quarta-feira, 23 de outubro de 2019

O Enigma da Rosa



Vingança Perversa

O diretor, roteirista, produtor, fotógrafo e montador espanhol Josué Ramos faz sua estreia em longa-metragem com este polêmico O Enigma da Rosa. O cineasta rodou sua obra em dez dias com um custo ínfimo de quinze mil euros investido com recursos próprios, após desistir de esperar por ajuda financeira estatal e dos produtores que o abandonaram pouco antes das filmagens. A locação é modesta, foi realizada dentro de uma casa de dois andares, com um elenco aceitável de seis bons atores e atrizes, numa trama de um roteiro enxuto e surpreendente em algumas situações inesperadas. O filme transborda a linguagem do cinema e incursiona na teatral, tendo em vista o modesto espaço de locação para desenvolver uma história asfixiante. Embora não consiga atingir o clímax proposto da claustrofobia, diante das portas e janelas fechadas literalmente, na incessante busca para elucidar o rapto de uma criança que coloca em xeque uma família classe média pequeno-burguesa e sua sordidez escondida, irá revelar alguns traços de pouca humanidade, tais como a ganância pelo dinheiro, o moralismo falso entrelaçado com preconceito e a ocultação de uma violência latente.

O enredo é simples, mas com o desenrolar e a fluidez da macabra história, surgem revelações de segredos escabrosos guardados pelos membros daquele microcosmo familiar. A compra de uma arma no mercado negro no prólogo irá apontar o adquirente e a astúcia dele para o desfecho improvável. Tudo começa com uma cobrança severa da mãe, a advogada ambiciosa Julia (Elisabet Gelabert) com sua filha, Sara Castro (Patricia Olmedo), de 10 anos, ao tomar conhecimento das notas baixas no boletim da menina, que posteriormente não retorna da escola para sua residência, pois o pai, Oliver (Pedro Casablanc), esqueceu de buscá-la. Atônitos pelo fato incomum do misterioso desaparecimento sem deixar rastros, o casal e o filho mais velho, Alex (Zack Gómez), procuram a polícia para comunicar o ocorrido. Eles são aconselhados pelo inspetor para aguardar o contato da garota, o que só irá aumentar a tensão, o medo e a angústia. Após alguns dias de terror, desespero e dúvidas, em uma manhã, uma carta é enviada pelo criminoso (Ramiro Blas) que afirma ter sequestrado Sara e deseja falar com eles pessoalmente, sem que haja a interferência policial, sob pena de matá-la. Os diálogos no encontro programado irão construir a emblemática artimanha, por trazer inesperadas reviravoltas no roteiro, sem que haja o recurso de enfadonhos flashbacks, muito recorrentes em produções do gênero do suspense.

Distante de demonstrar sensibilidade, com falta total de sutilezas, e a ausência de um vigor estético inovador, Ramos cria um duro drama psicológico que flutua para o suspense até atingir o horror da perversa vingança aos membros daquela família de poucos valores éticos, embora não seja aceitável tamanha agressão física e psicológica com dentes extraídos e mutilações do corpo em realismo puro de forma exacerbada pelas cenas duradouras e explícitas, em algumas delas. O diretor segue os fundamentos de Maquiavel, em que os fins justificam os meios, diante das revelações das vítimas há uma malvadeza abissal sem concessões. Há a inversão da família vitimizada para acusada, na troca de papéis, através de um formato colérico e sem delicadezas. As transgressões não são sugeridas e vão em sentido contrário daquele espectador lúcido e de bom senso, contrasta e agride a construção de um panorama que surge aos poucos com a presença da verdade.

Ao invocar e se agarrar como uma tábua de salvação na Lei de Talião, o realizador extrapola a proposta cinematográfica da sensatez, para fazer valer o princípio da justiça na expressão "olho por olho, dente por dente" com uma retaliação cruel, dura e seca, na qual se exige que o agressor seja punido em igual medida do sofrimento que ele causou, um método básico dos tempos tribais, num jogo da verdade para elucidar fatos com tortura psicológica e um compulsivo sadismo a mancheias. É a desforra inimaginável em tempos ainda civilizados, embora haja seguidores e defensores destes métodos da barbárie já ultrapassados num momento quase que universal de intransigência e repúdio aos direitos humanos. Fatih Akin com O Bar Luva Dourada (2019) teve méritos e obteve mais empatia e vigor com uma narrativa violenta de esquartejamentos, sobre o cotidiano simples de pessoas sem destinos e ignoradas por serem excluídas da sociedade de consumo, num drama contundente para se aprofundar nas mazelas decorrentes das feridas abertas de uma sociedade ainda traumatizada pelos efeitos do nazismo. Michael Haneke com Violência Gratuita (1997) foi mais elegante no exercício incômodo e angustiante ao blefar com a cumplicidade da plateia em seu longa intenso.

O Enigma da Rosa não chega a envolver e nem perturbar o espectador no aspecto da temática. Excetuando algumas cenas de bom suspense, cria um clímax desproporcional, quase inverossímil, para a proposta de um crime hediondo, em que a pedofilia deveria ser mais discutida para uma boa reflexão, mas passa longe, bem ao contrário do notável Graças a Deus (2019), de François Ozon, que faz uma abordagem de forma imparcial. Ramos perde a oportunidade de lançar luzes para iluminar um tema tão abjeto como o doentio abuso sexual de crianças, bem como o subtema da hipocrisia nos segredos confessados que conduzem para uma casta ainda preconceituosa da homofobia, além das armações para levar vantagens financeiras sem escrúpulos e por artifícios condenáveis. Vítimas e criminosos invertem os papéis abruptamente, mas não convencem pela forma satânica do mecanismo truculento, embora as revelações bombásticas sejam o trampolim para um epílogo inusitado. Um filme de moralismo candente até atingir o ápice do clichê com um viés para sustentar conceitos autocráticos sobre os valores da justiça. Sobram tensões de intensidade com alta dosagem de exageros que poderão causar náuseas em pessoas de estômagos sensíveis. Prevalece a irracionalidade bestial neste pretenso painel sobre a vingança justificada, que jamais convence. As fragilidades humanas pela perda da dignidade e da piedade como elementos que afloram pelos métodos violentos dos impulsos doentios sem freios, também ficam distantes de uma análise aprofundada.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Legalidade



Insurreição pela Democracia

O diretor, roteirista e produtor Zeca Brito realiza um grande resgate histórico nacional com o drama sociopolítico Legalidade, de uma época ainda não explorada pelos cineastas e teatrólogos. Através de uma narrativa recheada de ingredientes emocionais, a obra conta a história do movimento ocorrido em 1961, que também empresta o nome ao título do longa-metragem. O governador da época no Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola, liderou uma rebelião popular em Porto Alegre que se proliferou por todo o interior do Estado, com a finalidade de assegurar a posse de seu cunhado, o então vice-presidente João Goulart, carinhosamente conhecido como Jango, após a renúncia de Jânio Quadros. Esta é uma obra que vem suprir uma lacuna no cinema brasileiro em relação ao gênero das epopeias políticas, e desconhecida por grande parte da população, que iria culminar com o golpe militar três anos depois. Com sensibilidade e uma mescla de fatos reais e outros de ficção, o realizador cria um ambiente emblemático que dá indícios das mazelas e das fragilidades democráticas no país, bem exemplificada no cenário político e social que antecedia e já indicava os destinos da nação. Há uma verdadeira onda de caça aos comunistas vistos por todos os lados, como no episódio da viagem de Jango ao exterior e a proibição de sua posse pelo alto comando militar: os ministros Odílio Denys, da Guerra; Gabriel Grün Moss, da Aeronáutica; e Sílvio Heck, da Marinha; com o suposto apoio logístico dos EUA.

Um típico filme revelador sobre os momentos que antecederam o golpe de Estado ocorrido em 1964. Brito é um jovem promissor cineasta gaúcho, de 33 anos, que dirigiu a comédia dramática Em 97 Era Assim (2017), os documentários Glauco do Brasil (2015) e A Vida Extra-ordinária de Tarso de Castro (2017). Divide o roteiro com Leo Garcia em um enredo urdido, no qual desfila seus personagens na tela, dando estrutura e cumplicidade para alguns, desprezo e envolvimento para outros. O cenário é o Brasil de 1961, quando Jânio Quadros renunciou seu mandato presidencial em 25 de agosto daquele ano e o vice-presidente João Goulart, irmão de Neusa que era casada com Brizola, seria o sucessor natural ao cargo como previa a Constituição Federal. Mas não foi serena a transição, tendo em vista que setores conservadores da sociedade, liderados por militares da ala radical, avessos à conduta simpática do vice pela reforma agrária e sua viagem em missão oficial ao país comunista da China, obstacularizam sua posse temerosos de suas posições de esquerda. Jango tinha sido o ministro do Trabalho no governo de Getúlio Vargas, quando implantou as reformas trabalhistas com substanciais direitos aos trabalhadores. Surge então o movimento da Legalidade para garantir o estado de direito e o cumprimento da norma constitucional da posse comandado por Brizola (Leonardo Machado- de ótima interpretação em seu último papel, pois viria a falecer de câncer logo após as filmagens), que teria mais tarde o apoio e a adesão institucional do comandante do Terceiro Exército, general José Machado Lopes, com sede em Porto Alegre.

O diretor retrata com lucidez e dá luzes ao impasse declarado com a iminência do bombardeio ao Palácio Piratini do governo, que viria confiscar os transmissores da Rádio Guaíba e instalar nos porões do paço para se comunicar com o povo nas ruas e em suas residências. Eram distribuídos revólveres, pistolas e espingardas à população para realizar o motim em nome da defesa do preceito legal constitucional embalados pela marchinha da Legalidade cantada pelos adeptos em todos os cantos e rincões em que chegavam os discursos inflamados do líder rebelde gaúcho. É comovente a sequência no trem em que os passageiros assoviam como forma de resistência para tentar a aquiescência dos soldados presentes, numa inspirada referência ao hino da Marselhesa, do clássico Casablanca (1942), de Michael Curtiz, diante das semelhanças com a situação política efervescente numa cidade inflamada pelos discursos da convincente retórica. Foram 13 dias de pura tensão e a iminência de uma guerra civil estendidos até 7 de setembro, quando houve o acordo salomônico pelo parlamentarismo, com Jango empossado de direito e o deputado federal Tancredo Neves assumindo como primeiro-ministro para governar de fato. Brizola era contrário ao espúrio acordo, pois queria que o levante marchasse até Brasília, mesmo com o provável derramamento de sangue, acusava Jango de ser a rainha da Inglaterra: reina, mas não governa.

Em meio à turbulência política que frustrara o golpe, o roteiro narra os fatos verídicos num processo de pesquisa em livros, testemunhas oculares do ocorrido como políticos, historiadores e jornalistas. Porém insere uma subtrama com situações discutíveis ficcionais irrelevantes, através de um ardiloso triângulo amoroso formado por Cecília (Cleo Pires), uma estranha jornalista brasileira de pouca ética, contratada como correspondente do jornal norte-americano The Washington Post, mas também exercia uma missão de espionagem para os EUA. Ela namora os irmãos Tonho (José Henrique Ligabue), um colega repórter-fotográfico, boêmio, de quem se aproveita para se aproximar de Brizola, e o outro irmão Luiz Carlos (Fernando Alves Pinto), um antropólogo simpatizante de Che Guevara que faz um trabalho com os índios nas missões de São Miguel. Deste relacionamento triangular, surge a personagem Blanca (Letícia Sabatella), como sendo a filha de Cecília, faz algumas investigações nos arquivos da ditadura para descobrir o paradeiro da mãe e a identidade do verdadeiro pai, num salto do tempo de mais de 40 anos. As revelações afloram e o diretor faz uma provocativa comparação conceitual política entre o movimento legalista com o golpe militar instituído posteriormente, como fatos históricos ocorridos nos conturbados períodos de instabilidade institucional dos anos de 1960.

Com um orçamento pequeno de três milhões de reais, há uma apurada ambientação cênica, com cuidados especiais no figurino da época e na direção de arte diante do irretocável apuro técnico, especialmente na recriação da década de 60. Dá consistência e ritmo com imagens antigas de arquivos sendo misturadas com filmagens atuais que irão ajudar a mergulhar no período retratado. Um filme que baliza um fato épico pouco difundido aos brasileiros em geral. Legalidade é um marco no cinema pela sua relevância histórica, embora não seja definitivo, é obrigatório tanto para quem se interessa por História como pela sétima arte. Embora o roteiro resvale na insistência de um artificial romance descartável, não invalida o drama que reflete a incontestável força de uma liderança política vanguardista que amealhou a anuência da população e do dissidente comandante do III Exército. Em um momento oportuno pela manutenção democrática tão torpedeada pela irracionalidade de métodos conservadores e retrógrados, surgem as lembranças de um passado ainda bem recente de um painel triste e vergonhoso de uma época a ser refletida. Apesar de alguns tropeços no desenrolar da trama, fica a inesquecível resistência como legado democrático, que ainda faz a maioria dos espectadores se emocionar, cantar, deixar escorrer algumas lágrimas e aplaudir efusivamente quando aparecem os créditos finais na tela.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Bacurau



A Resistência

Depois do cultuado O Som ao Redor (2013), que rendeu o prêmio da Crítica no Festival de Roterdã, na Holanda; o Kikito em Gramado de melhor direção; e o título de Melhor Filme no Festival do Rio, Kleber Mendonça Filho causou polêmica com Aquarius (2016) pelo protesto da equipe na França, ao participar da seleção oficial do Festival de Cannes, o longa virou bandeira política contra o governo interino, à época, cinco dias após o processo de impeachment ser instaurado. O primeiro longa do diretor refletia a preocupação do cinema autoral com a estratificação social, através da captação da câmera que percorre uma rua famosa da zona Sul de Recife, mostrando belos moradias bem protegidas. O retrato do dia a dia de uma dona de casa cansada e com dois filhos, representante típica da classe social menos favorecida, sendo obrigada a ouvir o latido estridente do cachorro da vizinha. Já na segunda realização, a temática do cotidiano é abordada pela especulação imobiliária desenfreada que só visa lucros, pouco se importando com a ética e os desejos de escolha e opção do cidadão. Trazia um realismo da exacerbação pela intransigência de métodos absurdos pela coação de uma empreiteira para que uma moradora lhe vendesse seu apartamento para construir um novo prédio no espaço.

Ganhador do prêmio do Júri no Festival de Cannes deste ano, Bacurau (nome de um pássaro noturno que inspirou o apelido do último ônibus da madrugada em Recife), é a nova realização de Mendonça Filho, que divide a direção com Juliano Dornelles. Com arrojo é criado um marcante faroeste contemporâneo que transita para o suspense, passa pela ficção científica, flerta com o horror e chega até o drama das famílias acuadas pela invasão de alienígenas numa aldeia aparentemente pacata. Naquele singelo lugarejo que empresta seu nome ao título do filme, um distrito fictício do município de Serra Verde, no Oeste de Pernambuco, com locações no povoado de Barra, no sertão de Seridó, entre Rio Grande do Norte e Paraíba, o prefeito demagogo é malvisto por camuflar a água depois da interdição premeditada de uma represa para abastecer a população somente com um caminhão-pipa. Não desiste da campanha para a reeleição que está prestes a começar e sofre represálias dos seus eleitores que não o recebem e se escondem em suas humildes residências.

A trama tem um elenco coeso e sem estrelismo nesta história surreal contada por uma narrativa apreciável, com toques de bom suspense nos artifícios do roteiro dinâmico. As subversões propostas irão ao encontro do espectador para decifrar as sugestões do gênero no seu desenrolar. Teresa (Bárbara Colen) é a jovem que retorna à terra natal para o enterro da avó; Domingas (Sônia Braga) é a única médica, mas exerce um espírito de discutível liderança; Plínio (Wilson Rabelo) é o professor da comunidade e paizão de todos; Acácio, vulgo Pacote (Thomas Aquino) é um criminoso que irá se aliar a Lunga (Silvero Pereira) que reedita o cangaço pela clássica degola, uma analogia ao bandoleiro Lampião das selvas nordestinas em novos tempos, mas sem a Maria Bonita, eles são figuras importantes na resistência heroica; Michael (Udo Kier) é um alemão radicado nos EUA que chefia os milicianos estrangeiros e a crueldade está inerente em seus atos frios e premeditados. A fotografia captada em ambientes peculiares das caatingas do Nordeste foi registrada com extrema elaboração de cores por Pedro Sotero, parceiro nos filmes anteriores de Mendonça Filho. Outro ponto forte é a fascinante trilha sonora, especialmente no prólogo com a canção Não Identificado, de Caetano Veloso, na bela interpretação de Gal Costa, e o magnífico desfecho com Réquiem para Matraga, um verdadeiro hino do protesto, do enigmático cantor e compositor Geraldo Vandré.

O filme começa com a morte de uma lendária habitante de 94 anos, os moradores descobrem que a comunidade não consta mais em qualquer mapa na internet, exceto nos antigos rolos de papel guardados por um líder local. Os sinais da telefonia móvel também somem misteriosamente e, aos poucos, irão percebendo que fatos estranhos e aterradores na região estão acontecendo. Há uma tensão no ar com os drones no formato de disco voador que circulam pelos céus. Um casal de aparentes motoqueiros inofensivos simula um passeio pelas trilhas e estrangeiros chegam do nada à pequena cidade. Os carros são metralhados e alguns nativos morrem vítimas de tiros sem qualquer explicação plausível para os fatos inusitados que colocam todos em pânico. Sem identificar inicialmente o inimigo e induzir o medo no coletivo para criar um meio de defesa em boa parte do enredo, os diretores tentam fugir das armadilhas sorrateiras entre o bem e o mal, mas deslizam sutilmente para um ardiloso maniqueísmo. As alegorias buscam a empatia do público pela história contada com subsídios básicos e indispensáveis para a construção de um filme revelador das tramoias com artimanhas politiqueiras enjambradas por maus executivos detentores do poder, no caso o prefeito corrupto e sua obstinação pela continuidade em um contexto de opressão psicológica e crimes bárbaros que se sucedem.

Bacurau é importante pela relevância no cenário nacional diante das imagens cruas e os diálogos incisivos com simbologias determinantes. A heterogeneidade rompe com a mesmice do protagonismo único, pois todos os personagens são necessários e se encaixam nesta grande babel construída. Cada um desempenha um papel específico para ceder seu espaço a outro na cena posterior, na qual a situação sociopolítica está presente de maneira metafórica, como na invasão dos colonizadores norte-americanos em conluio com péssimos políticos tupiniquins travestidos de defensores do povo. Os caixões em abundância na cidade para suprir as necessidades da tragédia anunciada funcionam como elementos que contrapõe em uma outra alegoria premonitória das execuções sumárias em São Paulo, vistas na televisão, mas atual para os moradores. É o simbolismo da classe oprimida contra as classes dominantes, em que a vingança é o elemento preponderante para afastar ou dar um basta aos usurpadores. Atual e corrosivo pelo olhar crítico de seus realizadores pelo prisma do inconformismo da corrupção atávica nesta curiosa fábula social sobre a insegurança que vai se instalando e refletirá na tranquilidade estremecida de uma comunidade em polvorosa pelas crueldades que tomam corpo e se avolumam cada vez mais. São os contrastes da atualidade brasileira de anomalias e distanciamentos que avançam com sintonia pesada de fatos violentos e reais em uma narrativa ousada com méritos, sem cair nas obviedades de obras menores. Há elementos caracterizadores e envolventes que refletem com qualidade esta emblemática obra sobre a injustiça pela justiça da redenção através da resistência em defesa do bem maior: a vida.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Era Uma Vez em...Hollywood



Celebração Épica

O badalado cineasta Quentin Tarantino em sua última frase de Bastardos Inglórios (2009) dizia: "acho que essa é a minha obra-prima". E era bem provável que fosse. Um filme recheado de ironia fina, com uma violência não violenta, apesar do paradoxo, mesmo com a vingança explícita do massacre da família estampada no rosto da judia-francesa, reescreveu a história de forma consagradora. Embora houvesse algumas restrições pela facilidade dos abusos pela força. Depois, arrasou com Django Livre (2012), ao dar nova conotação à saga no efervescente e original faroeste, dando oportunidade aos escravos do Sul dos EUA, dois anos antes da sanguinolenta guerra civil (1861-1865), em mandar para os ares os brancos que tanto lhes oprimiram. Foi a vingança escravocrata no Velho Oeste contada pelo irrequieto e inesgotável diretor, assim como fizera na realização anterior, seguiu a mesma estética narrativa desde o prólogo com as cenas sequenciais da urdida trama. Fechou a trilogia das fábulas históricas com Os Oito Odiados (2015), retornando ao gênero do faroeste para apresentar os caçadores de recompensa, que agora buscam abrigo no Armazém da Minnie, lugar que serve de pousada durante uma tempestade de neve que durou dias. Debatiam e questionavam os resquícios que sobrevieram da guerra dos confederados entre sulistas e nortistas nos EUA num cenário de teatro operístico para um tiroteio verbal sobre os meandros e as consequências da batalha sanguinolenta que durou quatro anos.

Era Uma Vez em...Hollywood é mais uma espetacular criação deste gênio da sétima arte, com 161 minutos que passam voando na telona. Nem dá para se perceber a duração extensa, pois o espectador fica saboreando de maneira inebriada a essência construída pelo cinema neste seu último longa-metragem. É uma verdadeira ode prazerosa à indústria cinematográfica mais famosa do mundo. O lado obscuro de Hollywood quase sempre foi um tema retratado dentro de um exercício satírico e crítico que já rendeu obras memoráveis de diretores inesquecíveis. Assim foi com Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder, Assim Estava Escrito (1953), de Vincente Minnelli e O Jogador (1992), de Robert Altman. Os mais recentes que fizeram alusão ou alguma crítica velada foram Acima das Nuvens (2014), de Olivier Assayas, o festejado vencedor do Oscar Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância (2014), de Alejandro González Iñarritu, e Mapas para as Estrelas (2014), do veterano diretor canadense David Cronenberg, quando satirizou de forma irônica a perversidade infiltrada no charmoso mundo de futilidades e ambições sem limites das celebridades hollywoodianas. Mergulhou num cenário de vaidades, recheado de sarcasmo para dar vida e consistência devastadora à indústria norte-americana.

Tarantino prometeu encerrar a carreira quando concluir o décimo filme. Chegou agora na nona obra, mas espera-se que não cumpra a palavra e seja apenas uma jogada de marketing, pois ainda tem muito para contribuir com seu talento meritório inerente de alta qualidade entre tantas mediocridades que pululam nossas salas. Construiu uma comédia dramática que deriva para a fábula adulta que privilegia a liberdade para contar uma história fascinante na fase de transição da sétima arte. A trama é ambientada em Los Angeles, no ano de 1969, em apenas três dias na vida de dois atores em decadência diante das profundas mudanças sociais e políticas convergentes no universo dos mortais. São os novos tempos que emergem com transformações de rumos de uma nova Hollywood na qual terão que se adequar. Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) é um galã de televisão e filmes de faroestes que está perdendo espaço. Bebe e fuma compulsivamente num processo de degradação pessoal pelas frustrações da profissão que se sucedem. Ao seu lado está o dublê exclusivo, parceiro e amigo fiel, Cliff Booth (Brad Pitt), com fama de ser violento e ter praticado um homicídio no passado, é malvisto entre os colegas pelo temperamento de brigão, mas tem como objetivo fazer carreira em Hollywood. Estão sempre juntos, tanto nos raros bons momentos, como nos frequentes períodos de fase ruim. Dalton já não conhece tantos astros renomados de outrora, mas tem como vizinha Sharon Tate (Margot Robbie), uma jovem atriz promissora de 26 anos que fazia sucesso pela participação no suspense O Bebê de Rosemary (1968). Ela estava grávida do marido e diretor Roman Polanski (Rafal Zawierucha), que fazia uma turnê pela Europa, quando foi brutalmente assassinada com quatro amigos, em 09 de agosto de 1969, pelos membros de uma seita composta por hippies e comandada pelo fanático Charles Manson.

O realizador coloca de maneira sutil a contracultura do movimento hippie que eclodiu nos anos de 1960 em choque com a ascensão da estrela que brilha e faz furor, através de uma tragédia brutal que comoveu o mundo. Não carrega nas tintas fortes dos tiros, explosões e dilaceramentos de corpos, deixando para o epílogo sua marca registrada, porém de maneira contida e equilibrada. Era uma Vez em... Hollywood é um épico em tom de comédia voltado para homenagens com o paradoxal sabor doce e melancólico à indústria cinematográfica em transição. São inoculadas as verdades mescladas com mentiras relatadas através da magia de uma grande fábula naquele universo fantástico de sonhos realizados ou frustrados. A desglamourização é acentuada na inventiva subversão ficcional contrapondo com a realidade de fatos singulares ocorridos. O diretor não visa buscar elementos novos para decifrar o assassinato ou questionar o movimento pseudorreligioso através das referências à cultura pop, por ser apenas um pano de fundo para o enredo magistral que se desenrola e lança algumas luzes sobre um futuro pessimista.

No entanto, seu último longa é uma vertente de amor ao cinema com um viés tênue nostálgico, que substitui de maneira clara e evidente o prazer do sangue em profusão por diálogos marcantes e profundos. A narrativa é emotiva em algumas cenas e em outras traz, às vezes, um sarcasmo embutido pela atmosfera do bom humor com sutilezas nas imagens reveladoras de um cinema de exceção. Num cenário da Los Angeles antiga, foi recriado com esmero e fidelidade através de uma produção impecável de figurinos, automóveis e prédios que nos remetem para os anos de 1960. Elogios à trilha sonora que atua como um coadjuvante certeiro sem invadir a trama, embalando agradavelmente o espectador. Abordar em formato lúdico em uma estrutura pouco convencional, introduzindo e deslocando personagens livremente no ardil de um roteiro dinâmico com longos planos-sequência, depois cortar e ir para contraplanos eloquentes, não é para realizadores neófitos da mesmice ou veteranos limitado. Só os grandes autores conseguem prender uma plateia por mais de duas e meia em uma história complexa, exceto estão os grandes mestres, e entre eles está Quentin Tarantino no cotidiano de seus anti-heróis brilhantemente encarnados por DiCaprio e Pitt, pela primeira vez contracenando juntos. Um extraordinário filme que estará certamente entre os dez melhores nas listas de fim de ano.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Vermelho Sol



Hipocrisia e Opressão

Vem da Argentina em coprodução com o Brasil, França, Holanda e Alemanha um típico filme perturbador sobre os momentos que antecederam o golpe de Estado ocorrido em 1976 no país vizinho. O drama sociopolítico Vermelho Sol registra com sutilezas e sugestões o ambiente do ano de 1975, logo após a morte do presidente Juan Domingo Perón e a ascensão ao governo da esposa e vice Isabelita Perón, com a consequente deposição da mesma, e a instalação da Junta Militar sob a batuta do sanguinário general Jorge Rafael Videla. A direção é do jovem promissor Benjamín Naishtat, de 33 anos, que nasceu após o fim da democracia e a decretação do estado de sítio com uma repressão violenta contra seus compatriotas, tendo como efeito o exílio de sua família na França, com alguns voltando e outros familiares ficando por lá mesmo. Guardou na memória sua casa da infância abandonada sendo saqueada e queimada por vizinhos em Córdoba, que levaram tudo o que podiam, sendo objeto de inspiração para os fatos ocorridos no desenrolar da trama de sua realização com forte influência no passado de reminiscências.

O realizador estreou na ficção com a mescla de suspense e drama familiar Bem Perto de Buenos Aires (2014). Retratou as ações cotidianas dos personagens que transitam ou moram num cenário de dúvidas pela perda da tranquilidade de um local costumeiramente pacato, que se deixa abalar pelo instinto e pelo sentido sensorial repassado para a plateia como um componente de fatos estranhos que poderia se desenrolar trazido pela escuridão, mas com o viés da insegurança pela luta de classes. Mostrava um helicóptero da polícia sobrevoando uma área vizinha na periferia de Buenos Aires de um condomínio horizontal luxuoso, dando o aviso de desocupação aos invasores. O diretor admitiu ter se inspirado no soberbo O Pântano (2001), da conterrânea Lucrecia Martel, mas na realidade sua obra deriva mais para o badalado O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, ao abordar classes sociais diferentes com personagens de lados opostos entre a pobreza e a elite. Não é por acaso que trouxe para fotografar seu último longa o brasileiro Pedro Sotero, que tem no currículo Aquarius (2016) e o drama brasileiro já mencionado, que rendeu ao fotógrafo o prêmio máximo no Festival de San Sebastián, sendo também premiados o diretor e o ator principal.

Vermelho Sol tem um enredo bem urdido com um roteiro enxuto do próprio cineasta, no qual desfila seus personagens na tela, dando estrutura e cumplicidade para alguns, desprezo e envolvimento velado em outros. Claudio (Darío Grandinetti, de sóbria interpretação, é o mesmo de Fale com Ela e Relatos Selvagens) é um veterano advogado, que atua tanto nas causas éticas tanto quanto nas antiéticas pela corrupção assumida, como na cena da casa adquirida pelo meio de um usucapião forjado. Ele vive uma vida calma, confortável, em forma de harmonia com a filha adolescente e sua esposa, Susana (Andrea Frigerio), numa pacata cidade interiorana onde aparentemente poucas coisas acontecem. Numa noite qualquer, está em um tradicional restaurante sentado sozinho à espera da mulher para jantar, quando surge um estranho (Diego Cremonsesi) com quem travará uma acirrada discussão por uma mesa e acabará de maneira arrogante humilhando o desafeto. Haverá desdobramentos na saída do estabelecimento com um desfecho trágico já no magnífico prólogo da realização, que causará uma virada de rumo na rotina do protagonista.

Com o surgimento do detetive particular chileno, Sinclair (Alfredo Castro, de ótima atuação, conhecido pelos papéis marcantes em A Cordilheira e Cachorros), contratado para investigar o desaparecimento de um rapaz da comunidade, o causídico irá se inteirar do movimento repressor que está acontecendo. Ou não imaginava por alienação e desconhecimento de causa, ou por hipocrisia sob o manto da acomodação da tranquila zona de conforto. Os infortúnios irão aflorar e o anuviamento começa então a se dissipar paulatinamente. O detetive faz colocações pontuais no encontro dos dois no deserto sobre o período cinzento que está tomando conta da Argentina com a tomada do poder pelos militares, com insinuações evidentes da aparelhagem repressora e o abalo que a sociedade civil está à mercê do destino que traria reflexos devastadores. A gangue juvenil que sequestra e faz sumir um jovem inocente por uma situação sentimental é outra evidência dos rumos tenebrosos que se aproximam. Mas é mais reveladora ainda a cena do eclipse em que o sol fica sombrio como um singular prenúncio metafórico dos novos tempos de terror que estão chegando.

Um painel triste e vergonhoso de uma época a ser esquecida pelo povo argentino, diante de uma narrativa vigorosa sobre o turbulento período dos anos de chumbo com as tensões sociais se sucedendo com ingredientes sutis num lugarejo longínquo de uma província do interior, na qual as regras da sociedade mudaram drasticamente. Não se podia dizer tudo o que se pensava, diante da pressão que faria as pessoas se sentirem vigiadas, tendo como corolário a fuga dali para nunca mais voltar. Alternativas sorrateiras eram ditas, entre elas: foram passear, ou alegações de que ficaram doentes, porém a maioria desaparecia para sempre. Havia uma ode aos Estados Unidos como solidários e amigos, marcante no episódio dos vaqueiros norte-americanos que eram o elo de amizade entre os dois países circunstancialmente alinhados com o mesmo propósito.

A imprensa local louvava as questões otimistas, exceto um jornalista que é torpedeado numa resposta em tom de pergunta atemorizante. A maioria não questionava a intervenção branca e invasiva com o viés da interferência no governo vigente e democrático, através de um apoio logístico que se tornaria um genocídio sangrento com sequelas duradouras e temerárias para quem era contrário ao regime de exceção, numa estimativa de trinta mil entre mortos e desaparecidos. Dissimulações e mentiras frequentes andavam juntas nos arranjos para obscurecer a verdade ficar completamente escondida. O pragmatismo daquele suposto homem digno é uma farsa, como na representação do show da mágica, como os rombos na sua estrutura psicológica prestes a desmoronar, pois são sustentadas por pilares podres escondidos atrás de uma moral de bons costumes estereotipados, pela prepotência num sistema em que está presente a derrota vestida de uma violência humilhante num ambiente arruinado, mas abastecido pela agressividade e barbárie. Vermelho Sol mergulha em imagens e diálogos com força expressiva para qualificar esta admirável realização sobre a opressão em consonância com a hipocrisia numa requintada reflexão política e social.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

A Árvore dos Frutos Selvagens



Painel de Conflitos

O consagrado diretor e roteirista turco Nuri Bilge Ceylan está de volta com A Árvore dos Frutos Selvagens, um ótimo drama que aborda com profundidade a religião, a filosofia, os aspectos sociais, a economia, a política e as intrínsecas querelas familiares. Um filme de 188 minutos pode assustar no primeiro momento, mas surpreendentemente flui e anda com uma boa dinâmica do multifacetado roteiro, embora os diálogos sejam longos e por vezes exaustivos e repetitivos. Os conflitos de uma família soam como elementos alegóricos para retratar a existência de momentos marcantes na vida de personagens destroçados por um país em crise política sob a batuta de um regime autoritário comandado por Recep Erdogan. Salta aos olhos uma sociedade atrelada flagrantemente à religião e aos abusos de um governo de exceção, simbolizados eloquentemente na saga pelos desmandos da derrocada e divisão dos membros daquele microcosmo intimista em iminente decomposição moral e com a dolorida perda da dignidade humana pelos vínculos rompidos.

O cineasta venceu a Palma de Ouro e o Prêmio da Crítica do Festival de Cannes com a extraordinária realização Winter Sleep (2014), batizado no Brasil com o título Sono de Inverno, na qual faz uma reflexão magnífica sobre a existência e seu sentido na essência da vida, os efeitos do tédio e o ressentimento de um homem em crise e com a sensação de perda da parceira, acompanhado da solidão e da velhice que aflora de forma avassaladora. Realizou o longa Distante (2002), vencedor de Melhor Ator e o Grande Prêmio do Júri de Cannes; com Climas (2006) levou o Prêmio da Crítica da 30ª. Mostra de Cinema de São Paulo; foi laureado como Melhor Diretor em Cannes pelo perturbador Três Macacos (2008). Mas Ceylan arrasaria com o estupendo Era Uma na Anatólia (2011), talvez o melhor de todos, pelo qual abocanhou o Grande Prêmio do Júri em Cannes. Uma mescla de filme policial noir com drama social numa aparente e singela investigação de um crime, durante uma noite inteira com o desfecho no outro dia, em que nada funciona, a começar pelos carros corroídos pelo tempo e completamente arcaicos. Solidificou-se como um realizador preocupado com as questões sociais e a falência do sistema turco, onde a burocracia estava, e ainda está, presente no caos que se instala nas improvisações que vão desde a polícia até a medicina, passando por um judiciário ultrapassado e inócuo para resolver um simplório crime numa aldeia rural encravada dentro de uma estepe rodeada de colinas.

A Árvore dos Frutos Selvagens é uma trama bem urdida para representar a crise do jovem Sinan (Dogu Demirkol- pouco convincente no papel), um apaixonado por literatura que sempre sonhou em se tornar um grande escritor, faz de tudo para conseguir juntar dinheiro e investir na sua primeira publicação, na qual aposta tudo. Ele tem vinte e poucos anos, está recém-formado na faculdade, e retorna à região em que nasceu, mas vive às turras com o pai, Idris (Murat Cemcir- de atuação impecável), um professor fracassado em meio à complexidade da situação em que se encontra pela decadência profissional, moral e familiar, por ser um apostador contumaz no hipódromo. Lá, gasta todo o dinheiro e está endividado com agiotas. Embora ame os filhos e a mulher, se mantém à distância, pois gosta mesmo é de criar suas ovelhas na zona rural, tenta encontrar água num poço no qual perfura com esperança, porém traz um trauma que remete à infância quando bebê ao ser tomado pelas formigas. A mulher do docente não aguenta mais a situação caótica em casa com corte de luz devido à falta de pagamentos, a residência hipotecada pelo marido por dívidas recorrentes e a filha sem grandes perspectivas de futuro. O aspirante a escritor luta pelo financiamento de seu livro, vai ao encontro do secretário da prefeitura, de comerciantes e busca ajuda junto a um renomado intelectual do lugarejo. Debate com a namoradinha de infância e o líder imame muçulmano local sobre a religião, aborda temas amplos como os usos costumes, a cobiça, o amor e a filosofia não acadêmica, ou seja, do cotidiano da vida simples dos personagens aldeões, questionando muitas vezes as ideias de maneira utópica e arrogante. As cenas são recheadas de desavenças que surgem aos poucos, ao fio de longos diálogos de forma lenta e progressiva.

O drama consiste em um mergulho filosófico para criar personagens consistentes, fortes ou frágeis, vencedores ou vencidos, não importa. Mas todos com alma e coração quase sangrando. A relação fria e distante entre marido e mulher pelo afastamento emocional num casamento de aparências, onde ele tenta controlá-la e mantê-la afastada de seu trabalho comunitário, o que irá gerar mais discórdias e crise conjugal. A relação do pai com os filhos também é conturbada, especialmente com o rapaz. São fatos do cotidiano que gravitam no painel construído por Ceylan, em que as estações do tempo mudam gradativamente e o espectador acompanha pela natureza em transformação, através de um cenário deslumbrante como no farfalhar das folhas que corta o silêncio, os frutos chegando como alimento e a nevasca por todos os lados predominando o inverno. Há no desenrolar da história um aprofundamento intenso nos diálogos de questionamentos implacáveis, pela maneira elegante da condução com um toque de classe seco com extremo realismo de cenas de som direto em longos planos sequenciais, ao melhor estilo do rigor formal clássico bem típico do diretor.

Ceylan invoca facilidade na técnica para prender o espectador, retratando o dia a dia que se dilacera num contexto de grande cinismo e domínio do poder sobre os menos favorecidos. Deriva para o desemprego e a humilhação com os efeitos do tédio e da desilusão do jovem escritor e a aproximação com o pai realista, capturado no simbólico encontro libertário no epílogo metafórico de luzes e esperanças no fim do túnel, ou do poço. Um desfecho que revela e joga alguma centelha positivista, embora tênue, numa tentativa de recompor e burlar o pessimismo, diante das revelações que irão fortalecer os vínculos familiares estremecidos. O filme tem o movimento interessante de uma câmera em planos-sequência longos, rara vezes em contraplanos curtos, captando as imagens e a valorização primordial da importância da palavra. Eis uma obra que instiga e faz refletir sobre os conflitos como mola propulsora para ir ao encontro das decorrentes fragilidades dos aspectos sociais e a relação direta com a abominável política de um regime arbitrário.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

O Bar Luva Dourada



Crimes Hediondos

O diretor, roteirista e produtor alemão de ascendência turca Fatih Akin é considerado um dos principais expoentes do movimento cinematográfico contemporâneo da Alemanha. Tem brilho próprio, assim como seu conterrâneo Christian Petzold, visto recentemente no elogiado Em Trânsito (2018). O cineasta tem em sua filmografia realizações rigorosamente instigantes sobre imigração. Com o notável Contra a Parede (2004), ganhou o Urso de Ouro em Berlim; foi sucesso de público e crítica com o deslumbrante documentário musical Atravessando a Ponte- O Som de Istambul (2005); com sua possível obra-prima, Do Outro Lado (2007), obteve o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes; já na elogiável comédia dramática escrachada Soul Kitchen (2009) abocanhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza; obteve a láurea de melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro por Em Pedaços (2017), que retrata a morte por explosão de um ex-traficante e seu filho depois de cumprir pena e tem na arrasada mãe e ex-companheira a busca incessante de justiça para os crimes de seus familiares.

Depois de demonstrar toda sua sensibilidade e vigor estético inovador em suas obras anteriores, Akin retorna com o contundente O Bar Luva Dourada para se aprofundar nas mazelas decorrentes das feridas abertas de uma sociedade ainda traumatizada pelos efeitos do nazismo. Envolve e perturba o espectador com este drama mesclado com suspense, adaptado do livro de Heinz Strunk sobre fatos reais praticados por um serial killer nos anos de 1970, no boêmio bairro St. Pauli da cidade de Hamburgo. Fritz Honka (Jonas Dassler) é um homem fracassado, horrendo, de rosto deformado, que perambula pelas ruas ao redor de outras criaturas perdidas, sem que ninguém desconfie ser ele o assassino em série. O protagonista persegue mulheres mais velhas e solitárias que conhece no seu bar favorito Zum Goldenen Handschuh, que dá nome ao filme, para atrair prostitutas idosas à procura de aconchego e bebidas, levá-las para o sótão de seu claustrofóbico apartamento. Lá, ele mata e esquarteja as vítimas, guarda os pedaços dentro das paredes, mas quando alguém reclama do fedor, atribui o mau cheiro à culinária de vizinhos gregos e disfarça com perfumes o local para afastar suspeita. Os jornais começam a noticiar os desaparecimentos sucessivos, o que irá causar medo e apavorar a comunidade em uma das mais complexas investigações de crimes hediondos ali presenciados.

Uma realização ao melhor estilo da escola alemã, através de um roteiro dinâmico por uma narrativa sem subterfúgios e emblemática sobre o cotidiano simples de pessoas sem destinos e ignoradas por serem excluídas da sociedade de consumo, onde somente o cigarro e as grandes bebedeiras irão confortar aquelas almas penadas e sofredoras. Com cortes certeiros e precisos, sem concessões para o espectador num realismo brutal, em um tom seco e direto com artimanhas adequadas, retrata um painel do flagelo humano decorrente das angústias políticas contemporâneas de um universo de dúvidas e aflições constantes. Filmado em dois ambientes melancólicos: o bar boêmio e a residência do psicopata. No estabelecimento há brigas constantes na penumbra com o fundo musical tocando canções entristecidas, com frequentadores contumazes bebendo no balcão sob o embalo da trilha sonora fabulosa que, na primeira cena, ouve-se “Never On Sunday” (Nunca aos Domingos), do filme grego de 1960 de Jules Dassin, tendo a música de mesmo nome composta por Manos Hadjidakis e ganhadora do Oscar de Melhor Canção Original. Há algumas lamúrias de personagens desencontrados em meio a discussões mais acirradas com confissões sobre o passado de uma prostituta queixosa de sua profissão no fim da Segunda Guerra Mundial. Ou ainda, o olhar atônito do esquisito ex-soldado que lutou pelo seu país e agora apresenta sequelas físicas e psicológicas que o distancia de um ser humano com lucidez de raciocínio lógico. Já no apartamento imundo repleto de bonecas e com mulheres nuas decorando as paredes para satisfazer as fantasias sexuais do homem impotente. O sangue em abundância é um ingrediente de marca registrada proveniente da violência explícita praticada por Honka, uma espécie de Jack, O Estripador, na versão alemã.

Um capítulo à parte é a antológica interpretação do jovem ator galã Jonas Dassler, de 23 anos, completamente irreconhecível pelos efeitos da maquiagem transformadora com uso de próteses, na pele do personagem central que conduz a trama pelo marcante caminhar encurvado nas costas, ao melhor estilo do célebre personagem francês Corcunda de Notre Dame. Segura até o desfecho inusitado com seu olhar atemorizante em um enredo recheado de crueldade que deriva para um cinema frenético de resultado fantástico. Quando solta seus guinchos de insatisfação e loucura plena de um ser que não se satisfaz com as mulheres, vem à lembrança os gritos semelhantes de Hitler na sua insensata e tresloucada busca animalesca do domínio mundial, em uma analogia metafórica ao velho ditador nazista de uma sociedade doentia ainda impactada pelo passado. Paradoxalmente o personagem se apresenta como filho de um comunista preso no campo de concentração, que de varredor de uma fábrica passa a vigilante no novo emprego, estufa seu ego com a roupa que dará ostentação e orgulho de poder como evidências reveladoras.

O Bar Luva Dourada é uma singular realização sobre os seres humanos destroçados pelo tempo, em uma exemplar reflexão sobre a irracionalidade bestial neste painel arrebatador pelo olhar questionador de um realizador sobre as fragilidades humanas. O drama não cai na caricatura fácil e nem no maniqueísmo contumaz de algumas realizações pouco consistentes. Causou algum desconforto na apresentação do Festival de Berlim, em fevereiro de 2019, diante da tensão e da intensidade elaboradas com alguma dosagem de exageros que poderão causar náuseas em pessoas mais suscetíveis de estômagos sensíveis. As construções de personagens psicologicamente derrotados na vida e em situações que beira o abismo estão bem alicerçadas por uma direção autoral magnífica, através de uma forte complexidade dos detalhes pelas dores que carregam de traumas da rejeição ao prazer, da perda da dignidade e da piedade como elementos que afloram pelos métodos violentos dos impulsos doentios sem freios. São reflexos de uma sociedade de invisíveis marginalizados no refúgio do bar contrapondo com os dois jovens personagens intrusos representantes da casta burguesa. Contextualizado dentro de um clímax embrutecido por um panorama sombrio oriundo desde o pós-guerra, em que a selvageria impacta e devasta pela solidão com lembranças pretéritas nefandas. Desde já, insere-se entre os 10 melhores filmes do ano.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Festival Varilux Cinema Francês (Graças a Deus)



Pedofilia na Igreja

Um dos mais aguardados lançamento do Festival Varilux de Cinema Francês foi o badalado Graças a Deus, com direção do producente François Ozon, nome constante em festivais como Cannes, Berlim e Veneza. O longa-metragem foi visto com entusiasmo pela crítica internacional no 69º. Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro deste ano, quando arrebatou o Urso de Prata. Baseado em fatos reais ocorridos em Lyon, na França, retrata de forma imparcial, nua e crua, a pedofilia escancarada na Igreja Católica. Um drama de denúncia com requintes de abordagem psicológica profunda na sua mais pura essência, sem grandes pretensões estilísticas. A narrativa é eficiente e o assunto causa desconforto na plateia, embora o roteiro seja linear e multifacetado em seu desenrolar, com elipses certeiras. É provocativo na câmera que viaja pelos rostos das vítimas e dos familiares atingidos por um crime abjeto em vários personagens que carregam as marcas traumáticas de uma violência advinda da infância cometida por um doentio padre pedófilo que abusa sexualmente de mais de 70 crianças com o acobertamento dos bispos e cardeais do poder eclesiástico.

Depois das realizações O Refúgio (2009); Potiche-Esposa Troféu (2010); Dentro de Casa (2012); Jovem e Bela (2013); o premiado Frantz (2016), drama histórico que recebeu onze indicações ao Prêmio César, o Oscar da França, abocanhando a láurea de melhor fotografia, além da premiação de melhor jovem atriz no Festival de Veneza de 2016 para a bela Paula Beer; e o instigante O Amante Duplo (2017). O cineasta, agora, constrói um painel psicológico para contar uma amarga e dolorosa saga, que inicia com Alexandre (Melvil Poupaud) tomando coragem para escrever uma carta para o bispo e revelar um segredo: quando era criança, sofreu abusos sexuais do padre Preynat (Bernard Verley). A trama conduz para os psicólogos da Igreja tentando ajudar, mas que não conseguem negar o fato de que o acusado não foi afastado do cargo, pelo contrário, continuou atuando junto aos menores indefesos. Diante da publicação dos fatos relevantes e o envolvimento da mídia, outras vítimas na infância aparecem e as denúncias de abuso tomam corpo e o cerco se fecha, entre eles estão François (Denis Ménochet) e Emmanuel (Swann Arlaud). É criada uma associação de apoio chamada ironicamente de Palavra Liberada, no que aumenta a pressão na justiça por providências definitivas e sem paliativos, mas terão de enfrentar situações típicas como a prescrição legal dos crimes.

Há situações claras e evidentes mostradas de forma objetiva e direta como a conivência do cardeal Barbarin (François Marthouret), que sempre soube dos crimes, inclusive assumidos pelo padre abusador, mas nunca tomou providências mais sérias. Fazer uma reunião com os envolvidos para um singelo pedido de desculpas pelo pároco confesso, patrocinada pela arquidiocese, é a saída diplomática encontrada de maneira protocolar e completamente omissa. O realizador utiliza recursos para elaborar um cenário convincente, simbolizado no olhar atônito dos personagens para vencerem o medo na busca da verdade e das revelações que se acumulam. As causas e efeitos estão presentes como feridas ainda abertas e não cicatrizadas, que proliferam numa realidade devastadora acompanhada do contrassenso tenebroso que atingiu várias famílias católicas. Há membros do núcleo familiar que são céticos e não acreditam; outros ficam quase que duvidando dos fatos; mas há os que se insurgem com veemência e se solidarizam com as vítimas atormentadas. Um filme construído pelo olhar do diretor que surpreende pelo seu desenrolar preciso e direto ao ponto diante dos traumas decorrentes na perversão das atrocidades sexuais de outrora. A dignidade está em xeque, embora seja questionada pelos defensores do clérigo torpedeado, insistem para uma composição amigável e sem escândalo. Há um fardo insustentável e pesado que tomará grandes dimensões pelos crimes que continuam impunes numa atmosfera sombria para quem quer apenas justiça e não pedidos simbólicos de desculpas esfarrapadas, diante de fatos comprovados que geram revolta e dor dos mais próximos pelo descaso dos religiosos diante das acusações verossímeis.

Ozon coloca seus personagens vitimados na busca da verdade, no que difere de Tom McCarthy, que se baseou também em fatos reais ocorridos em Boston, nos EUA, para contar uma história similar e provocante, tema de preocupação do Papa Francisco, no oscarizado Spotlight- Segredos Revelados (2015), sobre um grupo de jornalistas do jornal The Boston Globe mergulhados numa parafernália de documentos probatórios sobre diversos casos de abuso de crianças por padres da Igreja Católica. O drama francês aponta e denuncia uma parte da Igreja ainda conservadora, que não se importou com as profundas cicatrizes que deturparam o psicológico de seus fiéis ludibriados por sacerdotes que se utilizaram da fé para cometer crimes de pedofilia, no qual também foi o foco de outras duas realizações: Má Educação (2004), de Pedro Almodóvar, e O Clube (2014), de Pablo Larraín, premiado pelo Júri do Festival de Berlim.

Graças a Deus é conduzido com habilidade em um tom seco e ferino com planos e contraplanos, enquadramentos fixos, ausência de trilha sonora, para dar mais contundência nos relatos fortes e dramáticos dos personagens já adultos com o recurso de flashbacks numa estética clássica das melhores realizações sérias e isentas da escola francesa. As reações das vítimas são heterogêneas, pois algumas continuam religiosas e outras abandonaram a crença pela desilusão completa. Agora, aqueles homens, tanto os heterossexuais como os homossexuais, seguem suas vidas. Uns com relacionamentos aparentemente normais, embora confusos, mas no fundo carregam mágoas, traumas, depressão e ressentimentos; outros carregam problemas afetivos e psicológicos graves. Tudo por conta da hipocrisia e o medo do escândalo religioso sobre a pedofilia recorrente, nesta primorosa obra de denúncia e resgate de seres humanos destroçados pelo tempo, para uma reflexão sobre a irracionalidade bestial neste painel arrebatador.

terça-feira, 18 de junho de 2019

Dor e Glória



A Vida em Retrospectiva

O cultuado realizador espanhol Pedro Almodóvar, aos 69 anos, está de volta ao seu clássico estilo de filmar os dramas profundos e intimistas com o rigor formal característico. Embora sem se reinventar, mantém o bom domínio estético narrativo que o consagrou nestes 40 anos de carreira e 21 filmes produzidos. Apresentado com ovação no Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio deste ano, Dor e Glória retrata uma autoficção do cineasta, com Antonio Banderas (laureado com o Prêmio do Júri) protagonizando Salvador Mallo, um diretor no ocaso da carreira, que também é homossexual. Encerra a trilogia espontânea sobre o projeto focado em desejo e ficção cinematográfica mesclados com a vida real de dores e paixões inerentes como sustentação de personagens masculinos que dirigem na sétima arte. Levou 32 anos para finalmente ser concluída, antes vieram A Lei do Desejo (1986) e Má Educação (2003).

A trama centraliza na criatura Mallo com o semelhante corte de cabelo, alter ego de seu criador, com tintas autobiográficas de um melancólico cineasta em franco declínio profissional. O personagem se vê obrigado a pensar sobre as escolhas que fez na vida de um passado que retorna com os fantasmas para serem exorcizados. O longa permeia flashbacks rápidos e não lineares, com lembranças do pai ausente e da mãe pela relação conflitada por insistir em colocá-lo num convento de padres, bem como o retorno às origens de pobreza em que morava numa caverna quando criança, descobrindo ali sua tendência da opção sexual através de um pedreiro, por acaso, ao servir de modelo para um quadro que irá reencontrar na fase adulta. Penélope Cruz, atriz-fetiche do realizador, interpreta a jovem mãe que canta doces músicas para se distrair e esquecer a miséria ao lavar roupas na beira do rio. O papel da genitora idosa é confiado a Julieta Serrano e o drama pessoal de querer voltar para morrer na antiga residência, mas o destino é cruel e o hospital será sua última morada. O tempo é escasso para perdões e reatamentos de divergências entre filho e mãe sobre a opção assumida da homossexualidade.

Eis uma obra intimista autoficcional de Almodóvar que retrata os reencontros e as reflexões sobre o período da infância na década de 1960, que irá passar pela fase de transição no processo de imigração para a Espanha. O primeiro amor maduro com o antigo namorado (Leonardo Sbaraglia) e sua relação com a escrita e com o cinema propriamente dito, com passagens pelo envolvimento de drogas pesadas. O cineasta espanhol não é diferente e segue o mesmo caminho de vários artistas em crise ou próximos do fim da existência, transformando a trajetória existencial como um legado histórico da arte, como visto recentemente no documentário da legendária Agnès Varda que fez um inventário de sua vida e carreira em Varda por Agnès (2019), ao despedir-se da telona em grande estilo e uma superação invejável; ou ainda a realização Maria Callas- Em Suas Próprias Palavras (2017), dirigido pelo competente Tom Volf, sobre a grande diva da ópera do século 20, a bela e talentosa Maria Callas, uma das mais consagradas cantoras e intérpretes da história da música, teatro e cinema.

Almodóvar cria um cenário aprazível com a humilde casa enjambrada e bem decorada pela mãe na infância, apesar da pobreza, traz também requintes de angústia psicológica quando explora com força as cores naturais e harmônicas, abolindo as mais fortes de predominância do vermelho nos listrados e xadrezes gritantes de agressão visual, em realizações anteriores como marcas inesquecíveis. Opta pela sobriedade com o olhar distante pela dor da ausência e das perdas amorosas de vínculos familiares rompidos que aconteceram em sequência, dando um semblante de tristeza e desesperança. Num contexto típico e revelador dentro do universo cênico almodovariano, com um enredo pontilhado por traumas, revelações e atitudes marcantes de um caminho escolhido para refletir. Mesmo sendo um filme menor, sem fisgar plenamente o espectador, está acima de realizações medíocres que infestam as salas de cinema, ao se estabelecer a relação com obras anteriores arrebatadoras como A Pele que Habito (2011); o brilho e eloquência inerente em Abraços Partidos (2009); o sempre lembrado Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988); o notável Fale com Ela (2002); Volver (2006) é a ode máxima ao feminismo; assim como em Ata-me (1990); De Salto Alto (1991), Carne Trêmula (1997) e Tudo Sobre Minha Mãe (1999).

Dor e Glória não empolga, mas não chega a decepcionar, fica num plano intermediário com sabor déjà vu. Dá para dizer que é mais uma produção com a grife Almodóvar, que transparece como uma evidente tentativa de controle do discurso inflamado, com um viés contido e embasado nas lembranças, nas memórias afetivas, nas mágoas e na veemência melancólica abundante da iminente finitude do ser humano. Há inúmeras referências aos fatos de modo que a ficção se confunde com um diário pessoal sendo folheado do início até o desfecho. O resultado se confunde na essência com um projeto mais profundo e uma obra extensa e calcada na simplicidade com ausência de vaidade, o que seria um mérito para um diretor menor, sem a potencialidade do autobiografado e seu sucesso estrondoso. Fica a falsa impressão de que já filmou tudo de bem-sucedido e que restou a ausência de criatividade para atingir êxitos a serem trilhados com a eloquência característica deste fabuloso artesão em declínio e sem ânimo para o presente. Focaliza os personagens combalidos pelas suas confissões mostradas como se fossem purificar a própria alma com um suposto pedido de clemência pelos eventuais equívocos praticados nas sucessões de acontecimentos que desfilam na tela. Os grandes dramas pessoais são absorvidos pelas fraquezas e as vicissitudes fragilizadas como decorrências do ser humano, numa trama que se delineia com verossimilhança no epílogo, após todas as conquistas do ápice da fama. Parece interessar agora somente um cotidiano das pequenas coisas. Tudo vai no embalo da bonita trilha sonora para revisitar um enredo peculiar e cinzento, através de um olhar de sentimentos atormentados pelas transformações emocionais na construção psicológica do sofrimento humano sem alegria.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

A Grande Dama do Cinema



Mordaz Tributo ao Cinema

Mais um exemplar da típica produção autoral de Juan José Campanella, oriunda da Argentina em coprodução com a Espanha, A Grande Dama do Cinema é uma comédia mordaz e o menos argentino de sua filmografia. Aborda o envelhecimento e a decadência dos artistas envolvidos com a sétima arte, em um tema universal, mas o realizador mantém o olhar habitual com ritmo instigante sobre o cotidiano, a política econômica em frangalhos e as turbulências políticas que se sucedem. Seu primeiro longa foi a comédia dramática O Mesmo Amor, A Mesma Chuva (2000), sobre o relacionamento de um casal que se conhece numa tempestade e por 20 anos há encontros e desencontros. Depois veio o admirável O Filho da Noiva (2001), quando enfatiza de maneira significativa a tragicidade familiar da degenerativa doença do mal de Alzheimer. Após viria Clube da Lua (2004), onde mostra toda sua paixão pelo Racing Club de Avellaneda, numa ficção sobre a falência de seu clube querido com um deslumbrante lirismo de uma época de dança e amor. Com a obra-prima O Segredo dos Seus Olhos (2009), que levou o prêmio de melhor produção estrangeira no Oscar, o foco recaiu sobre uma investigação que começou 35 anos após a conclusão e o arquivamento de um processo sem resultado satisfatório pela burocracia do judiciário e da polícia sobre um assassinato com estupro em 1974, época do período pré-militar, passando pela exaltação dos chefes militares com a tomada e a defesa das Ilhas Malvinas.

O festejado cineasta está de volta depois de 10 anos, construindo um sarcástico painel de quatro artistas do cinema em que a idade os pegou. Eles estão reclusos num bonito casarão antigo no interior de Buenos Aires, que serviu de set de gravações entre os anos de 1960 e 1970. Ali, naquele cenário de filmagens que ainda mantém um aspecto daquela época de lembranças de um passado glamoroso em que as memórias estão bem vivas e redentoras de momentos sedutores. Um grupo improvável de quatro resistentes convive num ambiente familiar de vínculos afetivos característicos, embora haja as peculiares desavenças decorrentes do dia a dia. Formado pela alquebrada diva, a tarimbada Mara Ordaz (Graciela Borges) que é casada com o ator fracassado Pedro de Córdova (Luis Brandoni), atualmente em uma cadeira de rodas devido a um acidente que será revelado na trama as causas que o incomodam tanto, são os proprietários do imóvel; o frustrado roteirista Martin (Marcos Mundstock); e o astuto diretor Norberto Imbert (Oscar Martinez).

Os personagens moram naquela mansão e cuidam de todos os detalhes desta verdadeira fortaleza protegida, embora com dificuldade financeira, entre alguns resmungos e evidências alusivas de relacionamentos estremecidos. Os tiros dados por Norberto nas doninhas e nos ratões que infestam o paraíso deles incomodam a estrela, única mulher naquele espaço, pelo barulho na madrugada e também durante o dia. Soam como uma alegoria da proteção dos defensores do cinema com suas idiossincrasias diante do tempo que passa e o futuro incerto que espreita a soberania reinante naquela casa, bem como uma premonição para o epílogo inusitado. Os vilões da história estão à espreita, prontos para darem o bote por uma sorrateira armadilha arquitetada pelo jovem casal Francisco (Nicolás Francella) e Bárbara (Clara Lago). Eles simulam estar perdidos na viagem até Buenos Aires para uma suposta reunião. O mal está chegando, diz um dos moradores, que percebeu a arapuca armada para envolver sentimentalmente Mara, numa tramoia bem enjambrada para tentar vender a mansão. Seria um negócio vantajoso aos falsos fãs com suas artimanhas para o grande blefe, até as máscaras caírem, e a ciranda do faz de conta dos acontecimentos iniciar de forma mirabolante.

Isolados do mundo, os homens jogam xadrez e bilhar. As mexidas no tabuleiro ou as tacadas nas bolas adquirem concomitantemente um jogo de palavras irônicas como uma espécie de aviso ao oponente, pelo indicativo do fio condutor do enredo. Já a veterana atriz mundial não se desgruda da estatueta que tanto a faz lembrar do passado de glórias e aplausos numa época de louros de suas obras antigas consagradas que a levaram à fama. Os ex-famosos tentam preservar aquele universo lúdico dos anos dourados rememorados, embora o marido ainda demonstre ciúmes de um ex-galã que contracenou com ela, deixa fluir os ressentimentos e alguns resquícios de mágoa com seus amigos - roteirista e diretor- que vetaram o papel de protagonista com a sua mulher, mas a força da velha amizade deve predominar na superação das questiúnculas pretéritas. Com um elenco coeso e arrebatador, sem estrelismo, conduzido por uma trilha sonora adequada, A Grande Dama do Cinema é um remake de Los Muchachos de Antes no Usaban Arsénico (1976), de José Martínez Suárez, um dos filmes prediletos de Campanella, lançado antes do golpe militar de 1976 na Argentina. Era uma abordagem dos malefícios destruidores do envelhecimento em consonância com a verdadeira amizade e uma profunda revisitação ao passado melancólico de consequências sentimentais da existência humana, que acabou censurado pelo governo ditatorial.

O desenrolar da comédia é provocante ao mostrar um roteiro complexo pela elasticidade e vigor recheado de surpresas. Satiriza a perversidade inoculada no charmoso mundo de futilidades e ambições sem limites das celebridades de um universo fantástico de sonhos realizados ou frustrados. Uma narrativa que flutua da comédia para o drama, passando pelo suspense psicológico até chegar à tragédia grega no ato final. O espectador acaba embasbacando-se diante da forma da sutil vingança. Um epílogo com métodos de justiça incomum é articulado com astúcia maldosa pelos acuados artistas diante da iminente fúria mercenária dos agressores, como numa grande ficção de intensidade mesclada com uma abastecida realidade de solidão, angústia, dor e humilhação. Sem chocar, por afastar-se do uso de artifícios manjados e ineficazes em realizações inconsistentes que pululam as mediocridades recorrentes cinematográficas, cria-se com escárnio uma atmosfera propícia para uma metafórica análise que recai sobre o descaso aos velhos da classe cultural tão esquecida em um país de perdas sociais inestimáveis. Eis uma reflexão sobre a solidão do presente oriunda de um passado auspicioso e um futuro nebuloso corroído por um sistema revelador de suas nuances de falências e da irresignação do depauperado ser humano abandonado.