Um filme que dialoga com a plateia pelos vários depoimentos esclarecedores,
dando luz para um problema insolúvel aparentemente, afasta-se dos cansativos e
chatos relatos de pouca objetividade, com o intuito de preencher espaços com
histórias sem profundidade em filmes similares de pouca expressão. A diretora Tatiana
Sager estreia no longa-metragem Central,
em codireção com o repórter e colunista policial Renato Dorneles, autor do
livro-reportagem Falange Gaúcha
(2008), que originou o curta-metragem O
Poder Entre as Grades (2014). A cineasta amplia a história e disserta com raro
esmero o crime organizado no Rio Grande do Sul, passando pelo episódio da
perseguição e da rendição dos perigosos assaltantes de banco e carro-forte Melara
e Fernandinho, em 1994, responsáveis pelo histórico motim no Presídio Central,
com o desfecho num grande hotel de Porto Alegre, obteve grande repercussão
nacional pelo inusitado, com tiroteio e correria de carros pelas principais
ruas da Capital gaúcha.
A realização passa em revista e traz para o debate reflexivo
o processo difícil da busca da ressocialização de apenados que deverão sair da
cadeira. Para isto conta com relatos de detentos e depoimentos fortes de ex-diretores
do presídio, jornalista especializado, teólogo, sociólogo, promotor de justiça
e o juiz titular da Vara de Execuções Criminais. Um mergulho no calabouço
daquela penitenciária infernal infestada de baratas e ratos desfilando pelas
dependências, lixo espalhado pelo pátio, esgoto a céu aberto e a superlotação
da pior casa prisional do Brasil, apontada pela CPI no Congresso, em 2008, com
capacidade para 1.905 chegou a ter 4.500 detentos. As estatísticas são
arrasadoras e retratam um universo majoritário de negros e pobres numa região
em que a raça negra é minoritária. Não há ricos e os brancos são poucos que
vivem naquele lugar. São causas evidentes e incontestáveis neste real cenário
imundo, pior que uma pocilga, habitado por seres humanos que estão cumprindo
suas penas pelos crimes cometidos.
Os realizadores mostram com eficiência o crime organizado
comandado por grupos bem representativos que comercializam armas, celulares e
drogas. A corrupção é inquestionável, embora a Brigada Militar seja responsável por todo o complexo prisional desde o inesquecível motim, e diga que faz "o possível" diante de tamanha precariedade estrutural. O que era para ser provisório tornou-se
definitivo. O filme escancara com contundência toda a engrenagem montada pelos
líderes de seis facções que detêm um governo paralelo ao oficial, obtendo
lucros fabulosos na cantina, uma espécie de armazém do crime, com acesso apenas
para parte dos presidiários que aderiram ao sistema ali imposto, tendo em vista
que as refeições são melhores e não se compara com a alimentação fornecida pelo
Estado que administra até a entrada das galerias. Lá dentro o comando é dos
presos e suas lideranças, com disputas entre as gangues rivais. Com isto
evitou-se uma quantidade enorme de mortes pelos assassinatos no seu interior,
mas após a progressão do regime, ao passar para o semiaberto e aberto, a coisa
muda de figura, liberando-se na rua os acertos de contas com crimes por
encomenda e as pendengas pessoais, além das dívidas contraídas no regime
fechado.
Central vai ao
cerne da questão e expõe as feridas putrefatas de um sistema corrompido e sem
evidências de recuperação a curto prazo. As facções dependem de dinheiro para
pagar seus defensores, precisam de soluções para a saúde e auxiliar as famílias
de seus integrantes no sustento do dia a dia. Como enfatiza o juiz e o
promotor, quando o Estado fracassa ao não assistir na progressão de regime e a
consequente reinserção social para quem quer volta ao convívio da sociedade e
afastar-se do mundo da criminalidade, deixa uma brecha gigantesca que é
preenchida pelos bandos transgressores aparelhados. Tudo está inserido na pirâmide
social com seus tentáculos e o crescimento geométrico da ilegalidade. Se falta dinheiro e ajuda, aí então entra o paraestado
das falanges atraindo um grande contingente de necessitados socioeconômicos
para suas fileiras que monitoram o
tráfico, roubos, latrocínios e a prostituição nas ruas de PortoAlegre, bem como
poderia ser de qualquer outra cidade cosmopolita em território nacional.
O roteiro instigante da dupla de diretores capta imagens
realizadas pelos próprios presos- recurso no cinema usado no longa O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003),
de Paulo Sacramento-, ao mostrar o cotidiano de suas incursões nas galerias sem
celas, cubículos minúsculos que foram derrubados para abrir espaços maiores.
Ainda assim insuficiente para se ter uma mínima dignidade, com camas sendo
divididas por mais de uma pessoa, outros deitados no chão, amontoados como
animais na selva de pedras, impossibilitando a passagem à noite para quem quer
ir até a fétida latrina chamada de banheiro, em condições degradantes e
inimagináveis. Cantos de rap são entoados como uma ameaça de uma guerra
silenciosa, num clima tenso 24 horas, como relata uma ex-liderança. A droga
rola solta para acalmar e aliviar as tensões naquele barril de pólvora prestes
a explodir. Um verdadeiro faz de conta de quem tem que zelar, por ser uma
inarredável função estatal, mas que vira as costas para uma situação
catastrófica que assola a população carcerária.
O documentário faz seu papel de apresentar o problema com
crueza, sem dourar a pílula, que aflige a todos. Não adianta jogar lá dentro
pessoas sem uma estrutura de readaptação. A inércia pela falta de uma política
nacional de segurança política é acachapante e perigosa que culmina na falência
do Estado. Quanto mais presos forem depositados nas casas prisionais, mais
lucros as facções bem constituídas obterão, e o crime crescerá verticalmente. O
filme é um alerta através da denúncia sobre o sistema carcerário corroído pela
omissão governamental em forma de renúncia admitida, que deflagra uma crise
institucional sem precedentes, como se reflete das imagens assustadoras e os diálogos
ameaçadores e potentes desta impactante realização gaúcha que expõe as vísceras
de uma dolorosa realidade da universidade do crime por organizações
sustentáveis e planejadas como sólidas empresas à margem da sociedade.
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