segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

A Criada


Relações Ambíguas

Vem do consagrado cineasta sul-coreano Park Chan-wook o bonito drama erótico de época A Criada, exibido pela primeira vez no Festival de Cannes de 2016. O realizador e também autor do roteiro adaptou de forma livre do livro Falsas Aparências, que serviu de inspiração para uma minissérie na BBC de Londres, em 2005, em uma locação típica da Inglaterra na era vitoriana. No longa, a ambientação é na Coreia do Sul, nos duros anos de 1930, durante a ocupação japonesa no país vizinho, quando a jovem vigarista Sookee (Kim Tae-ri) é contratada pelo falso conde Fujiwara (Ha Jung-woo) para trabalhar como serviçal na casa de uma herdeira nipônica, Lady Hideko (Kim Min-hee), que leva uma vida pacata e sem graça ao lado do autoritário tio Kouzuki (Cho Jing-woong). Há um plano macabro para seduzir a ricaça ingênua, roubar sua fortuna e trancafiá-la em um sanatório, que serve como mote para a trama, porém há motivações guardadas em segredo que aos poucos se revelam.

O habilidoso diretor opta por um filme em três atos, em que é contada a mesma história de forma diferente, porém somente no epílogo se saberá qual a verdadeira identidade do enredo. A narrativa é complexa e não se afasta do rigor formal peculiar das obras anteriores de Chan-wook, quase sempre em cumplicidade com a plateia, tais como: Mr. Vingança (2002), Oldboy (2003), Lady Vingança (2005) e Sede de Sangue (2009). Desta feita, cria-se um clímax de suspense e o espectador fica na dúvida para entender o que está acontecendo realmente. Os personagens, como se fossem colocados ardilosamente num tabuleiro de xadrez, estão sempre aprontando e enganando propositalmente a atenta plateia como numa mágica de engenharia cinematográfica. Às vezes, cansa pelas repetições e diálogos enfadonhos, mas logo dá um salto no roteiro eclético e segue a trajetória transitando entre o Japão e a Coreia.

O drama é bem formatado esteticamente, com uma fotografia deslumbrante numa construção invejável. Mas falta alma para a realização, que por vezes desliza em situações rasas, porém é criado um imaginário bem intenso pelo movimento da câmera para conseguir resultados apreciáveis ao explorar o estilo gótico, numa combinação singular de adereços com a instigante trilha sonora. Há uma mescla de erotismo das amantes fazendo sexo explícito com o iminente perigo em várias cenas. Tudo é verdadeiro num ato como poderá ser desmanchado no outro. O prazer sexual na essência é apresentado como aparência refinada, mas emerge a dúvida, a raiva, o ódio e a vingança. Há uma mistura em cenas tórridas eróticas filmadas como se fosse um poema inesgotável de sutilezas e sensibilidade à flor da pele. Eis uma aventura empírica num jogo perigoso para um mergulho numa imersão de luxúria proposta com algum fôlego.

O filme é uma relação conturbada e ambígua entre os personagens no seu cotidiano de uma bem arquitetada tramoia para roubar joias, roupas e uma fortuna imensurável. Mas como todo crime que nunca é perfeito, haverá o enfeitiçamento da empregada transgressora pela patroa bela e sedutora. Num primeiro momento pensa em protegê-la do conde de araque, fica penalizada com a triste saga da jovem herdeira que é obrigada a ler livros pornográficos falsificados pelo tio devasso para homens sedentos de lascividade, devidamente trajada como uma dama da sociedade. O plano começa a se esboroar com a aproximação e o vínculo estreito entre as mulheres envolvidas emocionalmente, acirrando os ânimos ao extremo com o cenário romântico. Soa como uma libertação para ambas, um corte das amarras do preconceito enraizado numa sociedade aristocrática com suas futilidades inerentes daqueles tempos. A felicidade aparente de sorrisos e olhares reveladores está inserida num mundo imaginário de desilusões de vidas fracassadas por um conceito residual estereotipado no gesto autêntico da escolha ousada. Basicamente, é a difícil realidade de dois seres humanos que optaram por uma relação proibida na sociedade conservadora. A solução encontrada para dar guarida e prosseguimento ao idílio é a camuflagem dos encontros.

Um parâmetro da temática de relacionamento homossexual feminino é o drama familiar Carol (2015), de Todd Haynes, embora pegue leve nas cenas de sexo, flutua pelos caminhos da sugestão e as carícias sutis das preliminares; outro seria o longa Flores Raras (2013), de Bruno Barreto, numa abordagem sobre uma relação intrincada no Rio de Janeiro, em 1956. Não tem o fervor do polêmico drama francês Azul é a Cor Mais Quente (2013), de Abdellatif Kechiche, que impactou com uma cena tórrida de sexo num plano-sequência de intensidade e realismo em seis minutos, que causou furor e escandalizou críticos e o púbico mais conservador em Cannes. Já o realizador sul-coreano lança um olhar feminista sobre A Criada, embora esteja mais contido no banho de sangue, deixa para o desfecho o violento acerto de contas com mãos e dedos decepados. Seu longa carrega no erotismo, no qual se sai muito bem e surpreende pela ousadia. Não se trata de uma obra sobre duas mulheres que transam o tempo todo, porque não é um filme panfletário, ainda que a voltagem seja alta. Há um bom mecanismo psicológico das personagens que é apresentado com imparcialidade as fragilidades reveladas. Não se acena com facilidades demagógicas para resolver problemas complexos, mas ainda que um tanto repetitivo, é um interessante filme de pequenos detalhes pela lente da ternura.

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