Sociedade Disfuncional
O diretor e roteirista alemão Tom Tykwer- conhecido internacionalmente por Corra, Lola, Corra (1998) e Perfume- A História de Um Assassino (2006)- está de volta com um dos filmes mais impactantes deste ano, seu mais recente longa-metragem, A Luz, coproduzido com o Reino Unido e a França, exibido na sessão de abertura do Festival Internacional de Cinema de Berlim de 2025. Soube desenvolver a conexão espiritual de uma mulher simples com uma família completamente desintegrada por conflitos internos, que acaba sendo radicalmente transformada ao passar por uma experiência fora do comum e da rotina habitual na qual viviam. Um suspense que transita para o musical em algumas cenas, passa pelos problemas políticos internacionais e ingressa no drama familiar. A chuva em abundância constante em quase todo o desenrolar é o ingrediente metafórico para o final inusitado, surrealista e revelador. Intenso e quase sempre frenético capta a grande solidão familiar como elemento propulsor de uma sociedade moderna cosmopolita sem rumo, pelo deleite do realizador em sua narrativa, que tem sua marca registrada na qualidade estética e estrutural. Mostra personagens perdidos na selva humana que tentam fugir dos seus demônios.
Tykwer aborda uma típica família alemã disfuncional que enfrenta o próprio colapso enquanto lida com os problemas inerentes contemporâneos. A trama traz Tim (Lars Eidinger) e Milena (Nicolette Krebitz) casados e dividindo um apartamento em Berlim com seus filhos gêmeos Frieda (Elke Biesendorfen) e Jon (Julius Gause), além do enteado de Tim, filho de Milena, o pré-adolescente Dio (Elyas Eldridge). O marido é um intelectual que ama sua esposa, mas ela é uma mulher estressada em seu trabalho ao desenvolver uma atividade no governo federal, mas quase sempre viajando. Apesar de conviverem no mesmo teto, os cinco membros familiares possuem vidas distintas e estão divorciados da vida em comum. Pouco interessados no que cada um faz, numa relação individualista, sem afeto, que sequer sabem direito o nome da empregada que morre repentinamente. Tudo muda com a chegada misteriosa da nova doméstica, Farrah ( Tala Al Deen). Ela traz um passado de fuga de seu país de origem, a Síria, que passa por convulsões sociais e perseguições aos que se opõem ao regime ditatorial vigente. Aos poucos vai revelando suas emoções subtraídas, deixando as verdades pretéritas serem ocultadas. Busca uma nova vida para aqueles personagens desunidos e perdidos em suas existências, mas gradativamente vai mudando a forma de entender e ver um novo mundo.
A obra é intimista sobre as fragilidades e a presença invisível das relações fraturadas no contexto da desintegração silenciosa de pais esgotados e prestes a se separarem diante do abismo da solidão, de raro vínculo emocional. Os filhos desconectados flutuam numa rotina sem carinho, dedicação e amor. A jovem vive em festas regadas com drogas e bebidas; o rapaz está sempre em seu quarto no mundo virtual; o pré-adolescente anda de um lado para outro, ora com o pai, ora sozinho. Um a um se aproxima da nova componente daquele microcosmo familiar, sem saber que a recém-contratada não chegou lá por acaso. A precipitação climática, com aquele aguaceiro interminável, irá aproximar pessoas perdidas numa metrópole comprometida na conexão com um mundo caótico e enlouquecedor, quase sem saída, como se estivessem presos dentro de um hospício a céu aberto. O cineasta coloca com méritos inquestionáveis uma alegoria das enrascadas que cada ser humano poderá ter no seu dia a dia, remetendo para o drama argentino Chuva (2008), de Paula Hernández, que retratou o comportamento humano dos estranhos que se encontram fortuitamente e descobrem afinidades como a reflexão dos solitários numa barulhenta cidade entre ausências, saudades e medos nas buscas pessoais e seus desejos complexos.
Impressiona tanto pela abordagem intimista familiar desestruturada como pela mudança do roteiro que perpassa do cinema convencional para entrar no realismo fantástico imaginário de mentes e corações, tanto dos personagens como do espectador. Há uma mudança de ritmo e uma inspiração genuína para as vidas modernas estressadas, com a perda da racionalidade pelo ritmo alucinado dos seres humanos dentro de uma engrenagem sombria e exausta, contrapondo com a paixão e a comicidade nas cenas sequenciais musicais inspiradas no filme Matrix (1999), dirigido pelas irmãs Wachowski, no qual os personagens estão atormentados por estranhos pesadelos por cabos a um imenso sistema de computadores do futuro. O sonho se repete e a desconfiança da realidade emerge. A realização ilumina não apenas espaços, mas pensamento que se tornaram confortáveis através de uma história precisa pelos elementos psicológicos encontrados no enredo que aponta uma amargura na sociedade atual eivada de hipocrisia, sem indicativos de luz, moralmente carregada. A cegueira se faz presente pelos danos causados pelo modo repressor e uma arrogância recorrente.
O diretor foca nos devaneios com consequências nefastas nas relações sociais que atingem o estado de satisfação física, emocional e espiritual pelos poderes sensitivos, às vezes em transe, da empregada síria. O narcisismo e a responsabilidade equivocada estão presentes, como nas constantes cenas do espelho e da luz para quem não quer ver e opta por continuar na escuridão da cegueira. O festejado cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul, de Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010) e principalmente em Memória (2021), que capta o silêncio, a vida do cotidiano, a poesia do lugar cercado por frondosas árvores e montanhas em imagens de uma natureza enigmática para meditação, como elementos essenciais de uma narrativa, com raros diálogos, notabilizou-se um cultor de uma cinematografia exótica, fora dos padrões tradicionais. Já Tykwer também se utiliza dos aspectos que atraem os sentimentos como fragmentos humanos, com configurações que levam à imersão do espectador, em algumas cenas sobrenaturais do universo cósmico. Os personagens mergulham numa verdadeira hipnose coletiva no desfecho para realizarem uma procura em outras dimensões, algo que assusta e ao mesmo tempo, fascina, como soluções que inquietam nossa realidade. O realizador pensa no cinema como mecanismo de magia do mundo, o que é algo extraordinário.
A Luz é uma experiência sensorial numa viagem ao subconsciente, literalmente. Exuberante nas imagens e na interpretação para todas as evidências lançadas como provocação. A proposta é deixar fluir a história para reflexão que irá se destilando aos poucos em nossa alma, coração e espírito. O desfecho é singular, nada é linear, tudo é contextualizado e complexo, como o estrondo das águas como uma grande tempestade com desdobramentos em diversas camadas da memória para propor uma meditação vigorosa do existencialismo e seus reflexos sutis com o olhar para a realidade humana que transcende e exorbita para o universo da fantasia em uma imersão sensorial catártica. Conduz para um banho de purificação pelas águas torrenciais. O cineasta demonstra sensibilidade para um mergulho sobre a existência e as questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham os fatos adequados ao tema, sob o ponto de vista humano. Transcendental, espiritual ou metafísica como possa parecer, fica na retina de cada espectador este soberbo drama para se chegar ao êxtase sensitivo e perturbador no epílogo.
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