quarta-feira, 26 de julho de 2017

De Canção em Canção


Sussurros e Contemplações

Terrence Malick tem por formação a filosofia e é chamado de cineasta bissexto e ermitão. Levava uma vida enclausurada e não é de dar entrevistas, raramente é fotografado e passava anos sem filmar. Perfeccionista em seu trabalho, é conhecido por rodar centenas de negativos e usa seu tempo burilando material para editar uma obra. Realizou em 2011 o fabuloso A Árvore da Vida, que lhe deu a Palma de Ouro em Cannes. Porém, ultimamente, não está deixando passar muito tempo para lançar um novo longa e já é visto em público, abandonando gradativamente a clausura. Em forma de continuidade realizou Amor Pleno (2012), filosofando sobre o amor e as paixões desencontradas, o vazio existencial e a busca pelo imaginário da completude da vida. Se no drama transcendental anterior falava sobre a ausência de Deus, interligando religião com a perda de um dos três filhos, questionando a opressão do pai, no filme subsequente reverteu a situação e fez uma verdadeira ode a Cristo pelos ensinamentos de uma padre exilado que lutava arduamente com os desígnios da vocação. Em 2015, filmou Cavaleiro de Copas, tão irregular como o antecessor, ambas as produções descartáveis.

De Canção em Canção é seu oitavo longa-metragem, uma obra com uma trama novamente experimental sobre o nada e o tudo, ou o nada sobre o nada, recheado de traições, culpas, ressentimentos e retornos às mancheias, num enredo pouco convencional que prima pela inconstância e uma indefinição estéril. O roteiro é de idas e vindas, sussurros do início ao fim, com palavras e juras de amor brotando e se dispersando com o andar da história. A abusiva narrativa em off com diálogos repletos de lugares-comuns é debilitada e logo se esvai num cenário de personagens que flutuam como zumbis à procura de algo sem muita clarividência, em que as evasivas estão preponderantes e transbordam sobre a consistência cinematográfica de uma realidade objetiva. Tanto na forma como no conteúdo há o empirismo estético e recorrente de figuras humanas flanando de um lado para outro, sem se encontrar com o que querem ou nem sabem o que procuram. Descontextualizado e solto para manejar em off com som, imagem e música, resultando numa miscelânea desastrosa de montagem que sucumbe. Faltou clímax para a realização de Malick, que se passa nos bastidores de um efervescente festival de rock e suas tendências musicais em Austin, no Texas.

O enredo foca em dois casais: os compositores Faye (Rooney Mara) e BV (Ryan Gosling), o magnata da música (Michael Fassbender) com a sonhadora garçonete Rhonda (Natalie Portman). Eles perseguem o sucesso através de um cenário de rock and roll, sedução, decepções, flertes, sexo e drogas. Os personagens se encontram e trocam de parceiros em relações livres e bissexuais numa ampla cobertura com uma bela paisagem, mas sem a essência do cinema, através de uma explanação pulverizada que carrega no artificialismo, sem vínculo com uma existência distante e completamente vazia. Interagem com seus ídolos John Lydon, Red Hot Chili Peppers, Florence Welch e Pati Smith. Tudo é falso, nada é verdadeiro. Desfilam colagens de imagens numa fotografia esplendorosa em contraluz, o corte seco num enquadramento enviesado de rios, pássaros, um céu carregado com contrastes, um templo religioso, uma lanchonete, e por aí vai. Uma pretensa ousadia, mas sem densidade dramatúrgica no contexto das cenas que se tornam áridas por ausência rítmica de elaboração plausível.

De Canção em Canção está mais próximo de Amor Pleno, do que de A Árvore da Vida, completamente distanciado dos inesquecíveis Terra de Ninguém (1973) e Cinzas no Paraíso (1978), e do extraordinário drama de guerra Além da Linha Vermelha (1998), que realizou vinte anos depois do último sucesso cultuado, retornando em 2005 com O Novo Mundo. Malick, aos 73 anos, parece ter perdido o gosto de escrever seus roteiros e filmar. Dá sinais evidentes de cansaço e está cada vez mais indolente, como demonstra nas suas três últimas realizações tediosas. São filmes com roteiros soltos embevecidos de devaneios enfadonhos que logo cairão no esquecimento. Abusa do experimentalismo e da repetitiva contemplação, um método perigoso que acaba se tornando obsoleto.

Da trilha sideral, nem o blues Rollin’ and Tumblin, tantas vezes regravado, desta vez por Bob Dylan, salva o prolixo longa da mesmice, que tem um elenco recheado de estrelas, além dos personagens principais, os coadjuvantes têm nomes conhecidos como Holly Hunter, Cate Blanchett, Bérénice Marlohe e Val Kilmer, que não conseguem dar equilíbrio e sustentar, soçobra por falta de uma direção que se mostra frouxa. Sobra pouco, ou quase nada deste drama que tinha tudo para arrebatar, mas pelo contrário, faz as salas perderem boa parte dos espectadores antes do epílogo previsível, de pouca lucidez, que prega um moralismo barato: para ser feliz tem que ter uma vida simples. É o tédio fastidioso que danifica a ideia da continuidade, causando bocejos, diante do excessivo esvaziamento da proposta. Parece ser o crepúsculo de um notável diretor que perdeu a inspiração, embora tenha inegável talento já demonstrado em sua apreciada filmografia pungente. Talvez um período sabático lhe fizesse bem para um novo ciclo de fertilidade.

terça-feira, 18 de julho de 2017

Frantz


O Perdão

O prolífico cineasta francês François Ozon, nome constante em festivais como Cannes e Berlim nos últimos anos, está de volta com Frantz, uma adaptação livre da peça escrita por Maurice Rostand, que já havia sido adaptada para o cinema por Ernst Lubitsch em Não Matarás (1932). Um dos filmes mais badalados no último Festival Varilux, com sucesso de público e visto com entusiasmo pela crítica internacional. O drama histórico recebeu onze indicações ao Prêmio César, o Oscar da França, abocanhando a láurea de melhor fotografia que oscila do preto e branco nos momentos de tristeza para o colorido que pressupõe a esperança fugaz, sem a pretensão estilística, mas como um ingrediente eficiente da narrativa, e ainda agraciou com o prêmio de melhor jovem atriz no Festival de Veneza de 2016 para a bela Paula Beer, pelo seu desempenho irretocável no papel principal como Anna.

Depois dos longas O Refúgio (2009), Potiche-Esposa Troféu (2010), Dentro de Casa (2012) e Jovem e Bela (2013), o diretor constrói um painel contundente ambientado numa pequena cidade alemã, em 1919, após a desastrada Primeira Guerra Mundial, na qual a protagonista chora constantemente no túmulo de seu noivo alemão- que empresta o nome ao título da realização-, morto em uma batalha na França. Porém, num dia qualquer, encontra Adrien (Pierre Niney- magnífica interpretação), um rapaz francês que foi soldado e lutou pelo seu país, que por ironia ou compaixão, também leva flores no jazigo do suposto amigo que teria conhecido em Paris, logo após o revés da Alemanha no conflito bélico, causando repulsa e inflamando ressentimentos hostis da população dos derrotados.

Frantz acompanha e retrata com sutileza a aproximação do misterioso forasteiro e da moça condoída. Ambos sofrem pela perda da mesma pessoa, por situações diferentes e adversas, que se conhecem por acaso no cemitério e iniciam uma busca do passado e seus enigmas ocultos que aos poucos se decifram. O pai da vítima resiste em receber em sua casa um inimigo francês, mas a mãe vê com bons olhos a amizade com alguém que teria convivido com seu filho antes de sua morte trágica. Anna, que reside no mesmo teto com o sogro e a sogra, uma espécie de filha adotada por eles, faz a interação dolorida e tenta conciliar as mentiras e omitir a verdade por ser dura demais para todos. É o desencanto de uma geração que perdeu a juventude nos campos ensanguentados da guerra sem limites, alimentados pelos pais dos jovens que os incentivam e os mandam para morrer no front de forma brutal em nome da pátria, como na comovente cena do bar em que tomam cerveja e lastimam o revés, mas há o protesto como um desabafo angustiado do pai que deixa a pergunta no ar para a reflexão sobre as perdas de seus filhos, num questionamento legítimo e lúcido: Quem são os verdadeiros responsáveis?

Um drama que conta a história dura e cruel sobre a culpa e a busca do perdão dos resquícios logo após a guerra, em que dois países europeus se envolveram e perderam muitos compatriotas pela truculência exacerbada de bestiais interesses econômicos e políticos. Os momentos de prazer e alegria que teriam passado os amigos estão pontilhados em ficções como os passeios turísticos pelo Museu do Louvre e a fixação pelo quadro O Suicida (1880), de Édouard Manet. O encantamento dos pais de Frantz com o amigo estrangeiro desemboca na volta da alegria de viver, construído num imagninário falso de fantasias alegóricas como areias movediças para o esperado perdão de um segredo inimaginável. São situações criadas com esmero pelo diretor na sua versatilidade temática e o aprofundamento de questões instigantes numa trama bem urdida sobre as cinzas que pairam da loucura dos conflitos interpessoais coletivos.

Ozon se utiliza muito bem dos recursos para elaborar um cenário convincente da época em Frantz, como o trem cortando as estradas e seu uivo estridente como um silvo agudo de um animal angustiado que traz para os passageiros a melancolia e a agonia da ausência dos entes queridos próximos, simbolizado no olhar atônito e de tristeza da personagem central em sua viagem em busca da verdade e das revelações que lhe aguardam na aristocrática família francesa, bem como as causas e efeitos que proliferam para o remorso que acompanha o ex-soldado. Não há vítimas e nem algozes, todos são culpados e responsáveis pela chacina dos mortos numa guerra irracional. Um filme dilacerante e imparcial pelo olhar comovente deste realizador surpreendente em seus desenlaces para um reflexivo e perturbador desfecho de muito humanismo durante o luto familiar, os traumas decorrentes, e suas alternâncias com a dignidade questionada como um fardo insustentável e pesado que tomam dimensões estratosféricas.

quinta-feira, 29 de junho de 2017

A Garota Ocidental- Entre o Coração e a Tradição


Conflitos Civilizatórios

Escrito e dirigido pelo pouco conhecido cineasta belga Stephan Streker, que se baseou em fatos reais dos conflitos de civilizações que pululam entre o Ocidente e o Oriente, realizou com muita sensibilidade este instigante A Garota Ocidental- Entre o Coração e a Tradição, numa abordagem imparcial de um rígido núcleo de uma família muçulmana que entra em processo de desmoronamento justamente pela desagregação das tradições arraigadas. O diretor deixa fluir seu olhar para as intercorrências oriundas do microcosmo familiar dos problemas inerentes aos laços afetivos sobre as divergências dentro do universo de imigrantes paquistaneses, tanto pelos usos e costumes, como pela tradição e a religião. É mantida uma coerência bem demonstrada com méritos inegáveis pelos fatores apresentados e que são desenvolvidos durante a história.

A trama tem como protagonista a jovem paquistanesa Zahira (Lina El Arabi- de desempenho impecável da estreante atriz francesa), uma estudante de 18 anos que engravida do namorado também oriundo de seu país de origem, que rejeita a paternidade e vira as costas para a garota. Tanto o pai como a mãe e o próprio rapaz querem que ela aborte, o que vai contra os princípios éticos e morais da futura mãe, que vacila num primeiro momento e depois refuta a ideia terminantemente, após várias postergações do ato. Tem o apoio da melhor amiga do colégio, Aurore (Alice de Lencquesaing). O irmão Amir (Sébastien Houbani) lhe dá apoio inicialmente, mas com o passar do tempo também adere aos pais, bem como suas duas outras irmãs. O realizador demonstra uma boa influência da temática sempre bem esmiuçada entre pais e filhos pelos conterrâneos irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, autores dos excelentes dramas O Filho (2002), A Criança (2005) e O Silêncio de Lorna (2008).

É colocada em xeque a situação conturbada e o clímax que toma contornos de alta voltagem, quando Zahira é obrigada pelos familiares a optar por um marido arranjado entre três candidatos paquistaneses que ela jamais os viu, numa circunstância semelhante da mãe e da irmã que tiveram destinos idênticos, sem o direito de escolher livremente por amor a seus parceiros. O dilema aumenta com o transcorrer do tempo, com fugas e retornos à residência. O pai é cardíaco e sofre com a intransigência conflituosa e delicada com a filha rebelde, deixando transparecer de modo explícito toda a vergonha arrebatadora perante a comunidade muçulmana. São evidenciadas no longa a vergonha, a desonra, os usos costumeiros de uma tradição religiosa abalados completamente diante das divergências opostas estampadas como paradoxos ao velho mundo ocidental.

Esta coprodução da Bélgica, França, Paquistão e Luxemburgo, através desta temática pertinente coloca o longa num plano maior, em que a religião se mistura com as tradições de um povo que reside num país europeu com outros conhecimentos, outras maneiras de encarar a vida, em que a liberdade de expressão está acima das manifestações étnicas estabelecidas e avessas a mudanças diante de suas complexidades afloradas pelas lendas e ritos da qual não se visualiza uma fresta para uma solução harmônica de lucidez em detrimento da paixão conservadora. A equidade está acentuada na obra que retrata com um olhar de dualidade, sem tomar partido ou descambar para a panfletagem, mantendo-se isenta, distanciando-se de soluções fáceis ou pieguismo barato, embora a tragédia esteja anunciada nas entrelinhas durante o desenrolar frenético da trama com o impactante desfecho.

Um filme bem dosado e perturbador num contexto equilibrado na defesa da liberdade que aponta as incongruências das tradições que afetam os valores afetivos interpessoais que transformam as pessoas. Um fiel retrato na filosofia do modo de vida daquele povo com suas regras e rituais próprios advindos de uma cultura milenar religiosa e o fanatismo exacerbado, esculpido em personagens de carne e osso que funcionam como elementos essenciais, despidos com sensibilidade e pouco atentos às mudanças comportamentais em sua aldeia de origem, através de reflexões com a contundência contumaz sobre o seio familiar, através deste olhar antropológico pela comunidade muçulmana extremamente devota, que defende o pragmatismo acomodador do casamento arranjado que culminará no inevitável choque de pensamentos.

A Garota Ocidental é um drama universal que foca com vigor e verossimilhança um enredo típico das diferenças evidentes entre o mundo moderno em iminente choque frontal com as raízes viscerais retrógradas oriundas de uma transferência lendária de séculos. Uma reflexão para uma abordagem complexa de uma realização acima da média, que vai a fundo na questão do choque cultural de civilizações e dá contornos notáveis para uma conjuntura de uma aparente turbulência no núcleo de uma aparente família feliz. Porém, apenas como alegoria de uma estrondosa tensão que existe pelo mundo em vários guetos de imigrantes espalhados por este planeta em meio aos milhões de comunidades de costumes locais que formam características bastante particulares. Uma fabulosa analogia entre o passado com o presente, o arcaico com o moderno e as gerações novas que anseiam na busca da liberdade incondicional e o amor na sua plenitude, indo de encontro com os costumes antiquados e vistos como ultrapassados, embora ainda muito resistentes pela força física, pela chantagem emocional, pela coação financeira, até o abandono de um remanescente irresignado.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Neve Negra


Mistérios Familiares

Neve Negra é o filme argentino mais visto em seu país de origem neste ano e tem o retorno do cineasta Martin Hodara. No elenco está o astro Ricardo Darín, que volta a trabalhar com o realizador após dez anos ter dividido a direção no policial noir O Sinal (2007), porém desta vez apenas como intérprete no papel de Salvador, um homem rude que vive solitário e isolado do mundo numa cabana nas gélidas montanhas da Patagônia. Depois de trinta anos, ele recebe a inesperada visita do irmão Marcos (Leonardo Sbaraglia- o mesmo de O Silêncio no Céu e Relatos Selvagens) que volta contrariado da Espanha acompanhado de sua mulher, Laura (a atriz espanhola Laia Costa), uma companheira grávida que faz a ligação da trama pelo olhar do espectador. Antes passam para visitar a irmã Sabrina (Dolores Fonzi) que está internada numa clínica psiquiátrica sob efeito de medicação para evitar surtos violentos desde a morte do irmão caçula numa caçada, estopim da crise de relacionamento entre os familiares.

O thriller foca no prólogo, quando o casal volta do exterior para enterrar as cinzas do tirano pai dos irmãos, na busca do lugar exato em que fora pedido para depositar o que sobrou. Mas o objetivo maior será vender as terras e uma serraria que ficou de herança para um grupo de investidores canadenses, algo que não está previsto para o nativo que mora ali e sobrevive da caça e não pretende se mudar daquele lugar. Com reviravoltas no roteiro do diretor em parceria com Leonel D’Agostino, deixa o espectador confuso e muitas vezes se vê conduzido para uma solução aparentemente simples, porém logo é revista e o envolvimento é superado por outra hipótese ainda mais inusitada que será solucionada somente no final. Há méritos em torno da expectativa criada no imbróglio e as mudanças que sugerem um tom investigativo de dados duvidosos como nos bons policiais, mas com um recheio nos moldes do clássico cinemão de sessões lotadas.

No desenrolar da trama, há o encontro frente a frente nada amistoso entre Marcos e Salvador. Os dois vivem um conflito velado no qual rememoram um segredo do passado misterioso que só eles conhecem. Guardam mágoas e ressentimentos que beiram à discórdia sem perspectiva de reatarem as conturbadas relações sentimentais. A câmera capta as marcas negras na neve e em repetidos flashbacks conta a história em doses homeopáticas para ir desenrolando lentamente o emaranhado dos enigmas que restaram, como se estivesse investigando um possível crime, embora exista uma forte tendência, há dissimulações que causam algumas dúvidas. A culpa escondida e uma tênue vingança se entrelaçam e caminham juntas para um equivocado e dolorido desenlace. O irmão mais velho vitimizado por uma acusação nebulosa mergulha numa imensa solidão e com um trauma que lhe atormenta e corrói seus pensamentos com um devastador sentimento de injustiça observa os fantasmas decorrentes de uma situação da qual nunca se livrou com consequências nefastas do acaso.

Neve Negra tem um bom suspense com razoável construção psicológica num contexto de emoção contida e acertada, sem se afastar do ponto certo de um equilíbrio mesurado. A trilha sonora é adequada e não chega a interferir no clímax exato do transcorrer do enredo, que se não chega a surpreender, tem como méritos o conjunto da produção, tanto pela bela fotografia que explora as belezas naturais, como pelo homogêneo elenco, em especial o desempenho de Leonardo Sbaraglia que está impecável, e deixa em plano secundário Ricardo Darín em uma atuação muita caricata e pouco inspirada neste longa realizado com algumas surpresas, sem exageros ou excessos. Hodara cumpre bem a expectativa de manter atenta a plateia, deixando aflorar no epílogo as circunstâncias reveladoras, em face da abordagem com domínio sobre o que pretende retratar. A câmera atua como cúmplice na realidade temporal e pela invasão da privacidade novamente como um fator atordoante que traz com boa eficácia uma densidade narrativa pelo intenso frio, pela forte nevasca e a tempestade acachapante que se aproxima como indicativos de uma nova tragicidade que acentua a tensão existente entre os irmãos.

Uma construção típica de um filme do gênero com as ferramentas adequadas do suspense pelo isolamento do personagem central da narrativa dentro de um bem arquitetado plano que envolve sua solidão pelos fantasmas misteriosos que assombram um presente sem perspectiva. Eis um filme policial que traz no bojo uma mescla do drama existencial. Está em jogo não só as lembranças que perseguem Salvador, mas o sentimento da reflexão sobre uma injustiça, além da nítida sensação da perda do poder, das raízes e da referência da terra que em parceria o acolheu por todo este tempo, pela complexidade de sua vida e o tempo que ainda lhe resta para desfrutar e amargar os prazeres e dissabores da vida. O abalo emocional destrói a razão que é jogada num plano secundário. Porém, o desfecho é marcado por uma fragilidade ingênua e até certo ponto óbvia e pouco convincente naquele ambiente hostil, mas não invalida a obra, apenas mascara em parte uma reflexão mais aprofundada.

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Faces de Uma Mulher


Traumas da Infância

O drama familiar com pitadas de bom suspense tem como título original Orpheline (Órfã), do diretor e roteirista Arnaud des Pallières, reconhecido pelo instigante Michael Kohlhaas- Justiça e Honra (2013). Foi batizado no Brasil com a sugestiva denominação de Faces de Uma Mulher e se caracteriza pela intensidade de uma narrativa pela ótica da investigação psicológica, ao partir do fim do enredo para mesclar situações presentes, para retornar e compreender as razões do passado. Um realizador com um olhar profundo sobre as injustiças da sociedade em relação à mulher, seus traumas e sua condição de um ser humano completamente desassistido pela forma brutal pela qual a vida conduz o destino, através de um roteiro complexo e hábil com muita sensibilidade em que quatro personagens femininas são fundidas em apenas uma única sofrida protagonista.

A trama é bem estruturada de causas e efeitos como consequências para criar o entrelaçado roteiro de Des Pallières e Christelle Berthevas repleto de armadilhas para fisgar e prender o espectador, que tem como referência estética o longa Não Estou Lá (2007), de Todd Haynes. Kiki (Vega Cuzytek) é a garotinha traumatizada na infância que dá o mote causador da história, passa pela fase da adolescência e o despojamento agressivo (Solène Rigot), que será na fase adulta Karine (a ótima intérprete Adèle Haenel, de O Homem Que Elas Amavam Demais) e (a bela e sensual atriz Adèle Exarchopoulos, de Azul é a Cor Mais Quente) que leva um cotidiano monótono trabalhando como professora em uma escola primária, enquanto pensa em ter um filho com o apaixonado namorado, até a polícia prendê-la. Eis um elenco homogêneo que conta ainda com a personagem Tara (Gemma Arterton, em grande estilo).

O filme tem um desenrolar nada linear que tenta confundir a plateia, como se fossem personagens diferentes numa representação multifacetada. Mas aos poucos o enredo dá voltas até chegar à menina órfã e suas vidas múltiplas com outros nomes e sobrevivendo dos fantasmas do passado de violências e abusos pelas atitudes autodestrutivas diante da inexistência de um objetivo maior de vida. O nó vai desatando e clareia pelas imagens e diálogos o futuro da personagem central, que tem uma forte erotização de seus relacionamentos sem amarras e preconceitos, está bem condensado num estratégico apelo sexual sem estereótipos como um dos ingredientes bem condimentados. Há profundidade na difícil transição da conturbada infância para adolescência até esbarrar no mundo adulto e os sonhos perturbados, contrastando com a fuga para a Romênia ditatorial, deixando para trás uma França tida como berço da civilização cultural, mas que trata mal seus compatriotas marginalizados circunstancialmente.

O cineasta retrata com imparcialidade as fragilidades femininas e suas confusas idealizações e utopias indefinidas. Há muitas dificuldades de se reencontrar, numa posição beirando a ausência, como se vê na cena da infância da criança com sérios problemas emocionais e há apenas uma vaga indagação sobre o distanciamento da realidade e a culpa que a persegue, sendo abordados com equilíbrio, como decorrências do fato marcante diante do inesperado choque frontal com o surgimento de outras pessoas envolvidas no contexto como um entrave penoso pela hostilidade. Tudo contribui para a crise no processo perturbador do esvaziamento amoroso. A essência e a existência estão presentes, ainda que num momento de falsa harmonia entre o casal que busca a felicidade. A protagonista tenta superar as adversidades pela força de vontade e uma capacidade emocional que se esvai e se desequilibra, tendo em vista que por dentro está estraçalhada pelas lembranças e os transtornos diante da iminência do rompimento.

Faces de Uma Mulher tem uma influência concreta e inarredável da temática profunda do microcosmo familiar abordado pelo irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, como nos excelentes dramas O Filho (2002), A Criança (2005) e O Silêncio de Lorna (2008). Os efeitos traumáticos pretéritos são conduzidos com grande desenvoltura pelo realizador que direciona para um desfecho inusitado, mas com as evidências de um presente constituído por conjunções psicológicas carregadas em sua saga, porém dá um tom de justificativa dentro de um mosaico deste painel pontilhado por amarguras e situações emblemáticas que faz surgir um redemoinho assustador alucinatório que povoa a mente de uma mãe despreparada, embora todo o carinho maternal que nutre pelo recém-nascido. Uma reflexão magistral sobre a condição humana e seus traumas existenciais que mergulha no sofrimento, na tristeza, na solidão, e se escancara como resultado final neste espetacular drama francês que desemboca em rupturas com a redenção dolorida.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

O Cidadão Ilustre


A Discórdia

Novamente vem da Argentina, desta vez em coprodução com a Espanha, um filme com uma temática aparentemente simples, mas enganosa, diante da boa reflexão da privacidade e das relações em sociedade, que faz desta obra quase uma obrigação aos cinéfilos em assisti-la, deixando o enredo correr, para um desfecho inusitado que chegará à proposta dos seus realizadores, tendo em vista a complexidade dos seres humanos pelo paradoxo da harmonia com o conflito e os valores que são dados às vidas, aos interesses particulares e às amizades. A dupla de diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat, a mesma do excelente O Homem ao Lado (2009), retorna com uma outra instigante comédia dramática, O Cidadão Ilustre, digno representante da Argentina na disputa por uma vaga no Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano, trouxe ainda o prêmio Goya de melhor filme ibero-americano, láurea máxima da indústria cinematográfica espanhola.

Já se tornaram triviais as produções do país vizinho terem características muito peculiares nas suas abordagens como a sutileza e a sensibilidade, com abordagens discutidas buscando como mote a simplicidade, deixando os grandes cenários em segundo plano, dando-se mais importância para o roteiro e as conclusões filosóficas de vida e das relações humanas tangenciadas pelo clima hostil ou pela solidariedade, como visto nas realizações de Carlos Sorín em Histórias Mínimas (2002), O Cão (2004) e A Janela (2008); Pablo Trapero com Família Rodante (2004) Nascido e Criado (2006) e Abutres (2008); Lucrécia Martel com a obra-prima O Pântano (2001); Marcelo Piñeyro no belíssimo Kamchatka (2002); Paula Hernández no comovente Chuva (2008), e outros tantos cineastas comprometidos com o cotidiano singelo, muitas vezes invadido ou perturbado por problemas familiares, ou pela crise econômica que ainda perdura.

O Cidadão Ilustre é mais uma dessas produções marcantes na essência que chega às telas brasileiras, numa trama em que Daniel Mantovani é um escritor argentino que vence o Prêmio Nobel da Literatura, bem-sucedido na Europa, vive há 40 anos em Barcelona. Logo que a mãe faleceu, o jovem de apenas 20 anos deixou a província de Salas, distante mais de 700 quilômetros de Buenos Aires. O retorno do intelectual se dá pelo convite da prefeitura da tacanha cidade natal, que fará várias homenagens ao seu filho famoso, entre elas uma medalha e uma estátua na praça. Vencedor do último Festival de Veneza de melhor ator, o eclético Oscar Martinez que brilhou em Ninho Vazio (2008), Relatos Selvagens (2014) e Paulina (2015), interpreta magistralmente o personagem central que passará uma semana de prazeres e alguns inconvenientes, como dissabores bem hostis, uma boa dose de violência e muitos ressentimentos de seus conterrâneos, que o veem paradoxalmente em um traidor que se utiliza de figuras folclóricas dali para inspirar seus personagens fictícios nos livros para adquirir fama e dinheiro.

Cohn e Duprat retratam com um certo cinismo mesclado de humor os rancores, os ciúmes e uma pitada de amargura na volta do consagrado romancista vaidoso avesso às bajulações que deu asas à imaginação ao residir no exterior, criando best-sellers com fatos pitorescos de Salas. Por tudo isto é visto como um estranho no ninho pela maioria dos habitantes daquele lugarejo distante que parou no tempo. Escrever bem longe era sua meta que deu certo, porém não tinha noção dos contratempos que poderia encontrar, como ser usado pelo prefeito para angariar simpatia e votos nas próximas eleições, tem que desfilar ao lado rainha da cidade num carro de bombeiros seguido por um cortejo de veículos. Recebe inúmeros presentes, convites para almoços e jantares, participa como jurado de uma Mostra de Pintura de artistas locais, e até um pedido de uma cadeira de rodas especial, de um pai para um filho paraplégico. Ganha desafetos em meio às homenagens, como de um velho amigo que casou com sua ex-namorada, além de envolver-se com uma garota que jamais pensara de quem era filha. São encrencas diárias que terá que saber lidar neste retrato panorâmico sobre os infortúnios de uma celebridade que terá novos subsídios para escrever seu inspirado romance definitivo, que dá nome ao título do longa no epílogo redentor.

A comédia apresenta de forma direta com um tempero agridoce e sem rodeios a rotina dos dias da viagem de Mantovani, ao observar a paisagem que se revela ouvindo fragmentos de situações excêntricos que o rodeiam. Era para ser um passeio de reminiscências, virou um dilema nefasto no enxuto e demolidor roteiro de Andrés Duprat, ao reviver emoções de velhos fantasmas escondidos nas fraquezas das amizades e dos amores pretéritos que ficaram submersos por décadas. Porém o jovem recepcionista do acanhado hotel em que se hospeda, no gesto de alcançar os manuscritos literários ao seu ídolo, simboliza a continuação e a esperança de quem poderá também chegar ao estrelato, por coincidência tem a mesma idade do escritor quando deixou a província. Uma sutil analogia sarcástica à sociedade dividida entre o menosprezo à sofisticação pomposa europeia com um entusiasmo excessivo pelo arcaico nacionalismo rudimentar com repúdio ao estrangeirismo nesta narrativa linear e emblemática sobre o cotidiano nesta realização imperdível pela singularidade, não só pelas fantasias e sonhos contrapondo-se com um contexto amargo, mas com uma brecha para se buscar a dignidade no conflito de fatores como o rancor, e no embate de duas civilizações opostas neste tema universal.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Argentina


Riqueza de Tradições

Um filme argentino em coprodução com a Espanha e a França sem diálogos e que não tem tango, porém envolve a plateia com a riqueza das tradições musicais e do estonteante folclore com sua gênese arrebatadora do país vizinho. O documentário passa em revista os movimentos culturais e artísticos diferentes encontrados ali, com muita emoção e um deslumbrante apelo visual. Argentina é uma apresentação mesclada de relatos e encenações com interpretações de várias canções que povoam uma trajetória de leveza e fascínio numa deliciosa viagem. Dirigido com a competência peculiar pelo octogenário cineasta espanhol Carlos Saura, que tem em sua filmografia obras políticas memoráveis como Ana e os Lobos (1973) e Cría Cuervos (1976), além de musicais inesquecíveis como Bodas de Sangue (1981), Carmen (1983) e Amor Bruxo (1986), que formaram a trilogia flamenca, em parceria com o famoso bailarino Antonio Gades, morto em 2004.

Saura desenvolve um tipo de cinema singular nos tempos atuais, ao se afastar de sua narrativa profunda e demolidora para aderir e explorar com eficiência exibições de espetáculos de dança, com o intuito de fazer sentir a música, carrega na coreografia com um figurino todo especial no diversificado folclore dos hermanos, como agora em Argentina. Na mesma esteira, já havia se inclinado anteriormente com Tango (1998), Salomé (2002) e Fados (2007). Com seu novo documentário, novamente visita os ritmos e a cultura dos argentinos. O tango foi subtraído propositalmente, até porque já foi homenageado numa produção específica em 1998. Ao garimpar os ritmos musicais, apresenta para o grande público novos e velhos talentos, como cantores e grupos regionais que representam com todo ardor e paixão o chamamé, malambo, chacarera, zamba, copla, a bela cueca na colheita de uva, e carnavalito, esta a mais fraca entre elas. Todas trazem uma abundância na forma como são utilizados os instrumentos de cordas, bumbo, violão violoncelo e o piano, bem como os variados estilos e a maneira como são dramatizadas, através de expressões corporais que remete para uma sensualidade na dança com corpos em movimentos que se aproxima de uma sugestiva e delicada erotização sutil pelos rituais e um colorido harmônico com rara sensibilidade.

A realização se esmera na imagem das típicas boleadeiras num balé intenso de batidas no chão deste apetrecho que exige habilidade e ritmo, que não poderia ficar de fora desta representação quase que teatral; a chula com seus sapateados; além dos cantos da relação do homem com a mulher e seus sentimentos de dor, amor e perda. Fica a sensação da influência explícita sobre as músicas regionais, o folclore e as tradições do Rio Grande do Sul pela proximidade das fronteiras, como bem enfatiza uma das canções que fala do amor a Tucumán e os gauchos daquele lugar. O subsídio que penetrou com força no interior deste Estado limítrofe, traz no chimarrão, no churrasco, e nas pilchas características dos gaúchos e suas prendas, que irão ao encontro dos habitantes dos campos com seus gados, numa clara similitude pelos usos e costumes.

Há de se ressaltar os comovente tributos póstumos a duas celebridades do mundo artístico latino-americano engajados nas lutas sociais e políticas: Mercedes Sosa (1935- 2009) e Atahualpa Yutanqui (1908- 1992), além do desfile de artistas consagrados do folclore, tais como: a grande diva nativista Liliana Herrero, Soledad Pastoruti, Juan Falú, Pedro Aznar, Horacio Lavandera, Jaime Torres, El Chaqueño Palavecino, Luis Salinas e o grupo Metabombo. Argentina pode não possuir o mesmo impacto de trabalhos anteriores do veterano diretor que realiza sua obra mais preguiçosa, numa estética singela de poucos cortes, com lacunas informativas e históricas sobre dados da temática, mas que não economiza na magia da cor, da música, da dança e do folclore.

Eis um prazeroso, interessante e digno musical documentado no galpão do La Boca, em Buenos Aires, com painéis e espelhos para captar os movimentos coreográficos autênticos de vários ângulos para exibir imagens contrastando com as sombras dos astros da música e dos ecléticos dançarinos. Uma contribuição valiosa que faz a o espectador sair mais leve e flutuando da sala de cinema. Para ser visto por todos os apreciadores de música e suas tradições típicas diferentes e de qualidade, sem gritos e histerias, apelações ou baixarias, que ao assistir poderão ter a chance de mudar alguns preconceitos equivocados, lembrar e sorver com sensibilidade as sutilezas, deixando os ombros bem mais leves nesta inspirada abordagem cultural. Uma amostragem com nitidez retratada pelos próprios artistas de matizes diversas, mas que deixa raízes para permanecer na memória e vislumbrar novos horizontes musicais como alternativa.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

A Morte de Luís XIV


Ocaso Agonizante

O cultuado cineasta catalão Albert Serra desenvolve com elegância e sensibilidade o processo intenso da agonia dos últimos dias de Luís XIV (Jean-Pierre Léaud, em antológica atuação deste virtuoso ator revelado por François Truffaut e com interpretações destacadas também com Jean-Luc Godard), o mais famoso monarca francês e com mais tempo de reinado no mundo ocidental. Governou por 54 anos a França, após a morte do pai, Luís XIII, em 1643, sem contar o período de criança que herdou a coroa. O drama se passa em agosto de 1715, vindo a falecer em setembro, aos 77 anos, deixando um legado histórico de realizações erguidas como o Palácio de Versalhes, além do apogeu econômico, político, cultural e militar, tudo sob suas ordens sempre reverenciadas pelos súditos e o povo na maioria. Idolatrado e nominado como o Rei Sol, simbolizava o absolutismo pelo brilho que emanava com decisões veneradas em prol de seu país, causava orgulho pela paixão à nação, por isto era pouco contestado. Foi sucedido pelo bisneto Luís XV, com apenas cinco anos de idade, que até alcançar a maioridade em 1723, seu reino foi comandado pelo tio-avô Filipe II.

A Morte de Luís XIV retrata o cotidiano da majestade com seus vassalos fiéis e médicos da Corte, diante da grave doença que lhe abateu, decorrente de um ferimento na perna esquerda que gangrenou e resultou em consequências nefastas que o impossibilitou de comparecer nas reuniões com os ministros para tomar as decisões governamentais do dia a dia. Embora continuasse a exercer suas funções, passou a ter sonos intranquilos, além de problemas com alimentação e febre, que o deixa completamente fragilizado pela decrepitude que vai minando sua lucidez de uma vida minimamente saudável. Há cenas memoráveis como os cachorros no recinto para matar a saudade do protagonista no desenrolar da trama, eis um belo achado; assim como o biscoito sendo mastigado é aplaudido pelo séquito de subordinados; o vinho sendo sorvido como uma esperança de recuperação; e o mirabolante elixir com vários ingredientes receitado por um charlatão como tentativa da cura milagrosa, porém com a frustração do resultado levará o impostor para a pena máxima na prisão da Bastilha, sem direito da ampla defesa. Somente um grande artesão como Serra para não deixar a história cair na monotonia da convalescença até o óbito.

O longa-metragem apresenta com equilibrado zelo a dor e a desintegração de um homem forte, que reclama do fedor do ambiente, ou seja, ele está apodrecendo, como se depreende de sua necrosada perna que deveria ser amputada, mas por uma falha médica, só é constatada no epílogo, depois de eviscerado o corpo no próprio leito para ser retirado o coração e o baço com infecção generalizada. Conclui-se pela negligência de uma época em que a medicina era atrasada e a as pesquisas científicas ainda engatinhavam, mas a metáfora está lançada. O realizador mostra os caprichos e a ostentação de uma monarquia em fase de decadência e decomposição, que viria a ser culminada com a queda da Bastilha em 1789, através da Revolução Francesa. A exigência da água em copo de cristal, renegando o vidro, bem como as atribuídas decisões absurdas do rei em pré-coma, já com pouca consciência cognitiva, são fatores preponderantes de um ciclo obscuro, onde tudo passava pelo todo poderoso, mesmo sem ter um mínimo de lucidez e clarividência. Ali está uma nação paralisada pela moléstia de seu chefe maior, que nos remete por analogia para o fim das vidas dos ditadores Fidel Castro em Cuba e do generalíssimo Francisco Franco na Espanha.

O figurino pomposo de época com as vastas cabeleiras artificiais retrata com fidelidade este drama sombrio com um estilo bem peculiar nas tomadas de cena. Já a temática da morte, a solidão da alcova, a velhice iminente e o formalismo estético lembram em muito Ingmar Bergman, na obra-prima Gritos e Sussurros (1972), num ambiente soturno com eloquência soberba da melancolia pela bela fotografia em meios-tons que capta o aconchegante leito num quarto lúgubre dentro do Palácio de Versalhes como cenário mórbido e claustrofóbico em que é rodado todo o filme, com a iluminação de velas nos candelabros tem o cheiro do perecimento para dar o tom certeiro da narrativa no contexto de seu clímax de dramaticidade. Uma luta ferrenha pela sobrevivência e a tentativa desesperada de segurar aqui entre os mortais um celebridade endeusada e colocada como imortal e indispensável para a engrenagem do poder.

Embora não seja um produto fácil e de rápida digestão, mesmo não sendo complexo, há um falso hiato entre uma produção palatável na relação com o grande público. Porém seu nível de empoderamento promovido com os adeptos da cinefilia é magnífico pela concisão e o grau de narrativa até o alcance invejável no âmago que se propõe como objetivo na crítica temporal ali estabelecida no diálogo entre o espectador e o realizador. É elogiável pela consciência coletiva e a reflexão profunda da proposta política, social e o fim da existência. Um achado ímpar inquestionável nesta realização estupenda em tempos de escassez de obras comprometidas com a cinematografia e seus objetivos de desalienação como meio de expressão e comunicação. Um filmaço imperdível para quem aprecia singularidades com ênfase na essência pura colocadas neste painel arrebatador, que se insere na listagem dos dez melhores filmes de 2017.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Central


Calabouço do Inferno

Um filme que dialoga com a plateia pelos vários depoimentos esclarecedores, dando luz para um problema insolúvel aparentemente, afasta-se dos cansativos e chatos relatos de pouca objetividade, com o intuito de preencher espaços com histórias sem profundidade em filmes similares de pouca expressão. A diretora Tatiana Sager estreia no longa-metragem Central, em codireção com o repórter e colunista policial Renato Dorneles, autor do livro-reportagem Falange Gaúcha (2008), que originou o curta-metragem O Poder Entre as Grades (2014). A cineasta amplia a história e disserta com raro esmero o crime organizado no Rio Grande do Sul, passando pelo episódio da perseguição e da rendição dos perigosos assaltantes de banco e carro-forte Melara e Fernandinho, em 1994, responsáveis pelo histórico motim no Presídio Central, com o desfecho num grande hotel de Porto Alegre, obteve grande repercussão nacional pelo inusitado, com tiroteio e correria de carros pelas principais ruas da Capital gaúcha.

A realização passa em revista e traz para o debate reflexivo o processo difícil da busca da ressocialização de apenados que deverão sair da cadeira. Para isto conta com relatos de detentos e depoimentos fortes de ex-diretores do presídio, jornalista especializado, teólogo, sociólogo, promotor de justiça e o juiz titular da Vara de Execuções Criminais. Um mergulho no calabouço daquela penitenciária infernal infestada de baratas e ratos desfilando pelas dependências, lixo espalhado pelo pátio, esgoto a céu aberto e a superlotação da pior casa prisional do Brasil, apontada pela CPI no Congresso, em 2008, com capacidade para 1.905 chegou a ter 4.500 detentos. As estatísticas são arrasadoras e retratam um universo majoritário de negros e pobres numa região em que a raça negra é minoritária. Não há ricos e os brancos são poucos que vivem naquele lugar. São causas evidentes e incontestáveis neste real cenário imundo, pior que uma pocilga, habitado por seres humanos que estão cumprindo suas penas pelos crimes cometidos.

Os realizadores mostram com eficiência o crime organizado comandado por grupos bem representativos que comercializam armas, celulares e drogas. A corrupção é inquestionável, embora a Brigada Militar seja responsável por todo o complexo prisional desde o inesquecível motim, e diga que faz "o possível" diante de tamanha precariedade estruturalO que era para ser provisório tornou-se definitivo. O filme escancara com contundência toda a engrenagem montada pelos líderes de seis facções que detêm um governo paralelo ao oficial, obtendo lucros fabulosos na cantina, uma espécie de armazém do crime, com acesso apenas para parte dos presidiários que aderiram ao sistema ali imposto, tendo em vista que as refeições são melhores e não se compara com a alimentação fornecida pelo Estado que administra até a entrada das galerias. Lá dentro o comando é dos presos e suas lideranças, com disputas entre as gangues rivais. Com isto evitou-se uma quantidade enorme de mortes pelos assassinatos no seu interior, mas após a progressão do regime, ao passar para o semiaberto e aberto, a coisa muda de figura, liberando-se na rua os acertos de contas com crimes por encomenda e as pendengas pessoais, além das dívidas contraídas no regime fechado.

Central vai ao cerne da questão e expõe as feridas putrefatas de um sistema corrompido e sem evidências de recuperação a curto prazo. As facções dependem de dinheiro para pagar seus defensores, precisam de soluções para a saúde e auxiliar as famílias de seus integrantes no sustento do dia a dia. Como enfatiza o juiz e o promotor, quando o Estado fracassa ao não assistir na progressão de regime e a consequente reinserção social para quem quer volta ao convívio da sociedade e afastar-se do mundo da criminalidade, deixa uma brecha gigantesca que é preenchida pelos bandos transgressores aparelhados. Tudo está inserido na pirâmide social com seus tentáculos e o crescimento geométrico da ilegalidade. Se falta  dinheiro e ajuda, aí então entra o paraestado das falanges atraindo um grande contingente de necessitados socioeconômicos para suas fileiras que  monitoram o tráfico, roubos, latrocínios e a prostituição nas ruas de PortoAlegre, bem como poderia ser de qualquer outra cidade cosmopolita em território nacional.

O roteiro instigante da dupla de diretores capta imagens realizadas pelos próprios presos- recurso no cinema usado no longa O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), de Paulo Sacramento-, ao mostrar o cotidiano de suas incursões nas galerias sem celas, cubículos minúsculos que foram derrubados para abrir espaços maiores. Ainda assim insuficiente para se ter uma mínima dignidade, com camas sendo divididas por mais de uma pessoa, outros deitados no chão, amontoados como animais na selva de pedras, impossibilitando a passagem à noite para quem quer ir até a fétida latrina chamada de banheiro, em condições degradantes e inimagináveis. Cantos de rap são entoados como uma ameaça de uma guerra silenciosa, num clima tenso 24 horas, como relata uma ex-liderança. A droga rola solta para acalmar e aliviar as tensões naquele barril de pólvora prestes a explodir. Um verdadeiro faz de conta de quem tem que zelar, por ser uma inarredável função estatal, mas que vira as costas para uma situação catastrófica que assola a população carcerária.

O documentário faz seu papel de apresentar o problema com crueza, sem dourar a pílula, que aflige a todos. Não adianta jogar lá dentro pessoas sem uma estrutura de readaptação. A inércia pela falta de uma política nacional de segurança política é acachapante e perigosa que culmina na falência do Estado. Quanto mais presos forem depositados nas casas prisionais, mais lucros as facções bem constituídas obterão, e o crime crescerá verticalmente. O filme é um alerta através da denúncia sobre o sistema carcerário corroído pela omissão governamental em forma de renúncia admitida, que deflagra uma crise institucional sem precedentes, como se reflete das imagens assustadoras e os diálogos ameaçadores e potentes desta impactante realização gaúcha que expõe as vísceras de uma dolorosa realidade da universidade do crime por organizações sustentáveis e planejadas como sólidas empresas à margem da sociedade.

segunda-feira, 27 de março de 2017

O Filho de Joseph


Vingança Familiar

Eugène Green é considerado um dos grandes cineastas americanos, com obras abrangentes e muitas reflexões com críticas ácidas à sociedade hipócrita. Suas inquietações artísticas se mesclam com sua posição nas discussões filosóficas com um certo amargor sobre as frustrações acadêmicas e existenciais, satirizando a intelectualidade francesa. Assim foi em O Mundo Vivente (2003), A Ponte das Artes (2004), e o badalado La Sapienza (2014), premiado como melhor filme no Festival de Sevilha. Retorna agora com O Filho de Joseph, um drama franco-belga de sutilezas e recheado de ironia e humor cáustico, numa narrativa leve e ao mesmo tempo profunda contada com base em cinco passagens da Bíblia, entre elas O Sacrifício de Abraão, O Bezerro de Ouro e O Carpinteiro. A produção é dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, realizadores de A Criança (2004), O Silêncio de Lorna (2008), e O Garoto da Bicicleta (2011), entre tantos títulos inesquecíveis.

A trama foca a busca do amor e o encontro com a serenidade movida pelo ódio do inquieto jovem adolescente Vincent (Victor Ezenfis), de 15 anos, criado em Paris com a proteção angelical da amorosa mãe, Marie (Natacha Régnier), uma dedicada enfermeira que reluta em revelar a paternidade ao filho. Ele sente-se rejeitado e busca saber os reais motivos pelos quais este segredo é guardado a sete chaves. Mas nem sempre o pai verdadeiro é o biológico, ao encontrar Joseph (Fabrizio Rongione), um homem sensível que tem problemas com esta sociedade de aparências voltada para os prazeres da futilidade e o consumismo. O encontro inusitado se deu no dia em que planejara se vingar do pai, Oscar Pormenor (Mathieu Amalric), o egoísta editor de livros, uma figura abjeta, arrogante, que faz questão de frisar que não tem tempo para se preocupar com a família e sequer sabe quantos filhos têm de suas relações promíscuas e sem laços afetivos. Vive num mundo à parte, numa realidade construída de trivialidades e falsidades, em que a crítica literária Violette (Maria de Medeiros) é o símbolo daquele ambiente da fogueira das vaidades e bizarrices.

O diretor habilmente coloca o sentido da existência que tanto o garoto procura para atenuar seu sofrimento e sua dor intensa que remói para desvendar o passado que será aos poucos descortinado, para que sinta-se como um expoente da vida e até almejar a felicidade que tanto idealiza. A celebração se dará na igreja, na comovente cena da linda peça interpretada pelo grupo Le Poème Harmonique, do compositor Domenico Mazzocchi. Antes, Vincent e Joseph fizeram o passeio cultural revelador pelo Museu do Louvre, quando admiram com estonteante prazer o quadro O Sacrifício de Isaac, de Caravaggio. São situações que darão a alegria de continuar vivendo, a amizade solidificada entre eles e um indício promissor de que a vingança faz parte daquele ambiente tão repudiado pela dupla, ou seja, o desprezível e inócuo mundinho vazio de ostentações sem profundidade no prazer e na essência da vida.

O cineasta, herdeiro de Robert Bresson, em entrevista coletiva recente, foi perguntado o que pensa de ser tachado de formalista? Foi direto ao ponto: “Arte é forma, senão, não é arte”. O Filho de Joseph é um mosaico familiar com sustentação de passagens bíblicas e uma contundente crítica social retratada num roteiro enxuto com uma dinâmica de formalidade estrutural cênica impecável. Neste redemoinho, está encaixado o filho bastardo que nutre uma agressividade interior contra a própria mãe, deixando transparecer algum desprezo em suas atitudes.

Mas os contornos pacificadores aos poucos irão se estabelecer nas relações entre os dois, com as revelações maduras sobre os fantasmas do passado, em que ele está aprisionado. Seu fascínio pelas algemas soa metaforicamente dando o sentido de seu enclausuramento psicológico, diante do fato pretérito causador de sua amargura e imensa tristeza. O concerto da igreja e suas incursões pelo museu irão amolecendo seu coração dolorido. “Onde está Deus?”, a pergunta fulminante ao seu amigo ecoa como uma desesperança e um pedido de socorro. “Deus está dentro de nós”, é a resposta emblemática da cena comovedora, dita com simplicidade ao questionamento. Porém, profunda pelo contexto do momento em que a raiva e a perda da lucidez tomam contornos inimagináveis para uma desforra que disseminou o desolado protagonista que vive um verdadeiro inferno astral. O filme não prega a religião, pelo contrário, busca alternativas pragmáticas para lidar com as dificuldades advindas do cotidiano, através de opções apresentadas como fórmula do bálsamo da convivência civilizada.

Um drama atual e exemplar, no qual a teatralidade da narrativa está bem inserida na linguagem do cinema em toda sua extensão que não cai na mesmice de roteiros complexos e confusos vistos em muitas realizações estéreis, ao dar vazão para um mergulho no imaginário do espectador. Green conduz o enredo com uma sincera imparcialidade, ainda que a aproximação de Joseph com Marie seja previsível de certa forma, remete de maneira alusiva para o princípio da era do Cristianismo, no qual José e Maria lutam para esconder o filho da forças do mal e da perseguição, nesta bela e convincente alegoria. Para isto é dado o tom certo do clímax que desencadeará no epílogo junto ao mar, com o jumento sendo a testemunha de uma situação insólita, após a perseguição ostensiva pelo sistema repressor policial ser lançado com toda pompa para prender um delinquente de alta periculosidade. Uma farsa total e inconsequente para uma situação meramente equivocada. O desfecho trará luz para um futuro difícil, mas com um sabor de otimismo nesta magnífica obra de valores profundos e marcantes numa atmosfera de amor e tristeza de uma realidade tão presente.