plano que envolve sua solidão pelos fantasmas misteriosos que assombram um presente sem perspectiva. Eis um filme policial que traz no bojo uma mescla do drama existencial. Está em jogo não só as lembranças que perseguem Salvador, mas o sentimento da reflexão sobre uma injustiça, além da nítida sensação da perda do poder, das raízes e da referência da terra que em parceria o acolheu por todo este tempo, pela complexidade de sua vida e o tempo que ainda lhe resta para desfrutar e amargar os prazeres e dissabores da vida. O abalo emocional destrói a razão que é jogada num plano secundário. Porém, o desfecho é marcado por uma fragilidade ingênua e até certo ponto óbvia e pouco convincente naquele ambiente hostil, mas não invalida a obra, apenas mascara em parte uma reflexão mais aprofundada.

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Faces de Uma Mulher


Traumas da Infância

O drama familiar com pitadas de bom suspense tem como título original Orpheline (Órfã), do diretor e roteirista Arnaud des Pallières, reconhecido pelo instigante Michael Kohlhaas- Justiça e Honra (2013). Foi batizado no Brasil com a sugestiva denominação de Faces de Uma Mulher e se caracteriza pela intensidade de uma narrativa pela ótica da investigação psicológica, ao partir do fim do enredo para mesclar situações presentes, para retornar e compreender as razões do passado. Um realizador com um olhar profundo sobre as injustiças da sociedade em relação à mulher, seus traumas e sua condição de um ser humano completamente desassistido pela forma brutal pela qual a vida conduz o destino, através de um roteiro complexo e hábil com muita sensibilidade em que quatro personagens femininas são fundidas em apenas uma única sofrida protagonista.

A trama é bem estruturada de causas e efeitos como consequências para criar o entrelaçado roteiro de Des Pallières e Christelle Berthevas repleto de armadilhas para fisgar e prender o espectador, que tem como referência estética o longa Não Estou Lá (2007), de Todd Haynes. Kiki (Vega Cuzytek) é a garotinha traumatizada na infância que dá o mote causador da história, passa pela fase da adolescência e o despojamento agressivo (Solène Rigot), que será na fase adulta Karine (a ótima intérprete Adèle Haenel, de O Homem Que Elas Amavam Demais) e (a bela e sensual atriz Adèle Exarchopoulos, de Azul é a Cor Mais Quente) que leva um cotidiano monótono trabalhando como professora em uma escola primária, enquanto pensa em ter um filho com o apaixonado namorado, até a polícia prendê-la. Eis um elenco homogêneo que conta ainda com a personagem Tara (Gemma Arterton, em grande estilo).

O filme tem um desenrolar nada linear que tenta confundir a plateia, como se fossem personagens diferentes numa representação multifacetada. Mas aos poucos o enredo dá voltas até chegar à menina órfã e suas vidas múltiplas com outros nomes e sobrevivendo dos fantasmas do passado de violências e abusos pelas atitudes autodestrutivas diante da inexistência de um objetivo maior de vida. O nó vai desatando e clareia pelas imagens e diálogos o futuro da personagem central, que tem uma forte erotização de seus relacionamentos sem amarras e preconceitos, está bem condensado num estratégico apelo sexual sem estereótipos como um dos ingredientes bem condimentados. Há profundidade na difícil transição da conturbada infância para adolescência até esbarrar no mundo adulto e os sonhos perturbados, contrastando com a fuga para a Romênia ditatorial, deixando para trás uma França tida como berço da civilização cultural, mas que trata mal seus compatriotas marginalizados circunstancialmente.

O cineasta retrata com imparcialidade as fragilidades femininas e suas confusas idealizações e utopias indefinidas. Há muitas dificuldades de se reencontrar, numa posição beirando a ausência, como se vê na cena da infância da criança com sérios problemas emocionais e há apenas uma vaga indagação sobre o distanciamento da realidade e a culpa que a persegue, sendo abordados com equilíbrio, como decorrências do fato marcante diante do inesperado choque frontal com o surgimento de outras pessoas envolvidas no contexto como um entrave penoso pela hostilidade. Tudo contribui para a crise no processo perturbador do esvaziamento amoroso. A essência e a existência estão presentes, ainda que num momento de falsa harmonia entre o casal que busca a felicidade. A protagonista tenta superar as adversidades pela força de vontade e uma capacidade emocional que se esvai e se desequilibra, tendo em vista que por dentro está estraçalhada pelas lembranças e os transtornos diante da iminência do rompimento.

Faces de Uma Mulher tem uma influência concreta e inarredável da temática profunda do microcosmo familiar abordado pelo irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, como nos excelentes dramas O Filho (2002), A Criança (2005) e O Silêncio de Lorna (2008). Os efeitos traumáticos pretéritos são conduzidos com grande desenvoltura pelo realizador que direciona para um desfecho inusitado, mas com as evidências de um presente constituído por conjunções psicológicas carregadas em sua saga, porém dá um tom de justificativa dentro de um mosaico deste painel pontilhado por amarguras e situações emblemáticas que faz surgir um redemoinho assustador alucinatório que povoa a mente de uma mãe despreparada, embora todo o carinho maternal que nutre pelo recém-nascido. Uma reflexão magistral sobre a condição humana e seus traumas existenciais que mergulha no sofrimento, na tristeza, na solidão, e se escancara como resultado final neste espetacular drama francês que desemboca em rupturas com a redenção dolorida.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

O Cidadão Ilustre


A Discórdia

Novamente vem da Argentina, desta vez em coprodução com a Espanha, um filme com uma temática aparentemente simples, mas enganosa, diante da boa reflexão da privacidade e das relações em sociedade, que faz desta obra quase uma obrigação aos cinéfilos em assisti-la, deixando o enredo correr, para um desfecho inusitado que chegará à proposta dos seus realizadores, tendo em vista a complexidade dos seres humanos pelo paradoxo da harmonia com o conflito e os valores que são dados às vidas, aos interesses particulares e às amizades. A dupla de diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat, a mesma do excelente O Homem ao Lado (2009), retorna com uma outra instigante comédia dramática, O Cidadão Ilustre, digno representante da Argentina na disputa por uma vaga no Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano, trouxe ainda o prêmio Goya de melhor filme ibero-americano, láurea máxima da indústria cinematográfica espanhola.

Já se tornaram triviais as produções do país vizinho terem características muito peculiares nas suas abordagens como a sutileza e a sensibilidade, com abordagens discutidas buscando como mote a simplicidade, deixando os grandes cenários em segundo plano, dando-se mais importância para o roteiro e as conclusões filosóficas de vida e das relações humanas tangenciadas pelo clima hostil ou pela solidariedade, como visto nas realizações de Carlos Sorín em Histórias Mínimas (2002), O Cão (2004) e A Janela (2008); Pablo Trapero com Família Rodante (2004) Nascido e Criado (2006) e Abutres (2008); Lucrécia Martel com a obra-prima O Pântano (2001); Marcelo Piñeyro no belíssimo Kamchatka (2002); Paula Hernández no comovente Chuva (2008), e outros tantos cineastas comprometidos com o cotidiano singelo, muitas vezes invadido ou perturbado por problemas familiares, ou pela crise econômica que ainda perdura.

O Cidadão Ilustre é mais uma dessas produções marcantes na essência que chega às telas brasileiras, numa trama em que Daniel Mantovani é um escritor argentino que vence o Prêmio Nobel da Literatura, bem-sucedido na Europa, vive há 40 anos em Barcelona. Logo que a mãe faleceu, o jovem de apenas 20 anos deixou a província de Salas, distante mais de 700 quilômetros de Buenos Aires. O retorno do intelectual se dá pelo convite da prefeitura da tacanha cidade natal, que fará várias homenagens ao seu filho famoso, entre elas uma medalha e uma estátua na praça. Vencedor do último Festival de Veneza de melhor ator, o eclético Oscar Martinez que brilhou em Ninho Vazio (2008), Relatos Selvagens (2014) e Paulina (2015), interpreta magistralmente o personagem central que passará uma semana de prazeres e alguns inconvenientes, como dissabores bem hostis, uma boa dose de violência e muitos ressentimentos de seus conterrâneos, que o veem paradoxalmente em um traidor que se utiliza de figuras folclóricas dali para inspirar seus personagens fictícios nos livros para adquirir fama e dinheiro.

Cohn e Duprat retratam com um certo cinismo mesclado de humor os rancores, os ciúmes e uma pitada de amargura na volta do consagrado romancista vaidoso avesso às bajulações que deu asas à imaginação ao residir no exterior, criando best-sellers com fatos pitorescos de Salas. Por tudo isto é visto como um estranho no ninho pela maioria dos habitantes daquele lugarejo distante que parou no tempo. Escrever bem longe era sua meta que deu certo, porém não tinha noção dos contratempos que poderia encontrar, como ser usado pelo prefeito para angariar simpatia e votos nas próximas eleições, tem que desfilar ao lado rainha da cidade num carro de bombeiros seguido por um cortejo de veículos. Recebe inúmeros presentes, convites para almoços e jantares, participa como jurado de uma Mostra de Pintura de artistas locais, e até um pedido de uma cadeira de rodas especial, de um pai para um filho paraplégico. Ganha desafetos em meio às homenagens, como de um velho amigo que casou com sua ex-namorada, além de envolver-se com uma garota que jamais pensara de quem era filha. São encrencas diárias que terá que saber lidar neste retrato panorâmico sobre os infortúnios de uma celebridade que terá novos subsídios para escrever seu inspirado romance definitivo, que dá nome ao título do longa no epílogo redentor.

A comédia apresenta de forma direta com um tempero agridoce e sem rodeios a rotina dos dias da viagem de Mantovani, ao observar a paisagem que se revela ouvindo fragmentos de situações excêntricos que o rodeiam. Era para ser um passeio de reminiscências, virou um dilema nefasto no enxuto e demolidor roteiro de Andrés Duprat, ao reviver emoções de velhos fantasmas escondidos nas fraquezas das amizades e dos amores pretéritos que ficaram submersos por décadas. Porém o jovem recepcionista do acanhado hotel em que se hospeda, no gesto de alcançar os manuscritos literários ao seu ídolo, simboliza a continuação e a esperança de quem poderá também chegar ao estrelato, por coincidência tem a mesma idade do escritor quando deixou a província. Uma sutil analogia sarcástica à sociedade dividida entre o menosprezo à sofisticação pomposa europeia com um entusiasmo excessivo pelo arcaico nacionalismo rudimentar com repúdio ao estrangeirismo nesta narrativa linear e emblemática sobre o cotidiano nesta realização imperdível pela singularidade, não só pelas fantasias e sonhos contrapondo-se com um contexto amargo, mas com uma brecha para se buscar a dignidade no conflito de fatores como o rancor, e no embate de duas civilizações opostas neste tema universal.