segunda-feira, 27 de março de 2017

O Filho de Joseph


Vingança Familiar

Eugène Green é considerado um dos grandes cineastas americanos, com obras abrangentes e muitas reflexões com críticas ácidas à sociedade hipócrita. Suas inquietações artísticas se mesclam com sua posição nas discussões filosóficas com um certo amargor sobre as frustrações acadêmicas e existenciais, satirizando a intelectualidade francesa. Assim foi em O Mundo Vivente (2003), A Ponte das Artes (2004), e o badalado La Sapienza (2014), premiado como melhor filme no Festival de Sevilha. Retorna agora com O Filho de Joseph, um drama franco-belga de sutilezas e recheado de ironia e humor cáustico, numa narrativa leve e ao mesmo tempo profunda contada com base em cinco passagens da Bíblia, entre elas O Sacrifício de Abraão, O Bezerro de Ouro e O Carpinteiro. A produção é dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, realizadores de A Criança (2004), O Silêncio de Lorna (2008), e O Garoto da Bicicleta (2011), entre tantos títulos inesquecíveis.

A trama foca a busca do amor e o encontro com a serenidade movida pelo ódio do inquieto jovem adolescente Vincent (Victor Ezenfis), de 15 anos, criado em Paris com a proteção angelical da amorosa mãe, Marie (Natacha Régnier), uma dedicada enfermeira que reluta em revelar a paternidade ao filho. Ele sente-se rejeitado e busca saber os reais motivos pelos quais este segredo é guardado a sete chaves. Mas nem sempre o pai verdadeiro é o biológico, ao encontrar Joseph (Fabrizio Rongione), um homem sensível que tem problemas com esta sociedade de aparências voltada para os prazeres da futilidade e o consumismo. O encontro inusitado se deu no dia em que planejara se vingar do pai, Oscar Pormenor (Mathieu Amalric), o egoísta editor de livros, uma figura abjeta, arrogante, que faz questão de frisar que não tem tempo para se preocupar com a família e sequer sabe quantos filhos têm de suas relações promíscuas e sem laços afetivos. Vive num mundo à parte, numa realidade construída de trivialidades e falsidades, em que a crítica literária Violette (Maria de Medeiros) é o símbolo daquele ambiente da fogueira das vaidades e bizarrices.

O diretor habilmente coloca o sentido da existência que tanto o garoto procura para atenuar seu sofrimento e sua dor intensa que remói para desvendar o passado que será aos poucos descortinado, para que sinta-se como um expoente da vida e até almejar a felicidade que tanto idealiza. A celebração se dará na igreja, na comovente cena da linda peça interpretada pelo grupo Le Poème Harmonique, do compositor Domenico Mazzocchi. Antes, Vincent e Joseph fizeram o passeio cultural revelador pelo Museu do Louvre, quando admiram com estonteante prazer o quadro O Sacrifício de Isaac, de Caravaggio. São situações que darão a alegria de continuar vivendo, a amizade solidificada entre eles e um indício promissor de que a vingança faz parte daquele ambiente tão repudiado pela dupla, ou seja, o desprezível e inócuo mundinho vazio de ostentações sem profundidade no prazer e na essência da vida.

O cineasta, herdeiro de Robert Bresson, em entrevista coletiva recente, foi perguntado o que pensa de ser tachado de formalista? Foi direto ao ponto: “Arte é forma, senão, não é arte”. O Filho de Joseph é um mosaico familiar com sustentação de passagens bíblicas e uma contundente crítica social retratada num roteiro enxuto com uma dinâmica de formalidade estrutural cênica impecável. Neste redemoinho, está encaixado o filho bastardo que nutre uma agressividade interior contra a própria mãe, deixando transparecer algum desprezo em suas atitudes.

Mas os contornos pacificadores aos poucos irão se estabelecer nas relações entre os dois, com as revelações maduras sobre os fantasmas do passado, em que ele está aprisionado. Seu fascínio pelas algemas soa metaforicamente dando o sentido de seu enclausuramento psicológico, diante do fato pretérito causador de sua amargura e imensa tristeza. O concerto da igreja e suas incursões pelo museu irão amolecendo seu coração dolorido. “Onde está Deus?”, a pergunta fulminante ao seu amigo ecoa como uma desesperança e um pedido de socorro. “Deus está dentro de nós”, é a resposta emblemática da cena comovedora, dita com simplicidade ao questionamento. Porém, profunda pelo contexto do momento em que a raiva e a perda da lucidez tomam contornos inimagináveis para uma desforra que disseminou o desolado protagonista que vive um verdadeiro inferno astral. O filme não prega a religião, pelo contrário, busca alternativas pragmáticas para lidar com as dificuldades advindas do cotidiano, através de opções apresentadas como fórmula do bálsamo da convivência civilizada.

Um drama atual e exemplar, no qual a teatralidade da narrativa está bem inserida na linguagem do cinema em toda sua extensão que não cai na mesmice de roteiros complexos e confusos vistos em muitas realizações estéreis, ao dar vazão para um mergulho no imaginário do espectador. Green conduz o enredo com uma sincera imparcialidade, ainda que a aproximação de Joseph com Marie seja previsível de certa forma, remete de maneira alusiva para o princípio da era do Cristianismo, no qual José e Maria lutam para esconder o filho da forças do mal e da perseguição, nesta bela e convincente alegoria. Para isto é dado o tom certo do clímax que desencadeará no epílogo junto ao mar, com o jumento sendo a testemunha de uma situação insólita, após a perseguição ostensiva pelo sistema repressor policial ser lançado com toda pompa para prender um delinquente de alta periculosidade. Uma farsa total e inconsequente para uma situação meramente equivocada. O desfecho trará luz para um futuro difícil, mas com um sabor de otimismo nesta magnífica obra de valores profundos e marcantes numa atmosfera de amor e tristeza de uma realidade tão presente.

Nenhum comentário: