segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

La La Land: Cantando Estações


Ode ao Romantismo

O jovem diretor Damien Chazelle, tinha 29 anos, e já demonstrava grandes virtudes em seu longa-metragem de estreia Whiplash- Em Busca da Perfeição (2014), na abordagem seca e profunda do duelo titânico na tela entre o mestre tirano com o aluno obstinado, com muita emoção num tom dramático em alta voltagem dentro de um conservatório para alunos de música, no qual um rapaz ambiciona galgar um posto de destaque na carreira de baterista profissional, mas encontra no encolerizado regente um método selvagem de lidar com seus pupilos, dentro de um rigorismo excessivo em que age com assustadora violência física e psicológica, desferindo tapas e bofetões, com cadeiras voando nas aulas. Entende que assim criará gênios como Louis Armstrong e Charles "Bird" Parker. O resultado é fabuloso num filme elogiado pela crítica diante da intensidade dos personagens bem estruturados psicologicamente, com G. K. Simmons no soberbo papel do professor enlouquecido pela técnica perfeita para descobrir novos talentos do jazz.

Em seu segundo longa, La La Land: Cantando Estações, Chazelle retoma sua admiração pelo jazz, mas desta vez num clima de romantismo exacerbado e um banho de nostalgia em um tributo aos velhos clássicos musicais das décadas de 1950 e 1960, com longos números de canto e dança de poucos cortes. Sua inspiração é explícita em Sinfonia de Paris (1951, de Vincente Minnelli, Cantando na Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen, e Os Guarda-Chuvas do Amor (1964), de Jacques Demy. Faz também algumas referências aos cenários que rodaram os inesquecíveis Juventude Transviada (1955) e Casablanca (1942). No plano-sequência do prólogo no engarrafamento na autoestrada, quase manda a plateia para casa pela fragilidade da cena. Após um gesto obsceno de um rapaz para uma moça no carro, está dada a senha para o grande romance que virá no desenrolar da trama. Primeiro desdenha e depois tenta conquistar, como nos velhos enredos de Hollywood à moda antiga. Ao chegar a Los Angeles o pianista jazzístico Sebastian (Ryan Gosling) reconhecerá Mia (Emma Stone), uma atendente de uma cafeteria dentro de um grande estúdio que luta para ser atriz. Ele é despedido de uma apresentação pelo proprietário do estabelecimento, coincidentemente interpretado pelo ator G. K. Simmons, que encarnou o irascível mestre na realização anterior; ela segue a saga de rejeições de aspirante ao estrelato.

La La Land é o grande favorito ao Oscar, dificilmente deixará de abocanhar as estatuetas principais. Está respaldado pelas 14 indicações, empatando o recorde histórico da premiação atingida por A Malvada (1950) e Titanic (1997). Disputará em várias categorias, entre as quais: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator, Melhor Atriz e Melhor Canção Original. No Globo de Ouro ganhou sete troféus, inclusive de melhor filme musical ou comédia. O cineasta é um confesso admirador dos musicais antigos e repele os contemporâneos. Dividiu o filme nas estações do ano, buscando a forma mais pragmática na elaboração de sua obra ao focar no sentimentalismo meloso. Constrói um clímax propício, como as idas e vindas para o previsível casal se apaixonar perdidamente. O roteiro direciona para oportunidades que suas carreiras apresentam paradoxalmente com carros e celulares que remetem para os dias de hoje. Surgem alguns entraves e contratempos de difícil manutenção na competitiva cidade, mas eles tentam fazer o relacionamento dar certo de qualquer maneira, enquanto os personagens centrais perseguem a fama, o sucesso e a paixão desenfreada. Um não existe sem o outro, eis o combustível perfeito para uma trajetória espinhosa.

Os sonhos desfeitos e as tentativas para ingressar no mundo hollywoodiano no apogeu dos anos dourados, como da protagonista que tenta várias vezes a carreira de atriz. Uma fábula adulta sobre a impossibilidade da felicidade desfeita de um sonho pela ganância do dinheiro diante das circunstâncias periféricas que rondam destinos do universo de estrelas distantes do cotidiano, magnificamente explorado em Café Society (2016), de Woody Allen. Chazelle não aprofunda como Allen, pelo contrário, seu musical é raso e despretensioso como reflexão ou algo mais sólido, pois se esboroa como areia movediça em termos de construção maior e significativa para um cinema como instrumento da arte superior para reflexão. Debruça-se no mundo que produz beleza externa pirotécnica para fazer brilhar os olhos. O desfecho é o encontro revelador naquele céu estrelado luminoso e singular com uma fotografia primorosa num cenário estonteante para um público menos exigente e especialmente no apelo sentimental. Tecnicamente o filme é bem feito, isto é inquestionável na produção, na montagem, na fotografia, na trilha sonora convencional, no figurino e na iluminação beirando ao neon.

O espectador descompromissado sente-se cativado pela magia do cinemão filmado em Cinesmascope, utilizada para o widescreen, mais um presente aos saudosistas da tecnologia e projeção de Hollywood nos tempos áureos da indústria americana. Pouco importa a previsibilidade do desfecho no seu desenrolar e as armadilhas melodramáticas que descambam para a pieguice barata. Um filme explorado para atingir corações carentes por este cineasta promissor, mesmo que se afaste de uma realização contundente e profunda na essência como a anterior, demonstra equilíbrio cênico num ritmo linear bem popular, quase demagógico, para colher os frutos da bilheteria. Distante de temáticas polêmicas, dentro de uma proposta de fácil digestão, flerta com a atmosfera fantasiosa de números musicais na velha fórmula de fabricar sonhos românticos sem fronteiras distantes de uma realidade. Um musical nostálgico pelos objetivos claros de riquezas em homenagens, mas pobre em conteúdo. Porém, irá trazer lembranças de um passado bem longe, ainda que seu resultado seja meramente transitório, ao passar o fervor da premiação e do apelativo marketing do Oscar.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

A Criada


Relações Ambíguas

Vem do consagrado cineasta sul-coreano Park Chan-wook o bonito drama erótico de época A Criada, exibido pela primeira vez no Festival de Cannes de 2016. O realizador e também autor do roteiro adaptou de forma livre do livro Falsas Aparências, que serviu de inspiração para uma minissérie na BBC de Londres, em 2005, em uma locação típica da Inglaterra na era vitoriana. No longa, a ambientação é na Coreia do Sul, nos duros anos de 1930, durante a ocupação japonesa no país vizinho, quando a jovem vigarista Sookee (Kim Tae-ri) é contratada pelo falso conde Fujiwara (Ha Jung-woo) para trabalhar como serviçal na casa de uma herdeira nipônica, Lady Hideko (Kim Min-hee), que leva uma vida pacata e sem graça ao lado do autoritário tio Kouzuki (Cho Jing-woong). Há um plano macabro para seduzir a ricaça ingênua, roubar sua fortuna e trancafiá-la em um sanatório, que serve como mote para a trama, porém há motivações guardadas em segredo que aos poucos se revelam.

O habilidoso diretor opta por um filme em três atos, em que é contada a mesma história de forma diferente, porém somente no epílogo se saberá qual a verdadeira identidade do enredo. A narrativa é complexa e não se afasta do rigor formal peculiar das obras anteriores de Chan-wook, quase sempre em cumplicidade com a plateia, tais como: Mr. Vingança (2002), Oldboy (2003), Lady Vingança (2005) e Sede de Sangue (2009). Desta feita, cria-se um clímax de suspense e o espectador fica na dúvida para entender o que está acontecendo realmente. Os personagens, como se fossem colocados ardilosamente num tabuleiro de xadrez, estão sempre aprontando e enganando propositalmente a atenta plateia como numa mágica de engenharia cinematográfica. Às vezes, cansa pelas repetições e diálogos enfadonhos, mas logo dá um salto no roteiro eclético e segue a trajetória transitando entre o Japão e a Coreia.

O drama é bem formatado esteticamente, com uma fotografia deslumbrante numa construção invejável. Mas falta alma para a realização, que por vezes desliza em situações rasas, porém é criado um imaginário bem intenso pelo movimento da câmera para conseguir resultados apreciáveis ao explorar o estilo gótico, numa combinação singular de adereços com a instigante trilha sonora. Há uma mescla de erotismo das amantes fazendo sexo explícito com o iminente perigo em várias cenas. Tudo é verdadeiro num ato como poderá ser desmanchado no outro. O prazer sexual na essência é apresentado como aparência refinada, mas emerge a dúvida, a raiva, o ódio e a vingança. Há uma mistura em cenas tórridas eróticas filmadas como se fosse um poema inesgotável de sutilezas e sensibilidade à flor da pele. Eis uma aventura empírica num jogo perigoso para um mergulho numa imersão de luxúria proposta com algum fôlego.

O filme é uma relação conturbada e ambígua entre os personagens no seu cotidiano de uma bem arquitetada tramoia para roubar joias, roupas e uma fortuna imensurável. Mas como todo crime que nunca é perfeito, haverá o enfeitiçamento da empregada transgressora pela patroa bela e sedutora. Num primeiro momento pensa em protegê-la do conde de araque, fica penalizada com a triste saga da jovem herdeira que é obrigada a ler livros pornográficos falsificados pelo tio devasso para homens sedentos de lascividade, devidamente trajada como uma dama da sociedade. O plano começa a se esboroar com a aproximação e o vínculo estreito entre as mulheres envolvidas emocionalmente, acirrando os ânimos ao extremo com o cenário romântico. Soa como uma libertação para ambas, um corte das amarras do preconceito enraizado numa sociedade aristocrática com suas futilidades inerentes daqueles tempos. A felicidade aparente de sorrisos e olhares reveladores está inserida num mundo imaginário de desilusões de vidas fracassadas por um conceito residual estereotipado no gesto autêntico da escolha ousada. Basicamente, é a difícil realidade de dois seres humanos que optaram por uma relação proibida na sociedade conservadora. A solução encontrada para dar guarida e prosseguimento ao idílio é a camuflagem dos encontros.

Um parâmetro da temática de relacionamento homossexual feminino é o drama familiar Carol (2015), de Todd Haynes, embora pegue leve nas cenas de sexo, flutua pelos caminhos da sugestão e as carícias sutis das preliminares; outro seria o longa Flores Raras (2013), de Bruno Barreto, numa abordagem sobre uma relação intrincada no Rio de Janeiro, em 1956. Não tem o fervor do polêmico drama francês Azul é a Cor Mais Quente (2013), de Abdellatif Kechiche, que impactou com uma cena tórrida de sexo num plano-sequência de intensidade e realismo em seis minutos, que causou furor e escandalizou críticos e o púbico mais conservador em Cannes. Já o realizador sul-coreano lança um olhar feminista sobre A Criada, embora esteja mais contido no banho de sangue, deixa para o desfecho o violento acerto de contas com mãos e dedos decepados. Seu longa carrega no erotismo, no qual se sai muito bem e surpreende pela ousadia. Não se trata de uma obra sobre duas mulheres que transam o tempo todo, porque não é um filme panfletário, ainda que a voltagem seja alta. Há um bom mecanismo psicológico das personagens que é apresentado com imparcialidade as fragilidades reveladas. Não se acena com facilidades demagógicas para resolver problemas complexos, mas ainda que um tanto repetitivo, é um interessante filme de pequenos detalhes pela lente da ternura.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Eu, Daniel Blake


Discriminação Social

Um retrato crítico e fiel sobre o controverso sistema previdenciário da Grã-Bretanha é estampado como poderosa denúncia de impasse burocrático no fabuloso drama social Eu, Daniel Blake, ganhador da Palmo de Ouro de 2016. Defensor ferrenho e inarredável das causas sociais em que estão envolvidas quase sempre as classes operárias oprimidas, o octogenário diretor inglês Ken Loach é um humanista por natureza, e por este seu último longa ganhou pela segunda vez o troféu. Anteriormente, havia arrebatado em 2006 com Ventos da Liberdade, em Cannes. O título é mais uma parceria com o roteirista Paul Laverty, com quem realizara A Canção de Carla (1996), O Meu Nome é Joe (1998), Ventos da Liberdade (2006), À Procura de Eric (2009), entre tantas realizações da bem-sucedida e inseparável dupla.

A narrativa em tom naturalista pela espontaneidade de puro realismo dramático causa comoção, indignação e constrangimento no espectador atento às coisas do cotidiano na triste saga do operário enfermo, diante do grotesco evento proporcionado pelos burocratas de uma repartição pública inglesa, mas bem que poderia ser no Brasil que atualmente passa por uma reforma com mudanças radicais na Previdência, ou em qualquer outro lugar do Ocidente, pela temática universal abordada com dignidade e sensibilidade. A trama retrata o personagem-título (Dave Johns- numa atuação estupenda) que após sofrer um ataque cardíaco e ser vetado pelos médicos a retornar ao trabalho, tenta receber o Auxílio Financeiro concedido pelo governo aos inaptos por moléstia grave. Já no prólogo do filme, a imagem revelada é uma tela escura, onde apenas se ouve um questionário enfadonho de uma funcionária da saúde que conclui que o protagonista não faz jus ao benefício pretendido.

Daniel é um homem doente, de 59 anos, viúvo, sem filhos, exímio carpinteiro e um artista da madeira. Mas esbarra na burocracia previdenciária estatal, que o obriga a preencher um formulário digital solicitando desta feita um Seguro-Desemprego. Passa por uma reciclagem num curso para encaminhar um currículo e distribuir nas empresas e pequenos comércios locais. Por ser um analfabeto em informática, o fato ganha contornos ainda maiores, pois terá que pedir ajuda para outras pessoas mais familiarizadas com o computador. Depois de tudo isto, tem que provar que entregou os ditos currículos, o que não consegue fazer. Provisoriamente recebe cestas básicas do Serviço Social, mas terá que fazer outros requerimentos para receber então um Auxílio Emergencial. Cada vez mais as coisas se complicam, explode de raiva, picha o prédio do governo, reivindica seus direitos com o apoio de alguns populares, mas acaba preso e solto por um termo circunstanciado.

Habilmente o realizador conduz o drama com contornos de inverossimilhança pelas circunstâncias apresentadas. O problema não é resolvido e a situação é colocada como um libelo ao poder econômico pela discriminação social de quem depende da assistência no momento em que mais precisa, mesmo cumprindo seus deveres de cidadão honesto e em dia com os impostos. Num clímax de tensão que vai embrulhando o estômago, a história do desvalido cresce e mergulha no desespero da perda iminente da dignidade ao se encaminhar para um desfecho inesperado. Numa de suas várias idas ao departamento governamental, o nosso anti-herói conhece Katie (Hayley Squires), uma jovem mãe solteira de dois filhos menores, abandonada pelo companheiro, que se mudou recentemente de Londres para a fria cidade industrial de Newcastle, norte da Inglaterra, que também não possui condições financeiras para se manter. Daniel é uma espécie de pai e protetor para as crianças, diante da omissão do Estado. Criam um vínculo forte de amizade, logo após o benefício da moça ser negado por ela ter chegado atrasada na entrevista. Os dois são humilhados e enxotados pelos truculentos seguranças. A polícia é um instrumento repressor do sistema como uma ameaça constante para quem protesta de forma veemente. Tanto para a mulher que terá que optar por ganhos indignos como alternativa de sobrevivência, como para o homem derrotado, símbolos do descaso. Entre eles há o vizinho, um rapaz negro que vende produtos pirateados da China, outro marginalizado da sociedade de consumo, que busca na clandestinidade maneiras de tocar a vida como pode.

O veterano Loach cria com extrema magia cinematográfica um doloroso painel kafkiano, que lembra a intrincada máquina burocrática ambientada no best-seller O Processo (1925), de Franz Kafka. Aproxima-se com grande similitude temática do notável drama Um Episódio na Vida de Um Catador de Ferro-Velho (2013), do diretor bósnio Danis Tanovic, em que o marido recorre à Assistência Social para resolver o problema de saúde da esposa, mas só há uma alternativa: ou arruma o dinheiro ou morre sem dó e nem piedade. Tanto na Bósnia-Hersegovina como na Grã-Bretanha, a discriminação social está presente e não faz concessão aos excluídos.

Eu Daniel, Blake tem contundência pelas cenas de uma realidade amarga das vicissitudes advindas da causa pela sobrevivência dos contribuintes. Despojado de alegorias e metáforas, tem uma construção rica de elementos dentro de um roteiro enxuto e direto ao ponto, sem grandes armadilhas ou situações que poderiam levar para uma trama apelativa. Um filme intenso que enobrece o cinema, através de um enredo emocionante sobre os dissabores dos marginalizados, em que personagens são descartáveis como objetos quando não servem mais ao dogmático capitalismo selvagem que leva para o desequilíbrio dos menos favorecidos na pirâmide social, ferindo o princípio da igualdade ao fazer restrições. O conflito é fruto de um sistema previdenciário instável e pré-falimentar que vira as costas para os necessitados quando estes mais precisam. Lança um olhar reflexivo com tintas fortes e marcantes sobre os socialmente desvalidos de maneira eloquente pela falta de dignidade e ética sob o prisma da hipocrisia repleta de nefastas manchas por condutas reprováveis e desumanas.

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Estados Unidos Pelo Amor


Solidão Feminina

No apagar da luzes de 2016, eis que surge da Polônia em coprodução com a Suécia Estados Unidos Pelo Amor, terceiro longa-metragem do promissor diretor e roteirista Tomasz Wasilewski, de 36 anos. Uma fabulosa mescla de crítica social com drama intimista sobre os destinos de quatro mulheres que querem mudar radicalmente para buscar a felicidade, por isto darão asas para seus futuros. Elas estão inseridas no meio do histórico fato da queda do Muro de Berlim, em 1990, o que leva os poloneses a vivenciarem um momento de euforia e liberdade, mas paradoxalmente ao mesmo tempo as incertezas rondam fortemente suas aspirações profissionais, como indica o prólogo da reunião familiar durante um aprazível jantar. Foi laureado como o vencedor do Urso de Prata de melhor roteiro no Festival de Berlim do ano passado e levou o Prêmio José Carlos Avellar de experimentação da linguagem no BIFF- Festival Internacional de Cinema de Brasília. O cineasta tem em filmografia os anteriores In a Bedroom (2012) e Um Mergulho no Espaço (2013).

A história é muito bem construída com subsídios exemplares num cenário propício de dias esperançosos nesse contexto. Agata (Julia Kijowska) é uma jovem mãe em um casamento sem amor, infeliz e turbulento, que mergulha no imaginário platônico de um relacionamento impossível ao sonhar com um padre da comunidade, evita o repulsivo toque do marido. Renata (Dorota Kolak) é uma idosa professora de literatura russa, convive em seu apartamento na companhia de vários pássaros, é apaixonada pela solitária vizinha Marzena (Marta Nieradkiewicz), uma ex-miss casada com um alemão que trabalha no exterior, é professora de educação física e se envolve fortuitamente com um fotógrafo maníaco. Já Iza (Magdalena Cielecka), irmã de Marzena, é diretora do colégio em que Renata leciona, torna-se amante de um médico casado e pai de um dos seus alunos, por quem ama loucamente, faz de tudo para conquistá-lo em definitivo quando ele fica viúvo.

Estados Unidos Pelo Amor faz um resgate das fantasias contidas naquele universo restrito e busca desenterrar a felicidade, ao colocar em xeque o papel da Polônia sobre os novos rumos do mundo, além da reunificação da Alemanha e da extinção iminente da União Soviética, como pano de fundo para uma narrativa densa, silenciosa e melancólica daquele quarteto de mulheres frustradas pelos seus problemas psicológicos que afloram com abundância as inquietudes adormecidas. Há uma derrocada pessoal, através dos devaneios e verossimilhanças de amores malogrados e partidos pelo tempo. Abafa-se a explosão catártica individual de emoções para impedir o coletivo flagrantemente, embora desmistificadora nas almas femininas que pululam e clamam para serem entendidas, tendo em vista que elas estão cobrando uma posição e um comportamento de reconhecimento das lacunas pelas doloridas fendas abertas que continuam sufocadas.

O epílogo sombrio remete para a obra-prima Gritos e Sussurros (1972), de Ingmar Bergman, diante da profunda imersão em suas próprias dores psíquicas que as personagens passam, beirando situações autodestrutivas no consolo e na empatia solidária entre elas. Um filme que aprofunda questões com imagens contundentes repletas de mistério na recriação de época, num cenário realçado e propício para um clímax em tons pastéis esmaecidos quase preto e branco, com locações num enorme condomínio suburbano com ênfase na frieza dos relacionamentos, pelo competente fotógrafo da República da Moldávia Oleg Mutu, que deu show visual em 4 Meses, 3 Semanas, 2 Dias (2007), do romeno Cristian Mungiu e Na Neblina (2012), do russo Sergei Loznitsa. A narrativa visceral é um ótimo exemplo de um enredo bem construído de bons diálogos, numa trama com ingredientes de dramaticidade dos personagens bem condensadas num roteiro eficiente e de muita sutileza sobre a temática sem estereótipos, em situações alucinantes para a reflexão das dúvidas amorosas e a liberalidade sexual, como as descobertas e os sonhos prazerosos nas cenas picantes de sexo intenso e com realismo.

O longa é uma daquelas realizações marcantes e dignas de constar na galeria das obras que mergulham na alma e no âmago de seres humanos perturbados por fatores diversos da plena consciência. Um painel de relatos que impressiona e instiga pela ousadia na mescla de temáticas, principalmente pela maneira como são colocados os fatos em consonância com as dores das personagens bem focados numa angustiante monotonia. A tensão aumenta e o fio do nó irá se desatando, com as revelações e as carências afetivas sendo literalmente expostas como vísceras, num clima que vai se construindo com todas as gradações de nuances do cotidiano tedioso. Um mergulho no sofrimento e na tristeza das perdas amorosas e a solidão que se escancara como resultado final, mas no seu contexto reflexivo há muito mais, como as remoções para os primeiros passos até atingis a liberdade e suas opções livres, como encaminha Wasilewski dentro de uma proposta madura, afastando os preconceitos das amarras repressivas, neste espetacular drama sensível polonês contemporâneo com significativo erotismo e suas abordagens sobre seus espaços num universo de igualdades, mesmo que desemboque em rupturas estruturais na sociedade.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Os 10 Melhores Filmes do Ano (2016)


Os 10 Mais e 05 Menções Honrosas

Como é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos em 2016, também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda 05 Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

01. A Ovelha Negra (foto abaixo), de Grímur Hákonarson;

02. O Botão de Pérola, de Patricio Guzmán;

03. As Montanhas Se Separam, de Jia Zhang-ke;

04. A Viagem de Meu Pai, de Philippe Le Guay;

05. Elle, de Paul Verhoeven;

06. Aquarius, de Kleber Mendonça Filho;

07. Café Society, de Woody Allen

08. Nossa Irmã Mais Nova, de Hirokasu Kore-eda;

09. O Filho de Saul, de László Nemes;

10. Agnus Dei, de Anne Fontaine.


Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

- O Silêncio do Céu, de Marco Dutra;
- Paulina, de Santiago Mitre;
- A Terra e a Sombra, de César Augusto Acevedo;
- Táxi Teerã, de Jafar Panahi;
- Carol, de Todd Haynes.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Neruda


O Poeta Político

O Chile apresenta seu representante que concorreu à vaga de melhor filme estrangeiro do Oscar de 2017, porém ficou fora da pré-seleção, mas disputará o Globo de Ouro. Neruda é o nono longa-metragem de Pablo Larraín, uma abordagem de um período pouco conhecido do poeta Pablo Neruda (1904-1973) e sua incursão como senador cassado na política chilena, bem como seu período no exílio, ao se refugiar no sul do país. Foi perseguido pelo governo totalitário chileno de 1948, sob o comando do presidente Gabriel González Videla (Alfredo Castro), por ser um comunista assumido e com ligações ao governo da extinta União Soviética, embora haja discordância dos biógrafos sobre a verdadeira trajetória e suas andanças pelo continente. Neste vácuo de contradições, o diretor dá asas à fértil imaginação para criar situações pitorescas e ficcionais, embasadas no discurso ao receber o Nobel da Literatura, em 1971. Menciona na cerimônia estar no lombo do cavalo e seus sangramentos, com o auxílio de vaqueiros na travessia pela Cordilheira dos Andes.

Larraín é um cineasta de 40 anos, inquieto e sempre inventivo nas suas propostas, procura lançar questionamentos profundos sobre suas realizações, mostra-se preocupado com as distorções das mazelas sociais e políticas de seu país. Entre os filmes mais conhecidos da filmografia estão: Fuga (2006); o aclamado Tony Manero (2008) com boa repercussão na 32ª Mostra de São Paulo; Post Mortem (2010); o festejado pela crítica e aplaudido pelo púbico No (2012), talvez o mais popular deles por retratar a pressão internacional sobre o ditador Augusto Pinochet, que convoca um plebiscito para avaliar seu governo sanguinário e a manutenção em 1988. O não à continuidade e o sim para as eleições diretas em todos os níveis, semelhante ao apelo popular no Brasil entre 1983 e 1984, com o célebre movimento que mobilizou o país em torno da redemocratização Diretas Já. É dele também o badalado O Clube (2015) e a comentada (e ainda inédita no Brasilcinebiografia Jackie (2016), sobre a ex-primeira-dama dos EUA Jacqueline Kennedy, rendendo a indicação de Natalie Portman ao Globo de Ouro.

Em Neruda a trama gira em torno do personagem que empresta o nome ao título (Luis Gnecco), que dá ênfase na perseguição para ser rotulada de selvagem, e assim seja inserido no desenlace da história, passando da ficção para a realidade. No encalço do poeta está Oscar (Gael García Bernal), o implacável policial e obstinado servidor do regime, que deseja provar seus dotes para alcançar a fama definitivamente. Beira como uma obsessão, numa fórmula mágica e fantasiosa do jogo entre o gato e o rato na perseguição ideológica ao comunista perigoso que come criancinhas no fundo do quintal. O filme mostra uma guerra eminentemente particular entre os dois símbolos do sistema. Um é a alegoria do poder ensandecido; o outro é visto como um ícone da cultura sufocada que foge para não ser preso e humilhado perante o povo. São situações emblemáticas entre a caça e o caçador que constroem versões que melhor convém para cada um dos personagens literalmente dentro de um painel simbólico de insatisfações de uma realidade cruel. Um depende do outro, eles se atraem impulsivamente por uma força irresistível, por isto são falsos prisioneiros dentro de uma teia de aranha, em que não conseguem romper os vínculos.

O mérito do realizador está em não colocar o personagem central como um herói do povo, contraditoriamente é mostrado como um sujeito egocêntrico e superior aos demais colegas do partido que seguem uma ideologia de luta por um ideal, embora extremada em algumas situações. Pablo Neruda é retratado como um homem que gosta de vida boa, orgias com mulheres e farras homéricas. Uma abordagem que privilegia seu talento, suas paixões, a vaidade e o egoísmo contrastando com as convicções políticas. As fantasias e os absurdos estão na simbiose do intimismo da história bem elaborada pelo diretor, que não exime seus personagens dos paradoxos e fragilidades existenciais, sequer afasta as idiossincrasias existentes em cada um deles na inspirada criação psicológica dos dois: Pablo Neruda e Oscar. A farsa está presente na construção do jogo pelo poder e as decorrências que dele emergem. É elucidativa a cena da engraçada esposa de Neruda, a artista plástica argentina Delia (Mercedes Morán), quando o casal discute cinicamente sobre a importância da pirotécnica perseguição, ela é lacônica e incisiva ao mandá-lo correr atrás de seu algoz.

O drama, mesclado com traços biográficos e uma narrativa com clímax policial, tem no roteiro de Guillermo Calderón o foco no rumo dos dois oponentes principais em tom ficcional, sem traçar datas e evoluções de aspecto verídico. A poesia é bem adaptada para o cinema, sem se tornar cansativa. Apenas insiste na repetição do famoso “Posso escrever os versos mais tristes essa noite”, como forma de registro de um irônico poema clássico. A fotografia é esplendorosa com imagens poderosas de nevascas de um realismo marcante no epílogo, bem assessorada pela bela trilha sonora. Neruda é, antes de tudo, uma boa narrativa do estigma deixado pela cruzada anticomunista, mas também não se abstém de sua função ao documentar com devaneios a vida de uma das figuras mais emblemáticas e influentes da cultura do século passado. Ainda que subverta os fatos ao optar pela encenação farsesca, eximindo-se de um relato fiel dos acontecimentos, deixa a criatividade cinematográfica ser o elemento preponderante na essência deste bom filme.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

É Apenas o Fim do Mundo


Mágoas do Passado

A trajetória do talentoso diretor Xavier Dolan começou muito cedo, com apenas 20 anos já conquistou seu público cativo na extraordinária estreia confessional Eu Matei a Minha Mãe (2009), sobre a relação edipiana e o contemplamento com desprezo. No segundo longa, Os Amores Imaginários (2010), dá uma boa derrapada com um filme mais leve e engajado na causa gay, deixa a desejar como uma obra mais reflexiva, e talvez, devesse ser comprometido com uma análise crítica mais aprofundada. Depois veio Laurence Anyways (2012) mostrando os paradoxos da existência humana ao enfrentar uma situação delicada da troca de sexo para virar mulher através de uma cirurgia, aborda os problemas complexos como a força do desejo sendo mais forte do que manter os laços de uma união. Tom na Fazenda (2012) não teve boa repercussão, nem de público e sequer da crítica, porém a penúltima realização, Mommy (2014), reacendeu a luz da inspiração do jovem cineasta de 27 anos.

Agora o realizador canadense volta com seu sexto longa-metragem, É Apenas o Fim do Mundo, que teve lançamento mundial no Festival de Cannes, em maio deste ano. Eis um potente drama intimista com discussões e buscas do passado na essência das aparentes questiúnculas invisíveis que ficaram sem um desenlace a contento. Como que jogadas embaixo do tapete, inoportunamente são retiradas de lá e passam a fazer parte deste vigoroso painel num cenário de frustrações do microcosmo familiar e suas aberrações de futricas que tomam dimensões estratosféricas. Um retrato digno da violência estampada na agressão psicológica pelas palavras ferinas e pontuais como um míssil à procura da vítima que é lançado para alcançar o alvo dentro do convívio pouco estreito daquele núcleo desestruturado, mas que aparentemente vai tocando a vida como se nada de obstáculos os perturbassem. São inevitáveis os rumos diferentes tomados pelos personagens envolvidos, mas na realidade nunca se afastam totalmente, pois o vínculo da união resiste pela figura maternal. Há uma realidade a ser encarada para a construção dos elos perdidos.

Baseado na peça teatral homônima de Jean-Luc Lagarce, a trama aborda o escritor Louis (Garspard Ulliel, convincente na interpretação), longe de casa há 12 anos, retorna para contar sua tragédia pessoal, diante da iminência da morte por decorrência de uma doença terminal. O encontro com os membros familiares é pouco auspicioso. Sente-se sufocado pela receptividade agressiva do irmão, o irascível Antoine (Vincent Cassel, perfeito no papel), mas terá a compreensão da destrambelhada irmã, Suzanne (Léa Seidoux) é afável e ao mesmo tempo problemática pela dependência de drogas, quer ter vida própria, sair daquele lugar interiorano para desabrochar na vida. É importante a presença marcante da mãe (Nathalie Baye), sempre pronta para acalmar os ânimos e contemporizar com suas sacadas sutis e positivas. É uma defensora ferrenha da união e tenta pacificar com seu jeito descolado os diálogos ríspidos entre os filhos. O objetivo daquela reunião torna-se frustrante, pois o preconizado por Louis toma outros rumos e sai do controle completamente, como uma locomotiva que descarrila dos trilhos num declive montanhoso. Principalmente com o temperamental irmão que se acha inferiorizado profissionalmente, uma espécie de brutamonte pseudocivilizado, sempre dá contornos antagônicos nas conversas mais amenas, falta-lhe a sensibilidade que sobra na esposa submissa, Catherine (Marion Cotillard), com seus olhos de interrogação, mas sempre disposta a dar um carinho ao cunhado, considerado como um estranho no ninho pelo marido implacável.

Dolan se aprofunda na temática com sua sensibilidade e hábil sutileza para estabelecer os contrastes familiares, onde pequenas coisas e desavenças de outrora tomam proporções absolutas para inibir o que seria um doloroso relato sobre a iminente morte do visitante, com sua sombria aparência, suas reminiscências que não são entendidas como as indicativas luzes sugeridas pelo protagonista, tais como: ir até o café do aeroporto ou rever a antiga casa abandonada em que passou a infância. O encontro sonhado toma outros horizontes, passa pela rotina de lágrimas por brigas e desacertos de um passado removido com seus fantasmas ressurgindo com sangue nos olhos, e por vezes, a vingança mistura-se a ciúmes camuflados se estabelecendo com garras e tentáculos gigantes. Até o almoço no jardim virou uma sucursal do inferno, pelas idiossincrasias em formato de acusações verbais inusitadas para todos os lados, especialmente do recalcado Antoine, no embalo da bela trilha sonora pop, entre as quais a romena Dragonstea Din Tei, da versão original de Festa no Apê, do brasileiro Latino.

O desfecho com o pássaro inerte no chão, após o toque da meia-noite no antigo relógio cuco de parede, propiciando a revoada premonitória da pequena ave, é uma poderosa metáfora da liberdade pelo fenecimento, em que os mortais rompem as amarras da vida diante da intransigência, no confronto entre vida e morte e as emoções existenciais sobre o progressivo fim do ser humano, remete para a bela cena do estupendo drama Amor (2012), de Michael Haneke, quando a pomba invasora do apartamento é expulsa pelo ancião, representa então a libertação do espírito da mulher doente de seu corpo, como se fosse um cativeiro indesejado. É Apenas o Fim do Mundo tem contundência por ser um filme dolorido pela melancolia de um reencontro turbulento, em que são refletidas situações menores em detrimento de uma causa bem maior. O epílogo é magnífico pelo senso revelador, como também fascina o prólogo ao retratar a chegada em sua terra natal do agonizante escritor com seu segredo pela notícia estarrecedora de uma situação irremediável. Basta observar a opção por planos-sequência longos com a câmera estática em cada personagem distante da realidade perturbadora com closes fechados e com alto grau de profundidade numa narrativa equilibrada, num tom amargo e seco.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Elis


Emoção Afinada

O diretor estreante Hugo Prata quando começou a trabalhar no longa Elis, há cinco anos encontrou algumas dificuldades para realizar esta magnífica cinebiografia sobre a maior cantora do Brasil de todos os tempos, para muitos da crítica e do público. Só havia uma biografia na época, agora já são três, pois há um musical que fez sucesso e mais o ora badalado filme deste promissor cineasta. Elis Regina (1945-1982) cantou samba, disco music e consagrou-se definitivamente na MPB. Detentora de uma voz afinadíssima e cristalina, colocava muita emoção na interpretação com seus gestos coreográficos no palco, que a tornou completa pelos seus recursos técnicos. Não se acomodava e nem se conformava com pouco. Sempre quis ser a melhor, batalhou lutou, foi debochada, espezinhada e chamada de “Hélice Regina”- alusão pelos movimentos de braços girando como pás para o eixo no espaço- pelo seu primeiro marido, Ronaldo Bôscoli (Gustavo Machado), um mulherengo inveterado que não podia ver um rabo de saia, num casamento corturbado por brigas violentas e algumas baixarias.

Ainda jovem deixou Porto Alegre, em 1964, para se estabelecer no Rio de Janeiro. Uma personagem desafiadora que estava muito além de seu tempo. Uma mulher de personalidade forte, por isto o apelido de “Pimentinha”, logo se impôs no universo machista para viver paixões arrebatadoras. Ao estremecer a relação com o zeloso pai, Romeu (Zécarlos Machado), decide fazer carreira e tocar em frente a fabulosa trajetória artística, deixa seu talento desabrochar no Beco das Garrafas, um lugar em que a boemia carioca predominava. Ali conheceu o badalado empresário da noite Miele (Lúcio Mauro Filho); o coreógrafo norte-americano Lennie Dale (Julio Andrade, que depois foi preso pela ditadura militar; e o arrogante Bôscoli, um defensor obstinado da Bossa Nova. Mas a consagração só viria depois com a canção Arrastão, em 1965, no festejado Festival da TV Excelsior. Os caminhos se abriram para brilhar no programa Fino da Bossa, em que animava com Jair Rodrigues (Ícaro Silva), motivo de galhofa de seus pares por ele “plantar bananeira” no auditório.

O roteiro assinado por Prata, Luiz Bolognesi e Vera Egito faz um retrato fiel da gauchinha que se irrita com os caminhos que a indústria fonográfica quer dar, impondo algumas normas contrárias aos desejos de inovação propostos pela intérprete, uma incansável defensora da boa música popular brasileira, que tem o apoio do crítico Nelson Mota (Rodrigo Pandolfo), o empresário Marcos Lázaro (César Trancoso) e o surgimento em sua vida do tímido pianista César Camargo Mariano (Caco Ciocler), com quem faz parceria profissional e se casa pela segunda vez, tendo mais dois filhos, entre eles Maria Rita, já tinha um do primeiro matrimônio. Sofreu muito com a oposição ferrenha do cartunista Henfil (Bruce Gomlevsky) que não admitiu vê-la nas Olimpíadas Militares interpretando a melodia Madalena. Cria-se um ambiente de animosidade e rejeição por alguns colegas do meio musical, embora sua rápida aparição tenha sido forçada e pressionada pelo Comando Militar com ameaças ostensivas aos seus filhos.

Aclamado no Festival de Gramado como melhor filme pelo júri popular, ganhou também os Kikitos de melhor atriz e montagem. Embora tenha ficado de fora por questão de logística a gravação em Nova Iorque de Elis & Tom, em 1974, no disco em que há o dueto antológico da dupla na canção Águas de Março, que marcou a carreira dos dois, a cinebiografia é uma narrativa em tom de drama que aborda o relacionamento difícil da cantora que origina uma fossa imensurável, ao atrair a antipatia da esquerda e os olhos atentos da censura batendo em sua porta por um governo militar implacável, além da turbulência das ruas pelo golpe de 1964. Sobram elementos que subsidiam uma grande depressão existencial da estrela que fora aplaudida em espetáculos na França e EUA. O desfecho angustiante e dolorido pela morte prematura, aos 36 anos, causada pela mistura de cocaína e álcool, são fatores essenciais para o iminente trágico fim por overdose de uma vida intensa, de altos e baixos, advindos de reveses e vitórias da briguenta estrela e sua força de manter-se de pé nos piores momentos.

Há que se ressaltar em Elis, a magistral atuação de Andréia Horta, de 33 anos, conhecida por personagens secundárias em novelas, atinge o ápice com o maior papel de sua carreira, mesmo que esteja apenas dublando as músicas da trilha sonora, atua com uma impressionante dramaturgia, muito além da expectativa. Não é fácil encarnar a gigante Elis Regina, mas demonstra soberbo vigor físico e psicológico para uma construção despojada que atinge a exuberância com suas gengivas expostas, os trejeitos, o sorriso, o corte de cabelo e o gestual marcante intimista da biografada, uma artista emblemática e sensível, poética e por vezes reveladora. Eis um passeio pela trajetória de fatos verídicos que marcaram uma existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma história recheada de futilidades. Um filme para todas as gerações, tendo como marco histórico a angustiante vida com seus contratempos de uma celebridade. Para ser lembrado e sorvido com sensibilidade as sutilezas sugeridas, lava a alma e deixa os ombros um pouco mais leves as saborosas melodias com o gosto e a marca brasileira, além do resumo episódico do anacrônico regime ditatorial que passou sem deixar saudades.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Depois da Tempestade


Laços de Família

O Festival de Cannes do ano passado teve a presença do Japão, muito bem representado pelo festejado cineasta Hirokasu Kore-eda com Nossa Irmã Mais Nova (2014). Embora aclamado pela crítica e pelo público, saiu de mãos vazias. Foi obter a recompensa pelo seu belo trabalho no Festival de Yokohama, ao ser agraciado com a premiação de melhor filme, e ainda levou o prêmio de público no Festival de San Sebastian. O festejado diretor nipônico já havia concorrido, sem êxito, à Palma de Ouro em outras duas vezes com Distance (2002) e Ninguém Pode Saber (2004). Neste ano, participou da mostra Un Certain Regard com Depois da Tempestade, mas novamente saiu sem premiação. Porém, sua consagração aconteceu na 40ª. Mostra de Cinema em São Paulo, ao ser laureado como Melhor Filme pelo Prêmio da Crítica Internacional.

Kore-eda tem uma vasta filmografia das crônicas ambientadas na classe média baixa de seu país, dá um mergulho no microcosmo familiar para contar histórias verossímeis do dia a dia. Observa as mudanças inerentes que acontecem com o passar dos anos, expondo as feridas não cicatrizadas para lançar luzes ao universo das distorções dos lares desagregados em ruínas, com uma temática voltada para as perdas, enigmas da vida e por consequência a morte. Abordagens estas encontradas em Depois da Tempestade, um drama suave, onde não falta singeleza e uma aparente serenidade para buscar a reconstrução dos vínculos rompidos dos laços afetivos na madrugada de uma iminente tormenta que se aproxima. Um exorcismo das almas magoadas e dilaceradas pelas circunstâncias antagônicas, como do instável e descompromissado Ryota (Hiroshi Abe), um escritor fracassado que ganha dinheiro bisbilhotando a vida dos outros, num subemprego de detetive numa agência antiética e voltada para a extorsão. O protagonista tenta se aproximar do filho pré-adolescente Shingo (Taiyo Yoshizawa) e da ex-mulher Kyoko (Yoko Maki), mas no meio do turbilhão está a carismática avó (Kirin Kiki), que coloca panos quentes na relação conturbada e faz o que pode para dirimir as desavenças.

O realizador tem como marca registrada seu olhar voltado para as transformações das gerações, numa abordagem humana e profunda sobre as relações familiares, o cotidiano das simples coisas que irão ao encontro de situações complexas e modificações relevantes. Herdou a sutileza mesclada com sensibilidade dos inspirados diretores conterrâneos como Yusujiro Ozu em Era Uma Vez em Tóquio (1953), Mikio Naruse por Midareru (1964), e o criador do cinema de animação Hayao Miyazaki com temas recorrentes da relação da humanidade com a natureza. Segue a trajetória do questionamento primoroso dos velhos mestres para mergulhar no universo peculiar das tradições da cultura japonesa. No longa Ninguém Pode Saber (2003), havia a temática da mãe ausente dos filhos e a contundente falta de afeto aos mesmos. Em Pais e Filhos (2013), retratava um drama que discutia a troca de bebês e os efeitos futuros das crianças trocadas no berçário com as revelações recebidas, num clima de tensão instalado diante do amor pelo filho de outros pais e a intolerância de um deles. Na sua realização anterior, Nossa Irmã Mais Nova, mostra a dolorosa distância de três filhas que não veem o pai há 15 anos, mas ao saberem da morte dele, resolvem ir ao seu enterro, e lá conhecerão a tímida meia-irmã.

A história é traçada com um sabor agridoce, sem ser piegas, ao deixar emergir fatos que trarão conflitos sentimentais que envolvem pais conflitados. Os personagens terão que lidar com adversidades repentinas, pois precisam tocar suas vidas e resolverem as encrencas rotineiras, como na bela cena da idosa tentando aproximar o filho da ex-mulher que se tornou fria e pragmática em decorrência do cansaço pelo ex-companheiro que não amadureceu e parece sempre estar no mundo da fantasia, como um adolescente eterno, traz no vício do jogo um estigma de seu pai, um inveterado apostador que também teve problemas com a esposa que escondia o dinheiro dentro de casa para não gastar tudo. A reaproximação é uma tentativa válida almejada, tanto do garoto como da avó. Já o bilhete da loteria que seria uma possibilidade de compra de uma confortável casa para todos morarem juntos, mas com os ventos e a chuva incessante acaba se perdendo na noite, como um prenúncio alegórico da infelicidade que se desenhava como um sonho de uma noite nebulosa. A cobrança da pensão no epílogo, com as palavras duras anteriores de que Ryota brinca de ser pai uma vez por mês, soa como uma balde de água fria.

O drama é uma síntese com delicadeza de amores desfeitos e tentativas frustradas de reconciliação. O cineasta aponta para o sofrimento do filho, o que mais sofre, ao ser usado como um joguete nas mãos dos pais. O diretor é incisivo e pessimista no desfecho da trama, mas retrata o jogo de interesses dos adultos como uma insustentável e cruel realidade a ser trilhada. A leveza é a forma adotada na narrativa linear no ponto de equilíbrio, mas o filme é sombrio e a tristeza se mescla com alguns momentos de felicidade para os componentes do núcleo familiar em extinção, embora todos os ajustes nas buscas da reconstrução que se esvaem. Um magnífico filme sobre as sutilezas do amor rompido e dos laços de ternura com seus vínculos esboroados, mas que tem na doçura da avó com sua culpa e confissão para a ex-nora uma cena comovente de desabafo, neste drama familiar bem estruturado num roteiro enxuto, com uma trilha sonora equilibrada, sendo ambientado em belas paisagens bucólicas de uma fotografia fascinante. Emociona sem ser intenso pela complexidade da relação entre as partes envolvidas. Uma reflexão madura sobre as dúvidas, anseios, o amor fraterno com sua força inerente, para alicerçar as ruínas sendo reconstruídas com exemplar magnetismo de beleza lírica nas relações de afetividade e suas profundas sequelas deixadas silenciosamente.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Cinema Novo


Resgate e Tributo

Vencedor da premiação paralela Olho de Ouro no Festival de Cannes deste ano, o instigante documentário Cinema Novo conta a história do mais relevante movimento cinematográfico brasileiro, ocorrido nos anos de 1960, que projetou nosso país no universo mundial. São 90 minutos de pura magia e beleza apresentado pelo diretor Eryk Rocha, 38 anos, filho de Glauber Rocha, um dos idealizadores e divulgadores exponenciais de uma era artística que já merecia o resgate, tendo em vista que foi importante para nossa autoestima, bem como para a evolução de nosso cinema, com imagens poderosas de clássicos de arquivos e trechos de 130 filmes, como Rio, 40 Graus (1955), Vidas Secas (1963), Terra em Transe (1968), Macunaíma (1969), entre tantas realizações agora homenageadas para não cair no esquecimento e reativar a memória, através da rigorosa montagem poética de Renato Vallone.

Diretor de Rocha que Voa (2002), Transeunte (2010) e Campo de Jogo (2015), Eryk Rocha recupera entrevistas de cineastas que estiveram envolvidos e consagraram o movimento homônimo, tais como: Gustavo Dahl, Mário Carneiro e Paulo Cezar Saraceni, apenas pelas suas vozes, pois ao ser montado o filme, o realizador optou em não colocar imagens atuais deles por já serem falecidos, exceto as antigas. É feito um estudo profundo e vai até os primórdios da história cinematográfica brasileira para evoluir até o Cinema Novo, traz para subsidiar O Limite (1931), de Mário Peixoto. Faz uma saudação especial ao pioneiro Humberto Mauro, falecido em 1983, para chegar até os expoentes Ruy Guerra, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, David Neves, Walter Lima Jr., Orlando Senna, Geraldo Sarno, Alex Viany, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, Zelito Viana e o crítico  Paulo Emílio Salles Gomes, até chegar a Luiz Carlos Barreto, o maior produtor em atividade, mas sem esquecer e ter um carinho todo especial com o pai, Glauber Rocha, e sua célebre frase: “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, numa defesa intransigente da utilização dos meios de produção artística a serviço da transformação social.

Cinema Novo dialoga com as novas gerações,mas sem esquecer da velha guarda que acompanhou e prestigiou aquela fome por inovar o cinema brasileiro. É um fascinante tributo de amor e paixão pelas cores verdes amarelas transformadas em anseios e dificuldades, às vezes regionalizadas, em outras universais como os temas reivindicatórios de uma nação que foi sufocada pelo Ato Institucional nº. 5, o abominável AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, pelo duro golpe da ditadura militar. Um digno retrato dos protestos nas ruas e os jogos de futebol com Garrincha como símbolo. Fala das religiões, profanando ou não, e suas implicações alienantes no contexto nacional. Um movimento que tinha, e por isto foi marcante, um grau de preocupação e engajamento com as dificuldades socioeconômicas e políticas. Tem em Antônio das Mortes com seu trágico destino de matador de cangaceiro em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), de Glauber Rocha, vencedor do Festival de Veneza, alegórico e sintetizador das realizações anteriores, como denúncia do imperialismo multinacional e das elites na manutenção do subdesenvolvimento e da pobreza brasileira.

O documentário retrata com precisão e detalhes cronológicos a evolução do cinema na essência da estética com planos, contraplanos, closes e planos sequências longos, bem como é além de tudo, uma declaração pública da construção de um legado inesquecível pelo ponto de vista político com imagens do passado até o presente, para aproximar e desvendar enigmas para o espectador mais atento e preocupado com a cultura de nosso país, tão vilipendiada e massacrada por alguns governos paraquedistas. Além de uma análise importante, prólogo e epílogo têm a mesma sequência do lendário Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), há uma similitude com o movimento musical no documentário Tropicália (2012), que revelou como lideranças Caetano Veloso e Gilberto Gil, a partir de 1967, do diretor Marcelo Machado, que também resgata uma fase cultural quase esquecida na história do Brasil, onde fervilhavam os festivais de músicas populares, numa época difícil na vida dos brasileiros que viviam amordaçados pelo regime ditatorial implantado, e que tinha a simpatia de Glauber Rocha ao Tropicalismo. Mostrava o realismo e a nitidez de tempos antagônicos culturalmente, com a imposição de uma censura não só dos militares como dos próprios artistas de outras matizes, que não entendiam o que estava acontecendo, mas que deixou raízes e veio para ficar, abrir cabeças fechadas e vislumbrar novos horizontes.

O Neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa estão no contexto de Cinema Novo e as influências da Europa para marcar os fragmentos que constituem o todo de nossa cinematografia brasileira. São os subsídios buscados no Exterior que alavancaram para uma evolução e um certo amadurecimento de nossos cineastas, tanto na estética como no conteúdo enriquecedor que teve como espírito objetivo para se chegar até a integração por uma geração que inventou uma nova forma de filmar e fazer cinema autoral. Uma aula de conhecimentos retirados da história para ser sorvido como uma boa reflexão de riqueza artística que está sempre se modificando para dar luzes de estímulos e recompensas. Eis um registro importante advindo de um olhar pela observação atenta de um diretor promissor neste belo filme-ensaio de coerente narrativa de uma coletânea construída com consistência e amor com marca própria.