sexta-feira, 7 de abril de 2017

Central


Calabouço do Inferno

Um filme que dialoga com a plateia pelos vários depoimentos esclarecedores, dando luz para um problema insolúvel aparentemente, afasta-se dos cansativos e chatos relatos de pouca objetividade, com o intuito de preencher espaços com histórias sem profundidade em filmes similares de pouca expressão. A diretora Tatiana Sager estreia no longa-metragem Central, em codireção com o repórter e colunista policial Renato Dorneles, autor do livro-reportagem Falange Gaúcha (2008), que originou o curta-metragem O Poder Entre as Grades (2014). A cineasta amplia a história e disserta com raro esmero o crime organizado no Rio Grande do Sul, passando pelo episódio da perseguição e da rendição dos perigosos assaltantes de banco e carro-forte Melara e Fernandinho, em 1994, responsáveis pelo histórico motim no Presídio Central, com o desfecho num grande hotel de Porto Alegre, obteve grande repercussão nacional pelo inusitado, com tiroteio e correria de carros pelas principais ruas da Capital gaúcha.

A realização passa em revista e traz para o debate reflexivo o processo difícil da busca da ressocialização de apenados que deverão sair da cadeira. Para isto conta com relatos de detentos e depoimentos fortes de ex-diretores do presídio, jornalista especializado, teólogo, sociólogo, promotor de justiça e o juiz titular da Vara de Execuções Criminais. Um mergulho no calabouço daquela penitenciária infernal infestada de baratas e ratos desfilando pelas dependências, lixo espalhado pelo pátio, esgoto a céu aberto e a superlotação da pior casa prisional do Brasil, apontada pela CPI no Congresso, em 2008, com capacidade para 1.905 chegou a ter 4.500 detentos. As estatísticas são arrasadoras e retratam um universo majoritário de negros e pobres numa região em que a raça negra é minoritária. Não há ricos e os brancos são poucos que vivem naquele lugar. São causas evidentes e incontestáveis neste real cenário imundo, pior que uma pocilga, habitado por seres humanos que estão cumprindo suas penas pelos crimes cometidos.

Os realizadores mostram com eficiência o crime organizado comandado por grupos bem representativos que comercializam armas, celulares e drogas. A corrupção é inquestionável, embora a Brigada Militar seja responsável por todo o complexo prisional desde o inesquecível motim, e diga que faz "o possível" diante de tamanha precariedade estruturalO que era para ser provisório tornou-se definitivo. O filme escancara com contundência toda a engrenagem montada pelos líderes de seis facções que detêm um governo paralelo ao oficial, obtendo lucros fabulosos na cantina, uma espécie de armazém do crime, com acesso apenas para parte dos presidiários que aderiram ao sistema ali imposto, tendo em vista que as refeições são melhores e não se compara com a alimentação fornecida pelo Estado que administra até a entrada das galerias. Lá dentro o comando é dos presos e suas lideranças, com disputas entre as gangues rivais. Com isto evitou-se uma quantidade enorme de mortes pelos assassinatos no seu interior, mas após a progressão do regime, ao passar para o semiaberto e aberto, a coisa muda de figura, liberando-se na rua os acertos de contas com crimes por encomenda e as pendengas pessoais, além das dívidas contraídas no regime fechado.

Central vai ao cerne da questão e expõe as feridas putrefatas de um sistema corrompido e sem evidências de recuperação a curto prazo. As facções dependem de dinheiro para pagar seus defensores, precisam de soluções para a saúde e auxiliar as famílias de seus integrantes no sustento do dia a dia. Como enfatiza o juiz e o promotor, quando o Estado fracassa ao não assistir na progressão de regime e a consequente reinserção social para quem quer volta ao convívio da sociedade e afastar-se do mundo da criminalidade, deixa uma brecha gigantesca que é preenchida pelos bandos transgressores aparelhados. Tudo está inserido na pirâmide social com seus tentáculos e o crescimento geométrico da ilegalidade. Se falta  dinheiro e ajuda, aí então entra o paraestado das falanges atraindo um grande contingente de necessitados socioeconômicos para suas fileiras que  monitoram o tráfico, roubos, latrocínios e a prostituição nas ruas de PortoAlegre, bem como poderia ser de qualquer outra cidade cosmopolita em território nacional.

O roteiro instigante da dupla de diretores capta imagens realizadas pelos próprios presos- recurso no cinema usado no longa O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), de Paulo Sacramento-, ao mostrar o cotidiano de suas incursões nas galerias sem celas, cubículos minúsculos que foram derrubados para abrir espaços maiores. Ainda assim insuficiente para se ter uma mínima dignidade, com camas sendo divididas por mais de uma pessoa, outros deitados no chão, amontoados como animais na selva de pedras, impossibilitando a passagem à noite para quem quer ir até a fétida latrina chamada de banheiro, em condições degradantes e inimagináveis. Cantos de rap são entoados como uma ameaça de uma guerra silenciosa, num clima tenso 24 horas, como relata uma ex-liderança. A droga rola solta para acalmar e aliviar as tensões naquele barril de pólvora prestes a explodir. Um verdadeiro faz de conta de quem tem que zelar, por ser uma inarredável função estatal, mas que vira as costas para uma situação catastrófica que assola a população carcerária.

O documentário faz seu papel de apresentar o problema com crueza, sem dourar a pílula, que aflige a todos. Não adianta jogar lá dentro pessoas sem uma estrutura de readaptação. A inércia pela falta de uma política nacional de segurança política é acachapante e perigosa que culmina na falência do Estado. Quanto mais presos forem depositados nas casas prisionais, mais lucros as facções bem constituídas obterão, e o crime crescerá verticalmente. O filme é um alerta através da denúncia sobre o sistema carcerário corroído pela omissão governamental em forma de renúncia admitida, que deflagra uma crise institucional sem precedentes, como se reflete das imagens assustadoras e os diálogos ameaçadores e potentes desta impactante realização gaúcha que expõe as vísceras de uma dolorosa realidade da universidade do crime por organizações sustentáveis e planejadas como sólidas empresas à margem da sociedade.

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