quarta-feira, 26 de abril de 2017

A Morte de Luís XIV


Ocaso Agonizante

O cultuado cineasta catalão Albert Serra desenvolve com elegância e sensibilidade o processo intenso da agonia dos últimos dias de Luís XIV (Jean-Pierre Léaud, em antológica atuação deste virtuoso ator revelado por François Truffaut e com interpretações destacadas também com Jean-Luc Godard), o mais famoso monarca francês e com mais tempo de reinado no mundo ocidental. Governou por 54 anos a França, após a morte do pai, Luís XIII, em 1643, sem contar o período de criança que herdou a coroa. O drama se passa em agosto de 1715, vindo a falecer em setembro, aos 77 anos, deixando um legado histórico de realizações erguidas como o Palácio de Versalhes, além do apogeu econômico, político, cultural e militar, tudo sob suas ordens sempre reverenciadas pelos súditos e o povo na maioria. Idolatrado e nominado como o Rei Sol, simbolizava o absolutismo pelo brilho que emanava com decisões veneradas em prol de seu país, causava orgulho pela paixão à nação, por isto era pouco contestado. Foi sucedido pelo bisneto Luís XV, com apenas cinco anos de idade, que até alcançar a maioridade em 1723, seu reino foi comandado pelo tio-avô Filipe II.

A Morte de Luís XIV retrata o cotidiano da majestade com seus vassalos fiéis e médicos da Corte, diante da grave doença que lhe abateu, decorrente de um ferimento na perna esquerda que gangrenou e resultou em consequências nefastas que o impossibilitou de comparecer nas reuniões com os ministros para tomar as decisões governamentais do dia a dia. Embora continuasse a exercer suas funções, passou a ter sonos intranquilos, além de problemas com alimentação e febre, que o deixa completamente fragilizado pela decrepitude que vai minando sua lucidez de uma vida minimamente saudável. Há cenas memoráveis como os cachorros no recinto para matar a saudade do protagonista no desenrolar da trama, eis um belo achado; assim como o biscoito sendo mastigado é aplaudido pelo séquito de subordinados; o vinho sendo sorvido como uma esperança de recuperação; e o mirabolante elixir com vários ingredientes receitado por um charlatão como tentativa da cura milagrosa, porém com a frustração do resultado levará o impostor para a pena máxima na prisão da Bastilha, sem direito da ampla defesa. Somente um grande artesão como Serra para não deixar a história cair na monotonia da convalescença até o óbito.

O longa-metragem apresenta com equilibrado zelo a dor e a desintegração de um homem forte, que reclama do fedor do ambiente, ou seja, ele está apodrecendo, como se depreende de sua necrosada perna que deveria ser amputada, mas por uma falha médica, só é constatada no epílogo, depois de eviscerado o corpo no próprio leito para ser retirado o coração e o baço com infecção generalizada. Conclui-se pela negligência de uma época em que a medicina era atrasada e a as pesquisas científicas ainda engatinhavam, mas a metáfora está lançada. O realizador mostra os caprichos e a ostentação de uma monarquia em fase de decadência e decomposição, que viria a ser culminada com a queda da Bastilha em 1789, através da Revolução Francesa. A exigência da água em copo de cristal, renegando o vidro, bem como as atribuídas decisões absurdas do rei em pré-coma, já com pouca consciência cognitiva, são fatores preponderantes de um ciclo obscuro, onde tudo passava pelo todo poderoso, mesmo sem ter um mínimo de lucidez e clarividência. Ali está uma nação paralisada pela moléstia de seu chefe maior, que nos remete por analogia para o fim das vidas dos ditadores Fidel Castro em Cuba e do generalíssimo Francisco Franco na Espanha.

O figurino pomposo de época com as vastas cabeleiras artificiais retrata com fidelidade este drama sombrio com um estilo bem peculiar nas tomadas de cena. Já a temática da morte, a solidão da alcova, a velhice iminente e o formalismo estético lembram em muito Ingmar Bergman, na obra-prima Gritos e Sussurros (1972), num ambiente soturno com eloquência soberba da melancolia pela bela fotografia em meios-tons que capta o aconchegante leito num quarto lúgubre dentro do Palácio de Versalhes como cenário mórbido e claustrofóbico em que é rodado todo o filme, com a iluminação de velas nos candelabros tem o cheiro do perecimento para dar o tom certeiro da narrativa no contexto de seu clímax de dramaticidade. Uma luta ferrenha pela sobrevivência e a tentativa desesperada de segurar aqui entre os mortais um celebridade endeusada e colocada como imortal e indispensável para a engrenagem do poder.

Embora não seja um produto fácil e de rápida digestão, mesmo não sendo complexo, há um falso hiato entre uma produção palatável na relação com o grande público. Porém seu nível de empoderamento promovido com os adeptos da cinefilia é magnífico pela concisão e o grau de narrativa até o alcance invejável no âmago que se propõe como objetivo na crítica temporal ali estabelecida no diálogo entre o espectador e o realizador. É elogiável pela consciência coletiva e a reflexão profunda da proposta política, social e o fim da existência. Um achado ímpar inquestionável nesta realização estupenda em tempos de escassez de obras comprometidas com a cinematografia e seus objetivos de desalienação como meio de expressão e comunicação. Um filmaço imperdível para quem aprecia singularidades com ênfase na essência pura colocadas neste painel arrebatador, que se insere na listagem dos dez melhores filmes de 2017.

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