Classes Sociais Distintas
Um filme que vem correspondendo à expectativa é a recente realização A Prisioneira de Bordeaux, da competente cineasta francesa Patricia Mazuy, que somente agora estreia nos cinemas brasileiros após exibição na Mostra Internacional de São Paulo do ano passado. Tem uma enorme filmografia, na qual foi assistente de direção em Um Quarto na Cidade (1982), de Jacques Demy, editou Os Renegados (1985), de Agnès Varda, dirigiu os longas-metragens Um Homem Marcado (1988), Travolta e Eu (1993), Saint-Cyr (2000), Basse Normandie (2004), Sport de Filles (2011), Paul Sanchez Está de Volta (2018) e Boliche Saturno (2022), que ganhou cinco estrelas na revista Cahiers du Cinéma. Teve passagem na Quinzena dos Realizadores de Cannes e Locarno. O enxuto e seco roteiro traz as assinaturas da diretora e de Fraçois Bégaudeau e Pierre Courrège, que emprestam credibilidade para a boa recepção de público, bem assessorada pela adequada e não invasiva trilha sonora de Amine Bouhafa e a fascinante fotografia de Simon Beaufils.
A trama de Mazuy foca seu drama familiar em pessoas reais de carne e osso, sendo capazes de mesquinharias, solidariedades e até de gestos generosos. A protagonista Alma Lund é interpretada por Isabelle Huppert, sempre impecável, uma clássica dama do cinema, talhada para este tipo de papel, ao se doar com extremo senso de profissionalismo, como já o fizera em A Professora de Piano (2001), de Michael Haneke. Uma mulher branca de meia-idade, elegante e sofisticada, fruto da elite francesa, que está passando por momentos desafiadores desde a prisão de seu marido, um médico renomado que cumpre prisão ao ser condenado em seis anos por atropelar mãe e filha sem prestar socorro, em estado de alcoolização, morrendo uma delas. Ela é uma mulher solitária que vive numa linda mansão na cidade de Bordeaux. Em um dos dias da visita ao presídio, depara-se na antessala com Mina Hirti, numa atuação magnífica da atriz franco-tunisiana Hafsia Herzi, revelada em O Segredo do Grão, de Abdellati Kechiche. A imigrante é uma mulher árabe que mora com um casal de filhos menores num conjunto habitacional de uma cidade distante e trabalha numa tinturaria para o sustento familiar. Também tem um marido presidiário por assalto à uma joalheria e se surpreende que não poderá fazer a visita naquele dia, por não ter agendada a visita. Entra em completo desespero e finge desmaiar, tendo em vista a distância para um retorno imediato.
No prólogo, a realizadora demonstra uma delicadeza formal na construção da obra, com a câmera voltada para muitas flores coloridas e uma paz aparente naquele cenário solitário. O roteiro dá um pulo e logo mostra Alma dirigindo seu suntuoso automóvel. Compadecida, oferece carona para a desconhecida e oferece sua casa para passar a noite. O encontro fortuito fará um redemoinho na vida daquelas duas mulheres de classes sociais distintas economicamente dentro de um mesmo espaço. Depois de quebrado o gelo inicial, surge uma inspirada amizade, embora improvável entre elas, mas que o destino reservará como uma redenção para ambas, que simboliza serem, ademais, prisioneiras de seus amores. Vivem e se organizam constantemente para incontáveis visitas de afago como duas típicas resilientes companheiras. A narrativa flui com uma significativa dose de suspense e com algumas observações do cotidiano imposto pelas circunstâncias, sem apelar para o pieguismo barato e escapa das armadilhas simplificadoras das questões sociais. Uma está presa ao marido que a despreza, a ignora e constantemente a trai sem nenhum pudor; a outra sofre assédio dos comparsas do esposo trancafiado, que estão sempre atrás de dinheiro e joias remanescentes do crime praticado.
A diretora afasta supostamente a temática contumaz das peripécias dos imigrantes na França. Habilmente não mergulha diretamente no colonizador sendo explorador e os colonizados como vítimas, visto frequentemente em realizações que beiram à demagogia. Ao mesmo tempo, parece não querer bater de frente, optando por uma circunstância de aproximação entre imigrantes e nativos. Cutuca o realismo social sutilmente com suas implicações complexas, apenas nas entrelinhas. Sem os típicos estereótipos advindos, tanto da pobreza como da riqueza, Mina se aproveita da confiança plena da amiga para um plano com astúcia radical de salvação sua e de seus familiares no desfecho para alfinetar a aristocracia, representada pela mulher do inconsequente neurocirurgião. A compaixão e a desonestidade estão presentes, ainda que haja um sopro de libertação das amarras daquela personagem elitizada, infeliz e humilhada, apesar da convivência com os vazios amigos burgueses de alma e coração, quando confundem a imigrante com uma nova governanta do palacete. Há algo verossímil que separa as duas personagens, ou seja, o abismo social intransponível de jamais transpor o limite entre elas. Fica evidente na emblemática cena que há separação de classes como uma forma abjeta de quem detém o poder socioeconômico. A escolha pela leveza na narrativa é enganosa, considerando que a aparência amena esconde a sórdida arrogância mesclada com o distanciamento social implícito na hipocrisia.
A Prisioneira de Bordeaux traz questões pertinentes e indigestas nas entrelinhas do enredo, como a dissimulação marcante que serve para dissecar as estruturas do poder nas sociedades contemporâneas. Além do ponto principal da prisão dos dois homens, há a intrincada interação financeira vista como formas controvertidas de organização dentro da célula máxima das relações humanas. A mulher tentando se impor e se libertar diante da predominância do sexo oposto, ou ainda na rebelião da imigrante contra uma sociedade ainda seletiva. É um questionamento da dominação que irá sedimentar para culminar na abrupta violência do desamor em tempos de solidão pelos fantasmas remanescentes de seus estigmas, fazendo vítimas, principalmente as mulheres submissas em seu meio. A complexidade vai ao encontro do envolvimento da personagem traída no entorno do matrimônio e os desfeitos de caráter do personagem traidor que não acusa a culpa e sequer demonstra ressentimentos alinhados como ingredientes indispensáveis para construir este painel perturbador. O desenrolar da trama prima pela sensibilidade e delicadeza de focar sobre a condição humana feminina, pela pujança estimulante de impor a vontade para uma liberdade inegociável. O intimismo do drama traz situações clássicas do dia a dia bem temperado, para transitar do drama familiar para a separação social de classes e selar como um filme interessante no contexto da história bem urdida de uma cineasta irrequieta para um bom resultado a ser refletido.
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