Discriminação Social
Um retrato crítico e fiel sobre o controverso sistema
previdenciário da Grã-Bretanha é estampado como poderosa denúncia de impasse burocrático
no fabuloso drama social Eu, Daniel Blake,
ganhador da Palmo de Ouro de 2016. Defensor ferrenho e inarredável das causas
sociais em que estão envolvidas quase sempre as classes operárias oprimidas, o octogenário
diretor inglês Ken Loach é um humanista por natureza, e por este seu último
longa ganhou pela segunda vez o troféu. Anteriormente, havia arrebatado em 2006
com Ventos da Liberdade, em Cannes. O título é mais
uma parceria com o roteirista Paul Laverty, com quem realizara A Canção de Carla (1996), O Meu Nome é Joe (1998), Ventos da Liberdade (2006), À Procura de Eric (2009), entre tantas
realizações da bem-sucedida e inseparável dupla.
A narrativa em tom naturalista pela espontaneidade de puro
realismo dramático causa comoção, indignação e constrangimento no espectador
atento às coisas do cotidiano na triste saga do operário enfermo, diante do
grotesco evento proporcionado pelos burocratas de uma repartição pública inglesa,
mas bem que poderia ser no Brasil que atualmente passa por uma reforma com
mudanças radicais na Previdência, ou em qualquer outro lugar do Ocidente, pela
temática universal abordada com dignidade e sensibilidade. A trama retrata o
personagem-título (Dave Johns- numa atuação estupenda) que após
sofrer um ataque cardíaco e ser vetado pelos médicos a retornar ao trabalho, tenta
receber o Auxílio Financeiro concedido pelo governo aos inaptos por moléstia
grave. Já no prólogo do filme, a imagem revelada é uma tela escura, onde apenas
se ouve um questionário enfadonho de uma funcionária da saúde que conclui que o
protagonista não faz jus ao benefício pretendido.
Daniel é um homem doente, de 59 anos, viúvo, sem filhos, exímio
carpinteiro e um artista da madeira. Mas esbarra na burocracia previdenciária estatal,
que o obriga a preencher um formulário digital solicitando desta feita um
Seguro-Desemprego. Passa por uma reciclagem num curso para encaminhar um
currículo e distribuir nas empresas e pequenos comércios locais. Por
ser um analfabeto em informática, o fato ganha contornos ainda maiores, pois
terá que pedir ajuda para outras pessoas mais familiarizadas com o computador.
Depois de tudo isto, tem que provar que entregou os ditos currículos, o que não
consegue fazer. Provisoriamente recebe cestas básicas do Serviço Social, mas
terá que fazer outros requerimentos para receber então um Auxílio Emergencial.
Cada vez mais as coisas se complicam, explode de raiva, picha o prédio do
governo, reivindica seus direitos com o apoio de alguns populares, mas acaba
preso e solto por um termo circunstanciado.
Habilmente o realizador conduz o drama com contornos de
inverossimilhança pelas circunstâncias apresentadas. O problema não é resolvido
e a situação é colocada como um libelo ao poder econômico pela discriminação
social de quem depende da assistência no momento em que mais precisa, mesmo
cumprindo seus deveres de cidadão honesto e em dia com os impostos. Num clímax
de tensão que vai embrulhando o estômago, a história do desvalido cresce e
mergulha no desespero da perda iminente da dignidade ao se encaminhar para um
desfecho inesperado. Numa de suas várias idas ao departamento governamental, o nosso
anti-herói conhece Katie (Hayley Squires), uma jovem mãe solteira de dois
filhos menores, abandonada pelo companheiro, que se mudou recentemente de
Londres para a fria cidade industrial de Newcastle, norte da Inglaterra, que também
não possui condições financeiras para se manter. Daniel é uma espécie de pai e
protetor para as crianças, diante da omissão do Estado. Criam um vínculo forte
de amizade, logo após o benefício da moça ser negado por ela ter chegado atrasada
na entrevista. Os dois são humilhados e enxotados pelos truculentos seguranças.
A polícia é um instrumento repressor do sistema como uma ameaça constante para
quem protesta de forma veemente. Tanto para a mulher que terá que optar por
ganhos indignos como alternativa de sobrevivência, como para o homem derrotado,
símbolos do descaso. Entre eles há o vizinho, um rapaz negro que vende produtos
pirateados da China, outro marginalizado da sociedade de consumo, que busca na
clandestinidade maneiras de tocar a vida como pode.
O veterano Loach cria com extrema magia cinematográfica um
doloroso painel kafkiano, que lembra a intrincada máquina burocrática ambientada
no best-seller O Processo (1925), de
Franz Kafka. Aproxima-se com grande similitude temática do notável drama Um Episódio na Vida de Um Catador de
Ferro-Velho (2013), do diretor bósnio Danis Tanovic, em que o marido
recorre à Assistência Social para resolver o problema de saúde da esposa, mas
só há uma alternativa: ou arruma o dinheiro ou morre sem dó e nem piedade. Tanto
na Bósnia-Hersegovina como na Grã-Bretanha, a discriminação social está
presente e não faz concessão aos excluídos.
Eu Daniel, Blake
tem contundência pelas cenas de uma realidade amarga das vicissitudes advindas
da causa pela sobrevivência dos contribuintes. Despojado de alegorias e
metáforas, tem uma construção rica de elementos dentro de um roteiro enxuto e
direto ao ponto, sem grandes armadilhas ou situações que poderiam levar para
uma trama apelativa. Um filme intenso que enobrece o cinema, através de um enredo
emocionante sobre os dissabores dos marginalizados, em que personagens são
descartáveis como objetos quando não servem mais ao dogmático capitalismo
selvagem que leva para o desequilíbrio dos menos favorecidos na pirâmide social,
ferindo o princípio da igualdade ao fazer restrições. O conflito é fruto de um
sistema previdenciário instável e pré-falimentar que vira as costas para os necessitados
quando estes mais precisam. Lança um olhar reflexivo com tintas fortes e
marcantes sobre os socialmente desvalidos de maneira eloquente pela falta de
dignidade e ética sob o prisma da hipocrisia repleta de nefastas manchas por
condutas reprováveis e desumanas.
2 comentários:
Muito legal, vou ver se vejo, valeu o toque!!!!!!!!
Não perca!Um filme acima da média e ganhador do Palma de Ouro.
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