terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Eu, Daniel Blake


Discriminação Social

Um retrato crítico e fiel sobre o controverso sistema previdenciário da Grã-Bretanha é estampado como poderosa denúncia de impasse burocrático no fabuloso drama social Eu, Daniel Blake, ganhador da Palmo de Ouro de 2016. Defensor ferrenho e inarredável das causas sociais em que estão envolvidas quase sempre as classes operárias oprimidas, o octogenário diretor inglês Ken Loach é um humanista por natureza, e por este seu último longa ganhou pela segunda vez o troféu. Anteriormente, havia arrebatado em 2006 com Ventos da Liberdade, em Cannes. O título é mais uma parceria com o roteirista Paul Laverty, com quem realizara A Canção de Carla (1996), O Meu Nome é Joe (1998), Ventos da Liberdade (2006), À Procura de Eric (2009), entre tantas realizações da bem-sucedida e inseparável dupla.

A narrativa em tom naturalista pela espontaneidade de puro realismo dramático causa comoção, indignação e constrangimento no espectador atento às coisas do cotidiano na triste saga do operário enfermo, diante do grotesco evento proporcionado pelos burocratas de uma repartição pública inglesa, mas bem que poderia ser no Brasil que atualmente passa por uma reforma com mudanças radicais na Previdência, ou em qualquer outro lugar do Ocidente, pela temática universal abordada com dignidade e sensibilidade. A trama retrata o personagem-título (Dave Johns- numa atuação estupenda) que após sofrer um ataque cardíaco e ser vetado pelos médicos a retornar ao trabalho, tenta receber o Auxílio Financeiro concedido pelo governo aos inaptos por moléstia grave. Já no prólogo do filme, a imagem revelada é uma tela escura, onde apenas se ouve um questionário enfadonho de uma funcionária da saúde que conclui que o protagonista não faz jus ao benefício pretendido.

Daniel é um homem doente, de 59 anos, viúvo, sem filhos, exímio carpinteiro e um artista da madeira. Mas esbarra na burocracia previdenciária estatal, que o obriga a preencher um formulário digital solicitando desta feita um Seguro-Desemprego. Passa por uma reciclagem num curso para encaminhar um currículo e distribuir nas empresas e pequenos comércios locais. Por ser um analfabeto em informática, o fato ganha contornos ainda maiores, pois terá que pedir ajuda para outras pessoas mais familiarizadas com o computador. Depois de tudo isto, tem que provar que entregou os ditos currículos, o que não consegue fazer. Provisoriamente recebe cestas básicas do Serviço Social, mas terá que fazer outros requerimentos para receber então um Auxílio Emergencial. Cada vez mais as coisas se complicam, explode de raiva, picha o prédio do governo, reivindica seus direitos com o apoio de alguns populares, mas acaba preso e solto por um termo circunstanciado.

Habilmente o realizador conduz o drama com contornos de inverossimilhança pelas circunstâncias apresentadas. O problema não é resolvido e a situação é colocada como um libelo ao poder econômico pela discriminação social de quem depende da assistência no momento em que mais precisa, mesmo cumprindo seus deveres de cidadão honesto e em dia com os impostos. Num clímax de tensão que vai embrulhando o estômago, a história do desvalido cresce e mergulha no desespero da perda iminente da dignidade ao se encaminhar para um desfecho inesperado. Numa de suas várias idas ao departamento governamental, o nosso anti-herói conhece Katie (Hayley Squires), uma jovem mãe solteira de dois filhos menores, abandonada pelo companheiro, que se mudou recentemente de Londres para a fria cidade industrial de Newcastle, norte da Inglaterra, que também não possui condições financeiras para se manter. Daniel é uma espécie de pai e protetor para as crianças, diante da omissão do Estado. Criam um vínculo forte de amizade, logo após o benefício da moça ser negado por ela ter chegado atrasada na entrevista. Os dois são humilhados e enxotados pelos truculentos seguranças. A polícia é um instrumento repressor do sistema como uma ameaça constante para quem protesta de forma veemente. Tanto para a mulher que terá que optar por ganhos indignos como alternativa de sobrevivência, como para o homem derrotado, símbolos do descaso. Entre eles há o vizinho, um rapaz negro que vende produtos pirateados da China, outro marginalizado da sociedade de consumo, que busca na clandestinidade maneiras de tocar a vida como pode.

O veterano Loach cria com extrema magia cinematográfica um doloroso painel kafkiano, que lembra a intrincada máquina burocrática ambientada no best-seller O Processo (1925), de Franz Kafka. Aproxima-se com grande similitude temática do notável drama Um Episódio na Vida de Um Catador de Ferro-Velho (2013), do diretor bósnio Danis Tanovic, em que o marido recorre à Assistência Social para resolver o problema de saúde da esposa, mas só há uma alternativa: ou arruma o dinheiro ou morre sem dó e nem piedade. Tanto na Bósnia-Hersegovina como na Grã-Bretanha, a discriminação social está presente e não faz concessão aos excluídos.

Eu Daniel, Blake tem contundência pelas cenas de uma realidade amarga das vicissitudes advindas da causa pela sobrevivência dos contribuintes. Despojado de alegorias e metáforas, tem uma construção rica de elementos dentro de um roteiro enxuto e direto ao ponto, sem grandes armadilhas ou situações que poderiam levar para uma trama apelativa. Um filme intenso que enobrece o cinema, através de um enredo emocionante sobre os dissabores dos marginalizados, em que personagens são descartáveis como objetos quando não servem mais ao dogmático capitalismo selvagem que leva para o desequilíbrio dos menos favorecidos na pirâmide social, ferindo o princípio da igualdade ao fazer restrições. O conflito é fruto de um sistema previdenciário instável e pré-falimentar que vira as costas para os necessitados quando estes mais precisam. Lança um olhar reflexivo com tintas fortes e marcantes sobre os socialmente desvalidos de maneira eloquente pela falta de dignidade e ética sob o prisma da hipocrisia repleta de nefastas manchas por condutas reprováveis e desumanas.

2 comentários:

Marcelo Tchelos disse...

Muito legal, vou ver se vejo, valeu o toque!!!!!!!!

Roni Figueiró disse...

Não perca!Um filme acima da média e ganhador do Palma de Ouro.