quarta-feira, 20 de agosto de 2025

A Prisioneira de Bordeaux

 

Classes Sociais Distintas

Um filme que vem correspondendo à expectativa é a recente realização A Prisioneira de Bordeaux, da competente cineasta francesa Patricia Mazuy, que somente agora estreia nos cinemas brasileiros após exibição na Mostra Internacional de São Paulo do ano passado. Tem uma enorme filmografia, na qual foi assistente de direção em Um Quarto na Cidade (1982), de Jacques Demy, editou Os Renegados (1985), de Agnès Varda, dirigiu os longas-metragens Um Homem Marcado (1988), Travolta e Eu (1993), Saint-Cyr (2000), Basse Normandie (2004), Sport de Filles (2011), Paul Sanchez Está de Volta (2018) e Boliche Saturno (2022), que ganhou cinco estrelas na revista Cahiers du Cinéma. Teve passagem na Quinzena dos Realizadores de Cannes e Locarno. O enxuto e seco roteiro traz as assinaturas da diretora e de Fraçois Bégaudeau e Pierre Courrège, que emprestam credibilidade para a boa recepção de público, bem assessorada pela adequada e não invasiva trilha sonora de Amine Bouhafa e a fascinante fotografia de Simon Beaufils.

A trama de Mazuy foca seu drama familiar em pessoas reais de carne e osso, sendo capazes de mesquinharias, solidariedades e até de gestos generosos. A protagonista Alma Lund é interpretada por Isabelle Huppert, sempre impecável, uma clássica dama do cinema, talhada para este tipo de papel, ao se doar com extremo senso de profissionalismo, como já o fizera em A Professora de Piano (2001), de Michael Haneke. Uma mulher branca de meia-idade, elegante e sofisticada, fruto da elite francesa, que está passando por momentos desafiadores desde a prisão de seu marido, um médico renomado que cumpre prisão ao ser condenado em seis anos por atropelar mãe e filha sem prestar socorro, em estado de alcoolização, morrendo uma delas. Ela é uma mulher solitária que vive numa linda mansão na cidade de Bordeaux. Em um dos dias da visita ao presídio, depara-se na antessala com Mina Hirti, numa atuação magnífica da atriz franco-tunisiana Hafsia Herzi, revelada em O Segredo do Grão, de Abdellati Kechiche. A imigrante é uma mulher árabe que mora com um casal de filhos menores num conjunto habitacional de uma cidade distante e trabalha numa tinturaria para o sustento familiar. Também tem um marido presidiário por assalto à uma joalheria e se surpreende que não poderá fazer a visita naquele dia, por não ter agendada a visita. Entra em completo desespero e finge desmaiar, tendo em vista a distância para um retorno imediato.

No prólogo, a realizadora demonstra uma delicadeza formal na construção da obra, com a câmera voltada para muitas flores coloridas e uma paz aparente naquele cenário solitário. O roteiro dá um pulo e logo mostra Alma dirigindo seu suntuoso automóvel. Compadecida, oferece carona para a desconhecida e oferece sua casa para passar a noite. O encontro fortuito fará um redemoinho na vida daquelas duas mulheres de classes sociais distintas economicamente dentro de um mesmo espaço. Depois de quebrado o gelo inicial, surge uma inspirada amizade, embora improvável entre elas, mas que o destino reservará como uma redenção para ambas, que simboliza serem, ademais, prisioneiras de seus amores. Vivem e se organizam constantemente para incontáveis visitas de afago como duas típicas resilientes companheiras. A narrativa flui com uma significativa dose de suspense e com algumas observações do cotidiano imposto pelas circunstâncias, sem apelar para o pieguismo barato e escapa das armadilhas simplificadoras das questões sociais. Uma está presa ao marido que a despreza, a ignora e constantemente a trai sem nenhum pudor; a outra sofre assédio dos comparsas do esposo trancafiado, que estão sempre atrás de dinheiro e joias remanescentes do crime praticado.

A diretora afasta supostamente a temática contumaz das peripécias dos imigrantes na França. Habilmente não mergulha diretamente no colonizador sendo explorador e os colonizados como vítimas, visto frequentemente em realizações que beiram à demagogia. Ao mesmo tempo, parece não querer bater de frente, optando por uma circunstância de aproximação entre imigrantes e nativos. Cutuca o realismo social sutilmente com suas implicações complexas, apenas nas entrelinhas. Sem os típicos estereótipos advindos, tanto da pobreza como da riqueza, Mina se aproveita da confiança plena da amiga para um plano com astúcia radical de salvação sua e de seus familiares no desfecho para alfinetar a aristocracia, representada pela mulher do inconsequente neurocirurgião. A compaixão e a desonestidade estão presentes, ainda que haja um sopro de libertação das amarras daquela personagem elitizada, infeliz e humilhada, apesar da convivência com os vazios amigos burgueses de alma e coração, quando confundem a imigrante com uma nova governanta do palacete. Há algo verossímil que separa as duas personagens, ou seja, o abismo social intransponível de jamais transpor o limite entre elas. Fica evidente na emblemática cena que há separação de classes como uma forma abjeta de quem detém o poder socioeconômico. A escolha pela leveza na narrativa é enganosa, considerando que a aparência amena esconde a sórdida arrogância mesclada com o distanciamento social implícito na hipocrisia.

A Prisioneira de Bordeaux traz questões pertinentes e indigestas nas entrelinhas do enredo, como a dissimulação marcante que serve para dissecar as estruturas do poder nas sociedades contemporâneas. Além do ponto principal da prisão dos dois homens, há a intrincada interação financeira vista como formas controvertidas de organização dentro da célula máxima das relações humanas. A mulher tentando se impor e se libertar diante da predominância do sexo oposto, ou ainda na rebelião da imigrante contra uma sociedade ainda seletiva. É um questionamento da dominação que irá sedimentar para culminar na abrupta violência do desamor em tempos de solidão pelos fantasmas remanescentes de seus estigmas, fazendo vítimas, principalmente as mulheres submissas em seu meio. A complexidade vai ao encontro do envolvimento da personagem traída no entorno do matrimônio e os desfeitos de caráter do personagem traidor que não acusa a culpa e sequer demonstra ressentimentos alinhados como ingredientes indispensáveis para construir este painel perturbador. O desenrolar da trama prima pela sensibilidade e delicadeza de focar sobre a condição humana feminina, pela pujança estimulante de impor a vontade para uma liberdade inegociável. O intimismo do drama traz situações clássicas do dia a dia bem temperado, para transitar do drama familiar para a separação social de classes e selar como um filme interessante no contexto da história bem urdida de uma cineasta irrequieta para um bom resultado a ser refletido.

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Apocalipse nos Trópicos


 


A Religião na Política

O aclamado documentário intimista de estreia da cineasta mineira Petra Costa, Elena (2012), foi uma grata surpresa no aspecto de beleza estética formal que refletiu a preocupação do cinema autoral, sobre a memória reconstruída pela realizadora que aos sete anos viveu um grande drama pessoal com a morte prematura de sua irmã mais velha, de apenas 20 anos, em Nova Iorque. Havia o sonho convulsivo de tornar-se realidade em ser atriz, tal qual sua mãe imaginava contracenar com Frank Sinatra. Deixou para trás uma infância vivida na clandestinidade, devido à Ditadura Militar implantada naqueles repressivos anos de chumbo. São relatos de dor e de tristeza numa realização melancólica de nunca mais poder ver e ter em seu convívio aquela jovem sonhadora, de uma aspiração ao estrelato, que se desiludiu, deixando a morte levá-la por uma mistura de remédios com álcool. No seu segundo documentário, Democracia em Vertigem (2019), Petra, neta do fundador de uma grande construtora brasileira envolvida na Lava-Jato, legitimou-se para abordar por seu ângulo a crise do país, narrado em off, num tom sombrio, entediado e pessimista com o destino das fragilidades democráticas que cercavam o Brasil. Colocou em lados opostos membros da própria família, no qual os avós defendiam a extrema-direita contrapondo com os pais ativistas de esquerda, num relato sincero e destemido sobre os rachas existentes. Embora haja a identificação pelo engajamento, mesmo assim, o partido do PT sofreu críticas bem consideráveis na sua essência, pela diretora, nos lampejos de imparcialidade ao cobrar uma autocrítica de seus membros.

Em seu terceiro longa-metragem, Apocalipse nos Trópicos, em exibição na Netflix, Petra dirige a assina o roteiro, num mergulho profundo do cruzamento alarmante e perigoso entre a religião e a política brasileira para uma guinada ao regime teocrático consagrado no Irã. Desnuda o movimento evangélico, principalmente o pentecostal, com sua ideologia apocalíptica que revelou no Censo de 2024 o crescimento da religião evangélica no país, que representa 26,9% da nossa população- um aumento de 5,2% pontos percentuais comparado com o Censo de 2010. Mostra o quanto foi fundamental na ascensão de Jair Bolsonaro à presidência e levanta questões sobre a ameaça de uma teocracia nacional. A diretora enfatiza sua visão poucas vezes vista dos bastidores do poder. Acompanha a trajetória do presidente Lula, do ex-presidente Bolsonaro e o influente pastor Silas Malafaia, que mais parece um candidato caricato inspirado nos aiatolás iranianos Ali Khamenei e o sucedido Ruhollah Khomeini, um estrategista político-religioso cujos métodos ecoam no marketing neoliberal. Expõe a crescente influência de líderes religiosos na política brasileira ao traçar a visão funesta do fim de uma era, através de estratégias e decisões para se chegar ao poder. Impossível ficar indiferente diante das consequências de uma crescente guerra ideológica decorrente das dificuldades em afastar o fundamentalismo religioso que atrai o fanatismo e a galopante cegueira, deixando a lucidez se esvair no transe psicológico que se sobrepõe. Ignorar essa premissa poderá levar para repercussões incalculáveis e um futuro drástico sem controle para a permanência democrática.

Uma análise perturbadora e inquietante da conexão da política com a religião se entrelaçando e impactam nossa sociedade que poderá ocasionar novas rupturas, como já demonstrado com pertinência no longa anterior, Democracia em Vertigem. Sem ser definitivo e nem cair em armadilhas recorrentes de obviedades, o filme é narrado na primeira pessoa para retratar em sua construção o intuito de apontar uma extrema-direita brasileira que recebe o apoio incontinenti da comunidade evangélica pentecostal. Embora não conclusivo sobre os rumos da política brasileira, aborda uma proposta com tintas ambiciosas sobre a grande engrenagem religiosa que envolve os meandros intrínsecos e extrínsecos que norteiam o destino do país como um Estado democrático. Adorna com clarividência as fragilidades preocupantes que rondam este painel difuso que poderá rumar para a teocracia. Um diagnóstico significativo e relevante por seu aspecto histórico de um convalescente regime que verga da democracia para o perigoso estado de exceção. Fica o alerta para, quem sabe, uma reforma política estrutural em detrimento de candidatos demagogos em conluio com líderes religiosos oportunistas ditando promessas vazias reiteradamente.

Apocalipse nos Trópicos tem como objetivo principal investigar o aumento do controle exercido pelas lideranças pentecostais sobre a nossa política. Com o aumento expressivo da população evangélica, percebe-se o crescimento da bancada evangélica no Congresso Nacional, bem como a ampliação destes ditos religiosos eleitos para cargos importantes em todas as suas esferas, em especial, a ascensão do governo capitaneado pela extrema-direita, como se tivessem sido ungidos para galgar o poder. Petra retrata diferentes fases até chegar o ápice e o desfecho no ocaso do governo Bolsonaro, como os atos antidemocráticos de 08 de janeiro de 2023, em que fanáticos admiradores do ex-presidente, tentaram efetuar um Golpe de Estado. A visão sobre o conceito de apocalipse não inclui especificamente o fim do mundo, mas o significado grego que a palavra revela algo como oculto, na visão da diretora. A vinculação com redes evangélicas norte-americanas, trazida em cenas teatrais para comercializar bênçãos e vitórias eleitorais pela fé e atingir o topo da materialidade, mostra Malafaia divulgando a retórica do "fim dos tempos". Serve para justificar alianças com a bancada da bala e discursos autoritários ao bradar: “precisamos de homens fortes” e contraditoriamente fala em “defesa da vida”. Incita a violência através da “guerra santa”, num paradoxo com a sua realidade. Prega uma geração "que faça a diferença", ou seja, um postulado neoliberal bem individualista que ele pretende transformar em numa dinâmica para revolucionar a história do país.

Há uma cena reveladora onde Lula admite “o erro da esquerda foi negar a religião”, num discurso que aliena as periferias religiosas, facilitando o ingresso fulminante do pentecostalismo no ópio do povo. O magnífico documentário revela aos poucos um adversário com armas poderosas na defesa de seus próprios interesses. Uma ideologia advinda das pregações dos princípios como a salvação pela graça, através da fé em Jesus Cristo, inspirado na Bíblia como regra máxima de fé e a prática na sacralização da política. Nossas instituições através dos instrumentos de poder, responsáveis pela garantia dos direitos e deveres está calcada em uma resistente democracia construída com muito sangue, lágrimas e mortes oriundas dos tempos de horror pretérito. Mexe com o espectador e o tira da zona de conforto. Eis uma reflexão sobre o passado e o presente de uma nação moribunda institucionalmente. Um filme que é, inegavelmente, um registro histórico que ecoa como um alerta máximo urgente da religião pela crença fanatizada se confundindo com o Estado laico como um apocalipse.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Uma Bela Vida

 









Crepúsculo da Vida

Demonstrando grande e calibrado poder de fogo, continua afiado, corajoso e em boa forma, o cineasta grego naturalizado francês Constantin Costa-Gavras está de volta ao cinema com Uma Bela Vida, título completamente equivocado batizado no Brasil. Baseado no livro Le Dernier Souffle, de Claude Grande e Régis Debrav, que numa tradução livre e mais próxima do original poderia ser O Último Suspiro. Mestre do cinema de denúncia política, entre os quais estão os extraordinários Z (1968), A Confissão (1970), Estado de Sítio (1972), O Quarto Poder (1997), Desaparecido- Um Grande Mistério (1982), o ótimo Amém (2002) que retrata a Igreja Católica e sua proximidade com o nazismo, os bons O Corte (2005) e O Capital (2012), e o penúltimo longa, instigante e revelador Jogo do Poder (2019), inspirado no livro Adultos na Sala: Minha Batalha Contra o Establishment, escrito pelo ex-ministro grego de finanças Yanis Varoufakisb, numa abordagem contundente, nua e crua, dos bastidores da terrível crise econômica da Grécia em 2015. Gavras revelou ao site francês L’Artvues: "O filme é uma espécie de tragicomédia que os gregos viveram e ainda vivem por dez anos e na qual a Europa parece não estar muito interessada”.

A trama aborda a medicina paliativa pouco incentivada nos países, entre os quais está a França. O realizador ressalta que as mais difundidas são as clássicas: curativa e a preventiva. Em muitas vezes são inúteis aos pacientes medicações sem resultado, sendo ótimos para os laboratórios que os fabricam. O médico Augustin Masset (Kad Merad) é o fio condutor da história. Especializado em tratamentos atenuantes para aliviar ou diminuir a dor, no qual não se busca a cura, mas o alívio dos sintomas decorrentes da enfermidade, em especial dos cânceres terminais. Os diálogos filosóficos travados exploram a vida e a morte com o renomado escritor Fabrice Toussaint (Denis Podalydés), que tem a suspeita de uma grave doença, está quase sempre acompanhado da resiliente esposa, Florence (Marilyne Canto). Ajuda e compreende o marido nos encontros para confrontar o medo e a ansiedades sobre o envelhecimento e a possível enfermidade que dá sinais de surgimento lentamente. O profissional expõe e relata minuciosamente os fatos do cotidiano da clínica. São histórias de diferentes pacientes com doenças sem cura: uma rica socialite parisiense (Charlotte Rampling), a mãe (Hiam Abbas) com o último desejo de comer ostras e tomar um vinho Breizh’Cadet à beira do mar, a matriarca que prefere que sua morte assistida seja mantida em segredo, sem esquecer do idoso que só se acalma com a chegada de seu cãozinho de estimação para lhe confortar no último suspiro.

Há algumas similitudes com o drama O Quarto ao Lado (2024), do celebrado cineasta espanhol Pedro Almodóvar, que constrói uma despojada exaltação à vida, com pitadas acre-doce. Mostra os dilemas advindos das suas personagens e os seus direitos de escolhas como pretexto para um filme de questionamento sobre a eutanásia ou a morte assistida. Um tema lancinante e denso, o início e o fim de uma vida. Extremamente controversa e polêmica ao envolver a religião, a ética e os ensinamentos filosóficos e fisiológicos. Costura reflexões e um complexo panorama sobre a fim da existência e o direito de sofrer ou não, diante da doença devastadora com consequências de penúria pela autopiedade. A protagonista quer se despedir da vida com humanismo e dignidade plena. Não vê mais motivos para continuar numa luta inglória diante do corpo em frangalhos pelo tratamento experimental sem perspectiva, mas há o temido fundamentalismo religioso. Já Gavras conduz um drama existencial com sensibilidade arrebatadora e com alguma doçura, com tintas de notável humanismo diante da perda para a transposição ao infinito. No alto de seus 92 anos de idade, capaz de encarar a proximidade com a finitude de frente e sua familiaridade. Sempre com bom humor, disseca com doses homeopáticas nos diálogos a existência para outro plano, mencionando tanto pela filosofia do Espiritismo como do Budismo.

O grande mérito do realizador é ir aos poucos tornando aquele ambiente menos hostil e mais acolhedor para contrastar com o terror do diagnóstico negativo. Uma Bela Vida foca em cada paciente como um universo inteiro de emoções e interesses que irão guiar o escritor no confronto com suas dúvidas recheadas pelo anseio da verdade na revelação de seus exames. A perspectiva dos sentimentos de imortalidade da juventude passada e a motivação para continuar lutando e vivendo são combustíveis para superar os obstáculos, sutilmente colocados como um poema agridoce, como na cena inesquecível de Estrelia (Ángela Molina) ao partir da clínica para sua casa numa carreata com música e uma solenidade sem o vício do pieguismo barato, que somente um cineasta genial poderia construir pelo consagrado formalismo típico e o domínio narrativo peculiar. Mas é fulminante e vai ao cerne da questão, no desfecho providencial na cena, em que a oncologista revela seu corpo mutilado ao personagem central hesitante de um tratamento humanista. Um cineasta que ainda tem lucidez de sobras para contar uma relevante história e emocionar o espectador ao focar uma temática que assusta, mas libertada nas confissões e angústias registradas para purificar a própria alma das eventuais traições do destino.

Um enredo que tem a morte assistida como a temática em foco está acima de qualquer viés doutrinário, sem afastar a vida e sua celebração. A marca registrada de Gavras está presente, como grande observador que lança situações controvertidas, quase que escabrosas, assiste o desenrolar dos fragmentos de um dilema universal, a morte se aproximando pelas confissões e ânsias na espera do dia que virá melancólico ou de libertação com surpresas e abstrações. Fustiga e rasga a alma do espectador numa amostragem sobre o ocaso da existência e as consequências de seus vínculos e relações decorrentes de vidas repletas de contratempos e solidões para decisões tomadas com lucidez pela ausência de perspectiva do ser humano desesperançado. Uma apologia à vida e sua essência delicada, como um hino das pequenas grandes coisas do sentido existencial como um poema profundo da transição da vida para a eternidade. Um mergulho nas razões de saborear o cotidiano, como daquela projetada na sinfonia musical da personagem partindo em carreata. Um drama profundo e delicado através de uma narrativa de magia e ancestralidade. Fica o olhar altruísta lançado pelos sentimentos das transformações emocionais na construção psicológica do sofrimento humano em um epílogo singular nesta obra fabulosa.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Vermiglio- A Noiva da Montanha

 

Fragmentos da Guerra

Vermiglio- A Noiva da Montanha, em cartaz na Sala Paulo Amorim da Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre, foi indicado para representar a Itália no Oscar de Melhor Filme Internacional neste ano. Laureado com o Leão de Prata no Festival de Veneza do ano passado, também concorreu ao Globo de Ouro de Melhor Longa Estrangeiro em 2025. Conquistou sete categorias na Academia Italiana, entre elas estão a de melhor filme, direção, roteiro original, fotografia (Mikhail Krichman), melhor ator (Tommaso Ragno) e melhor atriz (Martina Scrinzi). Conta uma impressionante história de uma rotina na montanhosa Vila Alpina de Vermiglio, no norte italiano, com divisa para a Áustria, alheia em princípio aos horrores do conflito durante os últimos anos da Segunda Guerra Mundial, no inverno de 1944. A aparente paz e serenidade são interrompidas com a chegada de Pietro (Giuseppe de Domenico), um jovem soldado siciliano desertor, que busca refúgio na comunidade e logo vai abalar as relações entre os moradores, principalmente os mais conservadores. A trama se interliga com a história emocionante das jovens irmãs à sombra dos desmandos oriundos nos campos de batalha.

Inspirado em um sonho da diretora e roteirista italiana Maura Delpero, no qual vê seu pai, já morto, recria as circunstâncias da infância através de uma narrativa admirável dos conflitos ocorridos no vilarejo. A realizadora opta por protagonistas mulheres e a maternidade como foco principal, assim como já fizera em seus dois longas anteriores: o documentário Nadea e Sveta (2012) e o ficcional Maternal (2019). Maneja de forma sutil e acolhedora três irmãs compartilhando uma mesma cama. Mostra as intimidades na iminência de um rompimento por fatores desprovidos aos seus desejos. Lucia (Martina Scrinzi) é a filha mais velha do professor do lugarejo, Cesare Graziadei (Tommaso Ragno) e vai se casar, logo trocará aquele espaço pelo de adulta com o futuro marido. Na realidade, são sete filhos e mais um prestes a nascer da mãe, Adele (Roberta Rovelli). Naquela aldeia sem jovens- todos foram lutar no front-, a irmã primogênita da família Graziadei conquista o recém-chegado soldado que aparece carregando o primo dela, Atílio (Fondevila Sancet). Com atuações irretocáveis de um elenco coeso, embora os atores sejam quase todos inexperientes, exceto Ragno, De Domenico e Roberta Rovelli.

Na imensidão daquela bucólica paisagem realçada em seus contrastes, está a limitação dos horizontes femininos, pela interpretação caolha de um universo estritamente machista. A ordem e a organização típica de uma família conservadora estão sob a determinação da mãe. Já o pai, um intelectual, é um homem contrário à violência daqueles tempos sombrios, que prioriza os prazeres culturais, pontuado pela trilha sonora do concerto de violino de Vivaldi. Distante das reclamações da vigilante esposa preocupada com a falta de dinheiro para a manutenção das coisas básicas do lar. Ele determina o destino de sua prole: "Lucia não é garota da cidade", diz o pai; Dino (Patrick Gardner), o mais velho, é tratado com descaso e decepção; Ada (Rachele Potrich), a filha do meio, tacha de limitada na vida escolar, incapaz de se destacar, mas apta pela dedicação e o fervor à devoção religiosa; sentencia que o futuro está com a caçula Flavia (Anna Thaler), pela sua inteligência e perspicácia, curiosa e observadora, é escolhida para continuar os estudos em Trento. Um drama sem exageros melodramáticos, no qual os silêncios preponderam para dar mais legitimidade à essência do cinema em seu todo. A insinuação, a sugestão e as meias palavras são ingredientes que enobrecem com extrema delicadeza as situações, mesmo que conflitadas. Os acontecimentos e os fatos que se sucedem são registrados com uma dose certa de sentimentos em cada cena. Os beijos da irmã que irá se casar vistos pelo olhar de Ada, ainda que com ciúmes e desejos próprios, paradoxalmente pelas pulsões sexuais e as restrições religiosas, são abordados sem histeria ou revanchismo.

O drama de guerra mesclado com situações familiares faz um retrato profundo da redução dos alimentos e provisões básicas para a manutenção de uma família imensa. Delpero retrata com maestria o racionamento da comida fruto da grande guerra mundial. Há questionamentos dos filhos que morrem no front por culpa de quem os empurram para lá, ainda que bem distante do arrebatador discurso feito em tom de protesto na excelente realização Frantz (2016), de François Ozon. Derrotados em campos de luta, resta o saldo de vítimas dos dois lados soando como uma proposta objetiva de um libelo contra o armamentismo e seu espírito belicoso. Estampa-se a dor das perdas e a derrota nos rostos do sobrevivente, um soldado silencioso que foge, pouco fala, distante, como se não tivesse ainda saído do confronto. O encadeamento dos dramas pessoais é uma estratégia para a construção de um discurso de um novo mundo pela criança que nasceu como símbolo de horizontes daquela luz angelical para uma suposta pacificação, como a busca de um trabalho digno da jovem mãe para criar sua filhinha. O casal desfeito representa a essência da tragédia de uma guerra ensandecida pelos homens. Como fio condutor, revela-se outras realidades e expectativas frustradas e semelhantes às suas fantasias.

Vermiglio- A Noiva da Montanha tem todos os méritos pela verossimilhança ao retratar um jovem refugiado que encontra uma noiva para atenuar a perspectiva de fugir de sua realidade sem saída, que será revelada no desfecho. A ambição geopolítica das nações com suas fragilidades e os atropelos exercidos estão nas arbitrariedades dos comandantes pelas vidas como joguetes descartáveis. Os personagens se cruzam em suas peripécias de luta num roteiro flexível e complexo pelo clímax do amor sem tempo para delongas, deixando o fervor do cenário se diversificar. Um lindo drama que funciona ao retratar as individualidades pelas peculiaridades do cotidiano das causas econômicas que pairam da loucura da irracionalidade. O olhar atento de uma realizadora lúcida para contar uma relevante história e emocionar o espectador ao focar o universo feminino dentro da guerra pelas suas confissões e angústias registradas para purificar a alma dos eventuais equívocos do destino. Longe de filigranas de emoções superficiais, faz o espectador refletir, tirando conclusões esperançosas neste longa-metragem contagiante de resgate da vida. Uma elegante construção de personagens com suas características inerentes ao deixar um sopro de esperança germinada no epílogo. São marcantes a sensibilidade e a delicadeza de focar a chaga maligna enraizada no seio de um universo dominado pelos homens deste tema universal sobre a condição feminina, sem pieguismos baratos. Os paradigmas humanos são pontuais, no qual faz com que as cenas tenham o caráter pela igualdade de gêneros como símbolo da resistência feminina. Um olhar altruísta lançado pelos sentimentos das transformações emocionais na construção psicológica nesta extraordinária obra, em um dos melhores filmes do ano.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Manas

 

Meninas Abusadas

A promissora cineasta Marianna Brennand estreia com grande sucesso em seu primeiro longa-metragem de ficção, Manas. Antes realizou os documentários Francisco Brennand (2012) e Danado de Bom (2016). Com um elenco impecável, retrata com lucidez, sensibilidade e contundência, um tema pouco abordado: o abuso com o tráfico de meninas. Um filme denso, que tem arrancado elogios em festivais estrangeiros, como dos críticos internacionais que o descrevem como visceral, honesto e tecnicamente primoroso, tendo já conquistado mais de 20 prêmios. Em Cannes, a diretora foi premiada com o Women Iá e foi laureada com o Director’s Award na mostra paralela Giornate Degli Autori do Festival de Veneza, e segue acumulando troféus por onde passa. O enxuto roteiro foi assinado por Marcelo Grabowsky e Felipe Sholl; tendo como diretor da fascinante fotografia Pierre de Kerchove, na captura de belas imagens do cotidiano apresentado em planos próximos das ações no mangue ensolarado, também responsável por Retrato de um Certo Oriente (2024), de Marcelo Gomes, e Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014), de Daniel Ribeiro. Tanto o cultuado Walter Salles quanto os realizadores franceses Jean Pierre e Luc Dardenne apoiaram a obra, participando como produtores associados deste filme nacional coproduzido com Portugal. Há alguma chance, embora escassa, de representar o Brasil no Oscar de 2026, diante da concorrência dos pesos pesados premiados Agente Secreto (2025), de Kleber Mendonça Filho e O Último Azul (2025), de Gabriel Mascaro.

Essa temática do abuso contra menores já foi anteriormente trabalhada com forte conotação de denúncia no livro de estreia da escritora gaúcha Morgana Kretzmann, Ao Pó, vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Estatísticas mostram que 80% dos casos, o agressor está dentro de casa: pai, padrasto, tio, avô, vizinho e amigo próximo, no qual quatro meninas de 13 anos são estupradas no país a cada hora. A história é muito atual destes crimes que tiveram repercussão, quando a ex-ministra de Damares Alves, à época, titular do Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, afirmou em 2019 que crianças eram traficadas para o exterior. Porém, não comprovou nada e sequer determinou uma investigação séria. Somente soltou palavras ao vento, e acabou processada pelo Ministério Público Federal, por propagar informações inverídicas e reforçar estigmas sobre a região. Este fato não está inserido no drama, que foi inspirado nos casos de exploração e abuso sexual infantil na Ilha do Marajó, no Pará. Mostra a crueldade que uma adolescente sente na carne ao amadurecer diante de suas idealizações e sonhos ruírem ao ficar refém em um ambientes abusivo e negligente. Ao perceber que o futuro não lhe reserva muitas opções, decide confrontar a tosca engrenagem severa que rege sua família e as mulheres da comunidade.

Tratar o tema com profundidade e ao mesmo tempo expor a perversidade desse tipo de transgressão, sem maniqueísmos, é meritório. Uma dura realidade que precisa ser debatida com mais vigor sobre as meninas ribeirinhas. A realizadora realça que o silêncio não é ficar neutro, é cumplicidade, tendo em vista que a violência sexual contra crianças e adolescentes é um dos crimes mais subnotificados no Brasil. Manas conta uma história através de uma narrativa na qual a garota Marcielle (Jamilli Correa- a atriz estreante entrega uma performance reveladora por uma atuação contagiante), uma jovem de 13 anos que enfrenta a brutalidade dentro do microcosmo familiar e a exploração sexual predominantes em sua aldeia. Está inserida em um meio machista dentro da periferia da comunidade em que mora, numa casa de palafita com o pai, Marcílio (Rômulo Braga), sua mãe, Danielle (Fátima Macedo), e três irmãos. Frequentam com afinco uma igreja, sendo mostrado o avanço exponencial destes templos evangélicos. Sofre com a perda da sua irmã mais velha que partiu para bem longe após arrumar “um homem bom” que circulava pela bacia hidrográfica. Mais experiente com a vida, começa a ter uma percepção da realidade e vê os sonhos sumirem cada vez mais naquele ambiente marcado por dor e sofrimento.

A diretora retrata a pobreza, remetendo para a insegurança alimentar do dia a dia, quando a personagem central se vê obrigada a compartilhar a mesma cama para dormir com o pai incestuoso. A mãe, também abusada na infância, incentiva a menina a vender açaí nas balsas, tão logo chega a puberdade, passando a ser explorada sexualmente pelos tripulantes. Um verdadeiro inferno, pois em casa está desamparada de quem deveria proteger. Os assédios são recorrentes num verdadeiro suplício. Brennand mostra méritos quando aborda sem apelar para cenas explícitas, optando por sugestões que intensificam ainda com mais fervor, sem expor os corpos nus das atrizes adolescentes. Toques e beijos maliciosos são mostrados com sutilezas para demonstrar a implícita importunação sexual imposta, tratada em tom permissivo por assediadores pedófilos próximos à vítima. Só resta salvar a irmã mais nova das taras vindas de dentro do inóspito lar ou dos barqueiros oportunistas com suas masculinidades tóxicas. Confrontar a engrenagem contaminada ao redor e as próprias mulheres submissas da comunidade não é tarefa fácil, até surgir a policial Aretha (Dira Paes), personagem inspirada em duas pessoas reais: o delegado Rodrigo Amorim e a ativista Marie Henriqueta, no combate à exploração sexual e o tráfico infantil na Ilha do Marajó.

Eis um fabuloso drama familiar e social com um enredo aparentemente simples e uma narrativa consistente, sem deixar de ser contemplativa, que no desenrolar se mostra com grande profundidade. Às vezes, poética, como o caderno que a protagonista faz para a irmã, o livro da escola, e os ensaios para a apresentação de dança; em outras, melancólica, que remete à tortura psicológica num intenso clímax de suspense agonizante. A mãe grávida novamente, e sua filha que vende peixe na balsa para conseguir dinheiro, simbologia da prostituição iminente, não escondem a vontade de ir embora dali como fruto do desespero. A colheita e o respectivo processamento do açaí contrastam com o aprendizado da espingarda para a caça, arma que irá impactar no epílogo pelo desfecho inesperado, na esperança de uma adolescência um pouco mais feliz e saudável em meio aos igarapés amazônicos. A irracionalidade está na cultura repleta de pessoas pedófilas, doentias, de personalidades carregadas de instintos animalescos brutais ao ultrapassar o marco da civilidade por uma série de delitos que testam a própria dignidade humana. Um mergulho relevante nas questões sociais de abusos com o consequente tráfico infantil. Manas é uma reflexão do contexto de um painel de medo, miséria e o assíduo terror psicológico pela barbárie que torna o enredo amplamente complexo na essência do cinema. Pontua com amplitude as relações dos fragmentos da dura ruptura social de seres humanos sensíveis e sonhadores, ainda que vilipendiados pela estupidez criminosa.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Homem com H

 

Um Astro Rebelde

Homem com H se justifica como uma das melhores realizações que estrearam neste ano em que o cinema brasileiro atinge o ápice meritório de obras indiscutíveis. Fica ao lado de outros dois excelentes documentários indicados ao Oscar de 2024: Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você (2022), de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, e do admirável Meu Nome é Gal (2023), das diretoras Lô Politi e Dandara Ferreira. Eis uma cinebiografia extraordinária sobre a ascendência aos píncaros do estrelato de Ney de Souza Pereira, mais conhecido como Ney Matogrosso, de 83 anos. Retrata a vida e a obra necessária do icônico cantor, intérprete, dançarino, ator, diretor brasileiro, e ex-integrante do revolucionário grupo Secos & Molhados. Uma fascinante história contada com a suntuosidade que marca o biografado nesta trajetória de uma das carreiras mais longevas da música brasileira. Interpretado com intensidade, muitos olhares desafiadores, silhueta delgada, os inconfundíveis trejeitos, nos detalhes da postura, por um exuberante Jesuíta Barbosa que arrasa e atinge o apogeu com o maior papel de sua carreira, ainda que tenha dublado as canções na pele do cantor multifacetado. Atua com uma impressionante dramaturgia, superando as expectativas. Não é fácil encarnar um astro gigante. Demonstrou vigor físico e psicológico impecáveis para uma construção despojada com o gestual marcante e intimista do emblemático artista.

O realizador enfatiza a infância marcada pelo conflito com o pai (Rômulo Braga), um militar rígido que assevera “não criar filho para ser artista”, contrapondo com a bondosa, mas subserviente mãe (Hermila Guedes). Muitos conteúdos emocionais da sua jornada e de sua família são expostos ao espectador. Um filme audacioso e com muita emoção retrata Ney Matogrosso na essência como artista e ser humano, quase um documentário, tal a fidelidade. Com uma trilha sonora excepcional, são mostradas canções de bom gosto como "nunca vi rastro de cobra nem coro de lobisomem, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, porque eu sou é homem", e ainda canta o poema Rosa de Hiroshima, de Vinicius de Moraes. Bem contextualizadas estão as cenas apimentadas de liberdade sexual, que poderiam chocar os mais conservadores por serem impudicas, mesmo não sendo apelativas, pois da genitália humana há apenas sombras. Há o utópico quartel da Aeronáutica como um ambiente homoerótico sem repressão. Lá, soldados conversam como se estivessem flertando com o desejo proibido naquele meio austero de homens. A epidemia da AIDS é outro ponto colocado com dor e muita tristeza diante das vidas ceifadas. Outra assertiva do longa está na abordagem do regime militar que propiciou a infausta censura na efervescente política brasileira sob o amparo ditatorial do golpe de 1964, com a infame promulgação do AI-5.

O diretor e roteirista Esmir Filho, que tem em sua filmografia Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), Alguma Coisa Assim (2017), Verlust (2020), mostrou muita harmonia e imparcialidade nesta sua realização atual. Longe de ser uma obra chapa-branca, embora tenha sido autorizada. Passou em revista com sutileza a vida pessoal, artística e a todos os caminhos trilhados do renomado artista protagonizado. Logo se percebe a desenvoltura e o senso crítico de Ney como uma característica atrelada na personalidade forte e rebelde de jamais se subordinar ao sistema autoritário. A começar pelo pai opressor, símbolo de um regime tirano; também dos censores do regime de exceção; passando pelos empresários sanguessugas e submetidos bovinamente à censura prévia, sendo responsáveis pela sua saída abrupta do promissor grupo musical Secos & Molhados. As sequências que envolvem o artista que não se deixa sufocar mostram sua disposição e a vontade expressa de buscar novos rumos sem amarras. Um filme para todas as gerações, que humaniza o cantor em momentos difíceis pela árdua superação que resulta no profundo desabrochar pela metamorfose em direção ao renascimento até a glória almejada.

Cabe ressaltar que a música servia de fresta para a libertação das amarras de uma juventude anestesiada por um regime antidemocrático que assolava os brasileiros naqueles anos de chumbo, para deixar na tela como reflexão aquele período sombrio, onde as canções mais famosas de sua trajetória são mostradas dentro de um contexto social perigoso para o artista, como bem retrataram os documentários Chico-Artista Brasileiro (2013), de Miguel Faria Jr., e Elis (2015), de Hugo Prata. Cenas de rara beleza, com enquadramentos inspirados, uma cenografia no ponto, uma bela fotografia, boa montagem e o dinâmico roteiro. O diretor prima pela sensibilidade e as sutilezas sugeridas com algumas revelações, explora os relacionamentos que marcaram a vida de seu protagonista. Primeiro, Cazuza (Jullio Reis), aqui em uma espécie de coadjuvante, tipificado pelos exageros, pela perspectiva de um grande amigo, parceiro e mostrado como um grande amor. Aparece em seus momentos mais delicados e tempestuosos, carrega um ingrediente muito importante no enredo. O mesmo acontece com o médico Marco de Maria (Bruno Montaleone), outro parceiro de mais de uma década num vínculo de muita paixão. Uma abordagem do relacionamento contagiante e fiel até o desfecho pela morte em decorrência do HIV. São passagens que simbolizam as perdas na vida do biografado com delicadeza e uma beleza com essência advinda da dor dilacerante.

São criados bons paralelos entre o homem e o bicho em Homem com H, título oriundo de um clássico imortalizado por Ney, no qual se mostra feroz e terno, desde criança tinha uma estreita relação com a mata, como se fosse parte dela, repleto de instintos, sem se afastar da realidade. Embora o epílogo faça uma homenagem um tanto desnecessária do próprio artista cantando, quase fora do contexto, tendo em vista que o filme já prestou um grande tributo com dedicação e esmero, o resultado é meritório. Transmite uma reflexão para se entender e compreender este astro tão relevante e autêntico, que quebra regras e paradigmas sociais obsoletos e preconceituosos ao criar as suas para uma vida própria com dignidade, quando luta com tenacidade contra os obstáculos. Ousado no corpo despido para ter a tão obsessiva soberania de sua performance e valorizar o espírito libertário de uma alma sem aprisionamento. Um filme para ser degustado com as saborosas melodias da marca brasileira com cenas marcantes de diálogos significativos que não se deixa levar por pieguismos baratos. O resultado não poderia ser melhor para deleite do espectador nesta imersão que beira ao sensorial pelos caminhos das tensões advindas de um período em que se passava de iminente ameaça aos artistas. A história contada faz estes registros na turbulência ditatorial em sincronia. Um passeio pela trajetória de fatos verídicos que marcaram uma existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, sem os estereótipos dos grandes ídolos vistos em várias realizações, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma história recheada de futilidades das celebridades numa narrativa intensa e arrebatadora de um importante legado nesta cinebiografia singular.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Oeste Outra Vez

 

Desconstrução Machista

O cineasta Erico Rassi tem grandes méritos para o seu segundo longa-metragem, Oeste Outra Vez, o grande vencedor do prêmio de Melhor Filme, Ator Coadjuvante (Rodger Rogério, 81 anos) e Direção de Fotografia para André Carvalheira, no último Festival de Gramado. Buscou a desconstrução do machismo ao esbanjar sobriedade, formalismo e firmeza na inspiração do conto Duelo, de Guimarães Rosa, como um resgate do antigo cangaço, mesclando com os clássicos do mestre John Ford, entre os quais estão Rastros de Ódio (1956) e No Tempo das Diligências (1939). A transformação dos personagens fortes e mitológicos de John Wayne para um mundo contemporâneo de homens fragilizados, pobres de espírito e da força física decadente. Já no trabalho anterior, Comeback: Um Matador Nunca se Aposenta (2017), com Nelson Xavier no papel de um matador profissional aposentado que tenta retomar as glórias do passado. Utilizava para narrar o relato de um matador de aluguel incapaz de se aposentar, mas que volta à ativa. Retroage em suas referências estéticas ao buscar os planos abertos magníficos, tornando seus anti-heróis ainda menores, perdidos entre a luz e a sombra no meio que estão inseridos, como fizera Sergio Leone em sua trilogia Por Um Punhado de Dólares (1964), Por uns Dólares a Mais (1965) e Três Homens em Conflitos (1966), todos interpretados por Clint Eastwood.

Agora, no seu último longa-metragem premiado, o sertão de Goiás serve de cenário novamente ao ser ambientado na Chapada dos Veadeiros; o filme anterior foi rodado no município de Anápolis. Um retrato melancólico de homens brutos aparentemente, mas problemáticos no contexto emocional na sintonia com a razão. Por isto, as mulheres que amam loucamente acabam abandonando seus parceiros constantemente. A amargura se somatiza com a solidão e resulta em uma grande tristeza. Não aguentam as lidas da casa, deixando louças sujas empilhadas nas pias, lixos amontoados pelos cantos, banheiros imundos, iluminação precária, casebres de tijolos à vista caindo por falta de manutenção, maltrapilhos com aspectos fétidos, num cenário de aridez no qual convivem, acabam se revoltando, e partem para brigas violentas entre eles. Demonstram que sequer sabem se cuidar. A história é contada com bons artifícios conhecidos no meio daquele universo masculino tosco. O realizador, sem abusar de perseguições recorrentes em obras menores, opta pela ausência de tiroteios, mas ironiza o mito do macho alfa viril na disputa com pistolas cuspindo balas sem direção.

A trama mostra dois homens brigando pela mesma mulher, Luiza (Tuanny Araújo), que passa rapidamente em cena como um meteoro fruto da paixão. Totó (Ângelo Antônio, em excelente atuação) e Durval (Babu Santana), dois personagens patéticos inseridos num faroeste típico brasileiro no escaldante sertão. Cada um em seu carro se enfrentam em poeirentas estradas de chão batido. No roteiro dinâmico, eles vivem assim, mesmo que ela se recuse a ficar com os pretendentes. Os diálogos não passam de formalidades, tendo em vista que pretendem resolver com tiros por encomenda. Jerominho (Rodger Rogério) é um lendário ex-pistoleiro, que gosta de ser chamado de capanga, acaba sendo contratado por Totó para eliminar o rival. Durval dá o troco ao contratar dois matadores de aluguel com o mesmo intuito: Antonio (Daniel Porpino) e o colega Domingos (Adanilo Reis). Uma dupla educada, com métodos próprios, aparentemente éticos em suas conversas reservadas. Trocam confidências e são sinceros entre eles, mas não revelam tudo. Uma antiga paixão atormenta um deles, que quer vingança contra o companheiro de sua ex-mulher, até que há uma decisão pouco civilizada, mas bem típica dos valentões com uma arma na mão.

A perseguição mantém um jogo de burlar uns aos outros e beira ao tragicômico, buscando esconderijos, após tiros fracassados de antagonistas que correm por todos os lados, numa clara e evidente vulnerabilidade dos machões. Totó e seu comparsa procuram refúgio na tapera de Ermitão (Antonio Pitanga), outro homem amargurado pela perda da companheira, que vive no silêncio de seus dias de imensa solidão, mas agora terá, pelo menos, a companhia do inconformado sobrinho angustiado. O diretor retrata com profundidade rara as sutilezas e simbologias por trás de personagens psicologicamente debilitados emocionalmente, mas com as desavenças sendo arquitetada no contexto diário de aspereza, desde que abandonados. São gentis e educados por vezes, entre eles, como a frase recorrente de “não, senhor” para atenuar os arroubos de hostilidade pontuados no enredo. Os resquícios de um sistema machista arcaico que ainda segue ditando para a vingança fria e sombria como contingência de ceifar vidas. Embora a narrativa defina as mulheres como coadjuvantes, pelo contrário, elas estão sempre no protagonismo para os homens atordoados pelas dores do ressentimento no imenso vazio diante da ausência feminina.

Há na trilha sonora cativante que sintetiza os amores perdidos com Eu Também Sou Sentimental, na potente voz de Nelson Ned sendo executada com eficiência, como uma mola mestra condutora que vai ditando o clímax das cenas. Os cenários são grandiosos e caracterizadores do gênero, onde os cavalos, barcos e carros estão sincronizados pelas frondosas árvores, montanhas, rios, ranchos, botequins, e por vezes revelador de um novo dia, magistralmente captados nas lentes do talentoso Carvalheira. Cada detalhe, movimento da câmera, luz, fotografia e o figurino estão harmonicamente distribuídos com primazia e colocados em seus lugares exatos, pontuais e com fidelidade. Segue o estilo estético dos grandes clássicos, embora com as limitações e características inerentes por não serem hollywoodianos, tais como: Os Imperdoáveis (1992), de e com Clint Eastwood; Rio Vermelho (1948), de Howard Hawks e Arthur Rosson; Meu Ódio Será Sua Herança (1969), de Sam Peckinpah; Os Brutos Também Amam (1953), de George Stevens; e mais recentemente Bravura Indômita (2010), dos irmãos Ethan e Joel Coen; Relatos do Mundo (2020), de Paul Greengrass e Ataque dos Cães (2021), de Jane Campion.

O epílogo é revelador, quando os homens estão reunidos no botequim bebendo para afogar as mágoas. Uns dançam como zumbis tontos, outros jogam bilhar para vencer e esquecer, numa catarse de sentimentos oriundos dos grandes amores perdidos, naquele ambiente melancólico. Deixam transparecer uma consciência de seus equívocos tolos de uma masculinidade rústica e demodê. Tardia ou não, parece haver algum lampejo de lucidez, mesmo estando solitários e distantes de um mundo mais civilizado e luminar. Servirá como uma espécie de aviso de que o perigo está rondando diante das iminentes consequências. O silêncio persistente que fascina torna-se uma notável fantasia de uma falsa alegria de gestos e olhares que falam. Progressivamente revelam as carências decorrentes daquelas aparências contraditórias fortemente contextualizado pelo conflito do mitológico macho dominador com sua aludida presa fêmea. Rassi traz à baila e coloca em xeque a masculinidade tóxica para mirar seu foco nas fraquezas retumbantes das relações e os seus vínculos afetivos sendo demolidos com delicadeza, através de pequenos detalhes, diálogos e simbolismos, no qual os desejos decorrentes de instintos animalescos são sufocados no desfecho com emoção e digno deste fabuloso faroeste brasileiro redentor.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

A Batalha da Rua Maria Antônia

 

Uma Noite Histórica

Vencedor do prêmio de Melhor Filme na Première Brasil do Festival do Rio de 2023, A Batalha da Rua Maria Antônia, com direção e roteiro de Vera Egito, produção de Manoel Rangel, Egisto Betti e Heitor Dhalia, tendo as participações especiais do jornalista e biógrafo Fernando Morais e as atrizes Clara Buarque e Valentina Herszage. Pega carona no estrondoso sucesso de Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles, que emocionou na narrativa sobre Eunice Paiva durante a ditadura militar no Brasil, ambientada em 1970, ao mostrar as atrocidades no enredo com o objetivo de alertar o espectador, principalmente os jovens que não viveram aquele período de exceção, e o futuro incerto de todos carregados pela intolerância política quando coloca em lados opostos os membros da família brasileira. Já o docudrama político de Vera Egito cumpre satisfatoriamente seu objetivo. Apresentado em 21 planos-sequência, numa referência aos números de anos que durou o regime, em contagem regressiva. Filmado em película 16 milímetros em preto e branco com um clima de época, para desglamourizar, caso fosse fotografado em cores. Contribuem para manter a agonia do estado de apreensão e de urgência no decorrer da trama e mergulhar especificamente nesse episódio marcante resgatado e pouco conhecido do período obscuro da Ditadura Militar, ocorrido dois meses antes do famigerado AI-5.

O longa acompanha a jornada de um jovem universitário de filosofia que se envolve nos intensos conflitos ideológicos da época. Revela a rotina e os bastidores deste tema inédito e rico em conteúdo ao retratar os tensos momentos da noite de 02 de outubro de 1968, quando estudantes e professores do movimento estudantil de esquerda da Faculdade de Filosofia da USP enfrentam os ataques do Comando de Caça aos Comunistas que se aliaram com grupos conservadores da Universidade Presbiteriana Mackenzie do outro lado da rua, no bairro Vila Buarque, em São Paulo. Não foram todos os alunos que aderiram aos anticomunistas. Os universitários da USP estavam envolvidos na realização de uma eleição para a União Nacional dos Estudantes (UNE), programavam passeatas e reuniões frequentes, com poucos momentos de lazer para namoros e algumas cenas de ciúmes. Um professor denunciava a direita da Mackenzie e um outro, alcaguete, contava o que acontecia na Faculdade de Filosofia para a polícia do regime. A universidade particular é mostrada através de um prédio cercado de tapumes em uma alegoria da ameaça constante da violência pelos xingamentos da retórica recorrente contra os ditos comunistas. Ali, os alunos estão sempre com atitude de ataque, se mostram agressivos todo tempo e usam terno e gravata, contrapondo com os estudantes da faculdade pública com roupas informais.

A cineasta não conseguiu filmar nos lugares originais da Rua Maria Antônia, o que é uma perda significativa. Acabou usando como locação outras construções, como o prédio onde atualmente funciona o Museu das Favelas e algumas ruas circunvizinhas, como a Floriano Peixoto e a Roberto Simonsen, ao lado do Pátio do Colégio. A diretora focou sua narrativa pelo ponto de vista dos estudantes da USP contra a direita e a ditadura, deixando o lado contrário apenas com imagens distantes e distorcidas. Embora não invalide a obra, ficou a desejar pela falta de profundidade e de isonomia. Porém, aprofunda com méritos o cotidiano da ação política contra o regime autoritário, na qual as aulas pouco interessavam, com salas praticamente vazias. O intuito e o objetivo estavam alicerçados nas formas de como reagir a um iminente ataque dos oponentes em conluio com as forças policiais aliadas ao regime de exceção. O tumulto começou por conta de um pedágio que os alunos da USP cobravam na rua, sendo atingidos com um ovo podre arremessado por um aluno da Mackenzie. O confronto explode com gritos, coquetéis molotov, pedras, paus e bombas caseiras que são jogadas de lado a lado. São quase vinte e quatro horas vividas com a paixão da juventude dos anos 1960, em defesa de um ideal, diante da iminência da invasão dos militares e policias ao prédio da USP.

Embora não esteja no roteiro no filme, a história registra que o governador Abreu Sodré determinou o cercamento do local pela polícia. O saldo do confronto foi do aluno secundarista José Carlos Guimarães de 20 anos, que estudava no Colégio Marina Cintra, morto por um tiro na cabeça, três feridos e 30 presos. Segundo a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, a vítima foi alvejada por um membro do CCC, o alcaguete policial chamado Osni Ricardo. Estudantes de outras escolas, como os do Colégio Sion, também se encontravam na região, inclusive a filha do governador Sodré. O confronto se seguiu até que o prédio da USP fosse incendiado. O acontecimento influenciou a transferência dos cursos da USP do campus da Rua Maria Antônia para o campus Armando de Salles Oliveira, no bairro Butantã, cuja obra já estava em andamento. A mudança para a Cidade Universitária desagregou o núcleo do movimento estudantil e também desestabilizou o local que recebia outros movimentos combatentes da ditadura militar. Segundo a revista O Cruzeiro, de 09 de outubro de 1968, estiveram presentes no conflito Boris Casoy (jornalista e âncora da Rede TV), João Marcos Monteiro Flaquer, João Parisi Filho, Raul Careca e Souvenir Assumpção Sobrinho.

A Batalha da Rua Maria Antônia tem uma boa estrutura para uma dramaticidade equilibrada e sem grandes retóricas sensacionalistas, mas com um apreciável tecnicismo para evitar os arroubos de grandes cenários. Uma história contada com sensibilidade e uma visão sobre a ditadura sobrepondo os efeitos da liberdade democrática numa temática muito atual diante do avanço do autoritarismo. Os estudantes da USP, com a camisa ensanguentada da vítima fatal, tomaram as ruas de São Paulo e entraram em choque com a repressão, tendo o jovem José Dirceu, hoje ex-deputado, entre outros, liderado o movimento, segundo jornais e revistas. A realizadora revisita um dos períodos mais nebulosos da história estudantil brasileira, retratando as sombrias e abjetas repressões de uma época a ser lembrada para mostrar as feridas abertas de fantasmas que ainda pululam como lembranças nefastas. A luta pela democracia e pelos direitos esfacelados, tendo como simbologia o ataque aos estudantes, soam como resistência ao sistema truculento com resultados sempre nefandos e contrários ao estado de direito de um país civilizado. Eis um interessante registro histórico do pior período político brasileiro contemporâneo. Significativo e relevante por seus aspectos em um regime vergado da democracia para o estado totalitário.

terça-feira, 11 de março de 2025

Anora

 

Conto de Fadas Agridoce

A comédia romântica com ingredientes de pitadas de sarcasmo e alguma dosagem de bom humor Anora foi a vencedora do Festival de Cannes no ano passado. Voltou a ser a dona da noite no Oscar deste ano, abocanhando cinco estatuetas: melhor filme, direção, atriz, roteiro original e montagem. Escrita e dirigida por Sean Baker, que tem em sua filmografia realizações menores, de pouca expressão, tais como Red Rocket (2021), Projeto Flórida (2017) e Uma Estranha Amizade (2012). Possivelmente nem o próprio cineasta aguardava tanto sucesso em tão pouco tempo, sendo oscarizado discutivelmente como Melhor Diretor, para ele que sempre foi um realizador menor. Também a atriz Mikey Madison no papel da protagonista que empresta o nome ao título do longa-metragem, mas que se apresenta como Ani. Certamente não esperava ser recompensada com a láurea de Melhor Atriz no Oscar, superando as favoritas Fernanda Torres, sem qualquer patriotada, foi disparadamente superior as suas concorrentes pela atuação antológica em Ainda Estou Aqui; e Demi Moore, sempre candidata e nunca leva nada, embora desta vez não dê para se dizer que houve uma grande injustiça, pois sua interpretação em A Substância foi apenas protocolar.

A trama foca numa profissional do sexo norte-americana, que dança e faz companhia a homens carentes de afeto e luxúria, inspirada em Uma Linda Mulher (1990), sendo estrelado por Julia Roberts e Richard Gere. Que diferença! A atuação de Madison está de acordo com sua personagem jovial e ingênua, não decepciona, mas também não encanta. Mostra boa naturalidade ao interpretar a garota de programa que trabalha numa boate com muitas luzes neon, xingamentos, disputas com as colegas, na busca de clientes de um mundo com realismo, na região do Brooklyn, nos Estados Unidos. “Eu estou sempre feliz”, diz Anora, como uma voz ressonante de pura ironia ou de uma alienação completa no mundo em que vive. Ali há muita solidão, pouca compreensão e um total distanciamento dos membros familiares em completa distopia. Como num conto de fadas onde a Cinderela atinge o ápice da felicidade ao tirar um prêmio monumental que a torna independente ao conhecer um príncipe encantado rico que se apaixona pela menina pobre. O encontro ocasional irá mudar sua vida em uma noite normal como outras quaisquer, mas que jamais será repetida. A garota descobre que pode ter sido premiada pelo destino ingrato até aquele momento. Acredita que encontrou o seu verdadeiro amor e que não precisará mais passar pelas humilhações na casa noturna.

O enredo anda rápido e logo o filho de um oligarca, o herdeiro russo Ivan (Mark Eidelshtein), em férias nos EUA, é o cliente que ela encontrou por acaso. Depois de muito sexo, apenas com intervalos para o garoto jogar videogame, ele acaba pedindo ela em casamento. Tudo muito acelerado, como a vida do casal e os impulsos do cotidiano. Mas nada é para sempre nos melodramas de realizadores que precisam achar saídas imediatas. O matrimônio sofre uma ameaça contundente dos pais do rapaz que entram em cena para desaprovar a relação. Um dos motivos alegados seria o fato da atual nora ter um passado nada compatível para os padrões rígidos de uma Rússia austera. Truculentos capangas são enviados à terra do Tio Sam para acabar com a lua de mel dos pombinhos. Cenas previsíveis se sucedendo, até que um armênio, por mais uma ironia do destino, consegue colocar em ordem a bagunça festiva dos jovens apaixonados. Uma alegoria das brigas entre os norte-americanos com os russos, mas tudo de maneira folclórica, de pouca inspiração, por vezes descambando para uma comédia pastelão. Primeiro com a fuga, e depois na busca incessante do herdeiro arrependido pelos serviços sexuais proporcionados ou coagido pelos pais para se separar. Nem ele sabe a razão.

O longa-metragem retrata no desenrolar uma tempestade diante da realidade opressora de uma família ligada ao tráfico de armas, pela desigualdade social. Mas como ponto positivo do roteiro está o completo descaso com os jovens, que salva o filme da derrocada. A ausência de carinho e amor são marcantes na vida do rapaz, com uma idade mental de uma criança ou de um pré-adolescente. Paga para ter prazer e um pouco de atenção, tendo em vista que seus pais separados só se uniram para desmanchar seus raros momentos de felicidade. A garota sequer sabe onde estão seus pais, num diálogo revelador com o futuro marido. Menciona apenas uma irmã que tem por hábito tirar seus namorados. Não há vínculos afetivos familiares, deixando estampada uma solidão devastadora numa típica juventude da geração Z. Deixa transparecer uma total falta de objetivo, tendo seus anseios e o futuro voltados para o universo da internet e redes sociais como salvaguardas, divide-se entre o mundo virtual e o real. Ele parece um zumbi à procura de emoção e afeto constantemente. Ela simboliza uma Cinderela deslumbrada num ambiente de luxo e ostentação.

Em Anora tudo soa como um mero discurso vazio, que não convence diante de temas relevantes e nada singelos. Faltou se debruçar nas importantes situações que acabam se perdendo no emaranhado de incoerências com diálogos minguados de aprofundamento ao ficar distante de um realismo de nossa sociedade. A relação amorosa fora do desnível social também não tem um mínimo de profundeza, que logo desaparece do cenário. O desfecho está mais para um prenúncio de novelão recheado de situações corriqueiras dos surrados clichês hollywoodianos, como a intervenção da decidida mãe, a submissão do inseguro pai no contexto de uma narrativa com pouca magnitude. Eis uma comédia romântica que flutua para o melodrama agridoce, com mais sal e menos açúcar. Abusa dos estereótipos ao abordar temáticas num mosaico arcaico de múltiplos temas. Perde a oportunidade de mergulhar em questões essenciais para reflexão do espectador. Há ausência de uma criação efetiva para um epílogo simplório, no qual há uma flagrante preocupação com a bilheteria como na redenção do símbolo da truculência. Uma obra comum e de pouca elevação neste misto de ingenuidade com esperteza apresentado no qual a previsibilidade de forma direta e didática torna-se um trunfo menor pela falta de inspiração e muita superficialidade.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Flow

 

Alerta Climático

Vem da Letônia, um pequeno país situado no Mar Báltico entre a Lituânia e a Estônia, a leste da Rússia, o vencedor do Oscar deste ano na categoria longa de animação. Dirigido por Gints Zilbalodis, que também assina o roteiro em parceria com Matīss Kaža,. Flow teve um orçamento muito baixo, aproximadamente 3,7 milhões de dólares. Concorreu e superou outras produções gigantes do gênero, como Divertida Mente 2 (2024), de 200 milhões de dólares; Moana 2 (2024), orçado em 150 milhões; Robô Selvagem (2024), em torno de 78 milhões; e Homem-Aranha: Através do Aranhaverso (2023), bateu nos 100 milhões de dólares. O filme começa com o um simpático gatinho preto sendo perseguido por uma matilha de cachorros e outros animais silvestres em disparada de algum movimento estranho na atmosfera que afetou o meio ambiente. Parece o fim do mundo, coberto apenas por vestígios da presença humana, como belas edificações abandonadas e monumentos suntuosos sem a presença de sequer uma pessoa por perto. O solitário felino mia desesperadamente em busca de socorro, mas depois se cala, enquanto é perseguido. Logo se depara com seu domicílio devastado por uma grande enchente que tem proporções destruidoras, como se fosse um tsunami que inunda tudo pela frente.

O protagonista enfrenta diferentes ameaças na sua sobrevivência, até que encontra refúgio em um barco, uma espécie de Arca de Noé, ou seja, a clássica referência de Gênesis, na Bíblia, que narra como Deus ordenou a Noé que construísse uma arca para salvar sua família e animais do dilúvio. Enquanto tenta fugir do infortúnio, outros animais se aglomeram na embarcação, como o cachorro bobão e empolgado em busca de paz; a enorme ave de rapina serpentário com suas garras afiadas; o primata lêmure com suas atitudes pouco convencionais ao recolher tudo para armazenar; e a dócil capivara sonolenta com demonstrações de pura alienação da realidade, sofre com seu sobrepeso para fugir, acaba causando cenas de suspense e tensão no precipício do qual tenta se safar. Mais adiante surgirá a enorme baleia que terá papel importante no inesperado epílogo, além dos multicoloridos peixinhos, que irão propiciar os inusitados mergulhos do gatinho para abastecer e alimentar seus companheiros, num gesto fraternal e de muita solidariedade, que demonstra empatia no qual muitas vezes falta nos ditos civilizados seres terrestres.

O passeio forçado que o barco povoado dá ao navegar com os animais em pânico, por paisagens místicas e transbordantes na busca da bonança. São os desafios perigosos para uma adaptação de um novo mundo em ebulição num cenário apocalíptico após a tormenta. Um alerta do nosso ecossistema atingido, decorrente das geleiras derretendo, das florestas com desmatamentos e ardendo em brasa. A natureza pune e se vinga das atrocidades que acompanham uma aventura nas ruínas de um planeta inundado e destruído. O filme mostra a ausência dos predadores humanos, restando os sobreviventes animais à deriva e se ajudando na tênue esperança de cada um. Encanta os espectadores ao mostrar um enredo impactante com boa proposta e sobriedade. Mesmo de forma simples, sem grandes retóricas, há o alerta climático, especialmente para a extinção de vidas, tanto no reino animal como dos terrestres solenemente alijados do contexto do diretor. Há o brado ecológico no sinal lançado de que muita coisa tem que ser feita, para se evitar uma tragédia ainda por vir sem precedentes, numa ironia fina e mordaz, contada com alguma ternura e situações típicas do cotidiano dos bravos bichinhos.

Flow faz um libelo contra a destruição de nosso planeta ao colocar na tela uma visão amarga da realidade presente ao flagrar com precisão as reações dos animais em apuros na luta pela sobrevivência. Uma narrativa magnífica dos problemas no qual o realizador dá asas à imaginação ao transformar uma situação de uma catástrofe ambiental numa envolvente história para o nosso futuro. Há significativa mudança de rumo para um surrealismo sutil numa construção alegórica que beira por vezes a inverossimilhança para perceber alusões e referências ao nosso tempo. Eis um dos grandes momentos do gênero, quando se opta pela ausência de diálogos, apenas com o gato miando, os cães latindo, sem personagens de clichês imitando os humanos, nesse aspecto há uma sintonia de universalidade. As exceções são dos sons dos rugidos do próprio meio ambiente convulsionado, valorizados pelas fascinantes imagens que soçobraram da tragédia planetária. Méritos para os ausentes discursos e recursos panfletários, embora haja contundência neste manifesto sobre a fúria devastadora da revolta implacável da natureza.

Uma aventura distópica que transmite um sinal vermelho urgente de preocupação pelos sentimentos e emoções dos personagens animais, sem aquele ranço das caricaturas recorrentes nas produções da Disney e da Pixar. O realizador mostra que todos têm um dever único de união, apesar de suas diferenças, caso contrário, a morte é iminente. São situações marcantes de um realismo incomum nos maneirismos das diversas espécimes, onde o olhar diz muito, com suas peculiaridades inerentes que envolvem a vida de um gatinho e sua desesperada luta para sobreviver após a grande calamidade. As avalanches das águas, os violentos ventos, as chuvas torrenciais, situações estas bem familiares de nossos tempos atuais, retratam um universo climático inóspito prestes a explodir, diante do cenário selvagem apresentado. Tudo conduz para um desfecho catártico e significativo do conjunto de elementos do mundo natural advindos dos animais decorrentes do ecossistema, diante dos desmandos e irracionalidades coercitivos do egoísmo e da intransigência de nossos governantes avessos ao diálogo conciliador. A resiliência felina surge como metáfora da luta de uma pequena esperança em uma minguada confiança no fim do túnel. Um futuro a ser debatido para se tentar salvar o planeta como recompensa de um período de muito sofrimento. Mesmo que pela fantasia criada pelo cineasta na relação do protagonista ao interagir com os outros animais e suas plurais diferenças. As referências, independente de espécie, ficarão ali marcadas pelo tempo e pelas adversidades inevitáveis nesta admirável obra com tintas fortes da tragicidade, passando pela solidariedade e resistência.

quarta-feira, 5 de março de 2025

Um Completo Desconhecido

 

Ascensão de um Gênio

Empolgante com muito frenesi e emoção à flor da pele, politicamente incorreto, assim é o recorte de 1961 a 1967 da cinebiografia Um Completo Desconhecido, que conta a vida e a carreira artística do singular cantor, compositor, pianista, escritor, ator, pintor e artista visual Bob Dylan. Interpretado por Timothée Chalamet (conhecido por Duna, Duna 2, Wonka, e Me Chame Pelo Meu Nome), ganhador do prêmio SAG Awards, entrega uma impressionante atuação com amadurecimento, mostrando-se um ator versátil em mais de um tipo de gênero. Encarna incrivelmente os maneirismos do astro, reproduzidos de maneira notável ao segurar o violão no palco com o uso constante de cigarros sempre fazendo a inseparável companhia nas apresentações performáticas. Dá vida e força ao seu personagem carismático que ecoa nos shows e na atribulada vida, tanto pessoal como profissional. Demonstra invejável vigor físico e psicológico para uma construção despojada que atinge a exuberância com sua voz rouca, os trejeitos, o olhar hipnotizante, a afinação, sem tentar imitar, com o gestual e o visual característicos do biografado. Não poderia ser outro o intérprete para uma desenvoltura melhor no papel que se dedicou com fibra. Teve de aprender a cantar, tocar violão e principalmente manusear a icônica gaitinha de boca para evocar o inconfundível músico no cenário folk e rock.

Nascido em Minnesota em 1941, nos EUA, neto de imigrantes judeus russos, influenciou diretamente grandes nomes do rock americano e britânico dos anos de 1960 e 1970. Já na adolescência aprendeu sozinho piano e guitarra. Dylan explodiu com as canções Blowin’in the Wind (1963) e The Times They Are a Changin (1964), que se tornaram verdadeiros hinos dos movimentos pelos direitos civis. Ferrenho crítico da Guerra do Vietnã, com letras que incorporaram uma ampla gama de natureza política, social, filosófica e literária. Desafiou as convenções das regradas música pop através da contracultura onde o folk era majoritário, no auge de popularidade nas décadas de 50 e 60. Abraçou a causa das tensões dessa época na busca da liberdade contrastando com a indústria e seus próprios fãs. O filme mostra o astro e toda sua admiração pelos ídolos roqueiros Johnny Cash (Boyd Holbrook), Little Richard e Buddy Holly. Também admirava o pioneiro da música de protesto Pete Seeger (Edward Norton), e expressa uma idolatria pelo lendário cantor folk Woody Guthrie (Scoot McNairy), a quem foi visitar no hospital em Nova Iorque, já com a saúde debilitada.

Um Completo Desconhecido merecia ter melhor sorte na premiação das oito indicações ao Oscar, tendo saído injustamente de mãos vazias. O diretor e roteirista James Mangold traz em sua filmografia Garota Interrompida (1999), Johnny e June (2005), Os Indomáveis (2007) e Logan (2017). Acerta ao realizar a cinebiografia num recorte dos anos de 1960 com o jovem promissor de apenas 19 anos, que desembarca de um ônibus em Nova Iorque em busca da ascensão e do estrelato. Transita entre pontos de relevância ainda desconhecidos do passado. Mostra a importância da musa inspiradora e namorada Sylvie Russo, baseada em Suze Rotolo (Elle Fanning). Ela amargura cenas de ciúmes na dificuldade de lidar com a renomada cantora Joan Baez (Monica Barbaro, conhecida pelos papéis em Top Gun: Maverick, At Midnight e The Cathedral). A atriz está magnífica na pele da cantora com o magnetismo de seu olhar, mostrou talento e carisma da personagem que foi companheira pessoal e profissional, embora com uma relação de forma atribulada na carreira do biografado. Dividiu com Sylvie a vida amorosa de Dylan com seus vacilos e hesitações do cotidiano no triângulo, mas que não o impediram de partir para o topo das paradas. O enredo foca a trajetória dos pequenos bares, salas de concertos, culminando na inovação com o rock and roll elétrico no Festival Folclórico de Newport em 1965, mesmo com a controvertida apresentação, foi um dos cruciais momentos transformadores da música do século XX.

Eleito em 2004 pela revista Rolling Stone o sétimo maior cantor e o segundo melhor artista da música de todos os tempos, ficou atrás somente dos Beatles. A canção Like a Rolling Stones (1965) foi escolhida como a melhor de todos os tempos de um dos maiores fenômenos da história da música. Vendeu mais de 125 milhões de álbuns, recebendo, em 2012, a mais alta honraria civil dos EUA, a Medalha Presidencial da Liberdade. Primeiro e único artista na história a ganhar o Nobel da Literatura em 2016, o Pulitzer, o Oscar, o Grammy e o Globo de Ouro. Não é uma cinebiografia definitiva, sequer dá toda esta riqueza de detalhes e fatos mencionados. É para sorver as canções fascinantes de Dylan, e também degustar as canções de Baez, especialmente quando a dupla canta It Ain’t Me Babe (1964). O resultado não poderia ser melhor para deleite do espectador, fã ou não, nesta imersão que beira ao sensorial nos 140 minutos que passam voando. Há uma reflexão daquele período turbulento nos EUA, com os assassinatos do presidente John Kennedy, em 1963, e do líder ativista e pacifista Martin Luther King, em 1968, na defesa dos direitos civis e da causa dos negros, na qual as canções são mostradas dentro de um contexto social conflitado.

O epílogo não apresenta grandes surpresas pirotécnicas, mas tem um desfecho digno de um comovente filme com cenas marcantes de diálogos significativos que não se deixa levar por pieguismos baratos. Tem um clímax que funciona muito bem através de um elenco coeso e com atuações encantadoras, em especial, da dupla central, com um alto nível de refinamento que solidificam as atuações como admiráveis, e sem reparos. Um filme para todas as gerações, que humaniza a posição do protagonista numa época difícil. Há uma árdua superação que resulta no profundo desabrochar pela metamorfose rumo à fama. Sem os estereótipos dos grandes ídolos vistos em várias realizações, sendo outro ponto importante a ser destacado. Outro ingrediente meritório está no cardápio apresentado de belos hits e algumas figuras folclóricas apresentadas. Advindas das inquietações constantes, há uma quebra de paradigmas de comportamentos, cultura, subversão e evolução neste registro histórico da sincronia importante do legado do artista. Um passeio pela trajetória de fatos que marcaram a existência de um gênio entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma história recheada de futilidades das celebridades numa narrativa intensa e arrebatadora.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Emilia Pérez

 

Melodrama Insosso

O diretor francês Jacques Audiard ganhou a Palma de Ouro em Cannes com o drama social Dheepan- O Refúgio (2015), no qual fez uma abordagem seca do multiculturalismo e da triste sina dos imigrantes na velha Europa invadida por causa dos conflitos internos de países do terceiro mundo dominados pelas execráveis ditaduras. Ambientou sua trama num condomínio de classe baixa da periferia dominado pelos traficantes numa gris e sorumbática Paris, contrapondo com as belezas naturais dos glamourosos cafés, bistrôs e do romantismo da Cidade Luz. São situações clássicas retratadas na imigração por um olhar atento do cineasta que tem em sua filmografia os razoáveis Nos Meus Lábios (2001), De Tanto Bater o Meu Coração Parou (2005) e Paris, 13º. Distrito (2021). Com o perturbador O Profeta (2009), trouxe uma visão profunda dos grupos mafiosos e da criminalidade escancarada dos guetos islâmicos que fervilhavam naquele ano, bem como o preconceito com o mundo árabe. No instigante Ferrugem e Osso (2012), focou no corpo mutilado de uma adestradora de orcas para aprofundar uma reflexão sobre as lutas de uma selvagem violência de classes sociais tensionadas pelos estigmas entre pares excluídos da sociedade.

Agora retorna com o polêmico Emilia Pérez, eivado de declarações racistas e xenófobas da atriz principal entre 2020 e 2021 no antigo Twitter. Todos os diálogos e canções são em espanhol, numa coprodução da França com o México, mesmo assim representa os franceses na disputa pelo Oscar deste ano. O filme tem uma direção dispersiva e com um minguado interesse cultural das mazelas mexicanas onde é ambientado. Incrivelmente conseguiu 13 indicações: Melhor Filme, Melhor Filme Internacional, direção, atriz (Karla Sofía Gascón- primeira atriz trans indicada ao Oscar), atriz coadjuvante (Zoe Saldaña), roteiro adaptado, fotografia, edição, maquiagem, som, música original e canção original (El Mal e Mi Camino). Talvez leve alguns prêmios técnicos na melhor das hipóteses. Nas principais categorias é quase que impossível desbancar o brasileiro Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles, por ser infinitamente inferior nas categorias de Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e de melhor atriz em que Fernanda Torres tem uma atuação antológica.

Audiard pega carona na onda dos musicais e segue a mesma estética arriscada que optou Todd Phillips em Coringa: Delírio a Dois (2024). Gênero que teve seus momentos de glória nos tempos de Hollywood, dos cultuados Sinfonia de Paris (1951, de Vincente Minnelli, Cantando na Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen, e Os Guarda-Chuvas do Amor (1964), de Jacques Demy. Recentemente, o jovem realizador Damien Chazelle também se aventurou com La La Land: Cantando Estações, (2016), num clímax de romantismo exacerbado e um banho de nostalgia em um tributo aos velhos clássicos musicais, mas pobre em conteúdo. A realização tem uma estrutura de lógica fácil e lucrativa voltada para o streaming. Bem diferente do competente cineasta canadense Denis Villeneuve que explorou os limites amorais do ser humano no estupendo drama policial Sicário- Terra de Ninguém (2015), que abordou a triste e dolorosa realidade de barbárie da divisa dos EUA com o México, com cercas de arames como se fosse uma guerra entre os dois países, expondo as vísceras de uma situação traumática dos excluídos da sociedade, pelo prisma da CIA ao preparar uma audaciosa operação para deter o grande líder de um cartel de drogas mexicano.

A trama do diretor, que também é um dos roteiristas, mostra Rita (Zoe Saldaña), uma advogada qualificada e insatisfeita com sua carreira em uma firma que encobre grandes crimes. Encontra uma boa oportunidade de mudar de vida, pois entende que está desperdiçando seu talento. Quando recebe uma proposta de um poderoso chefe de um cartel, Manitas, que deseja se aposentar, sumir, e deixar para trás sua identidade criminosa. Porém, o plano é muito mais complexo do que se imagina. Além de fugir das autoridades, pretende se metamorfosear em uma nova pessoa, ou seja, numa mulher que possivelmente sonhou ser e que terá o nome de Emilia Pérez (Karla Sofía Gascón). A ajuda da profissional é importante nesse processo de transformação para que ele liberte-se de sua vida pregressa num plano de alto risco e, talvez, fazer o bem ou, pelo menos, tentar se redimir das atrocidades causadas. O realizador faz um retrato pouco elucidativo sobre os imigrantes diante da burocracia e da xenofobia estampadas para se regularizarem, no qual foi magnificamente enfatizado em Dheepan- O Refúgio.

O filme não teve boa recepção no México por tratar de assuntos como feminicídio, violência policial, pessoas desaparecidas, e principalmente o narcotráfico, de maneira artificial. A bizarrice começa quando o magnata do tráfico pede para que a advogada sustente a hipótese de suicídio. Segue com Rita andando pela cidade e cantarolando numa atmosfera sem consistência em que as pessoas ficam ouvindo atônitas: “Amemos as mulheres, perdoemos os homens, abracemos a miséria”, enquanto há um coro de faxineiras que responde em versos: “a derrota da má-fé” e "o triunfo do amor". A ironia e a revolta contra a hipocrisia soam como um mero mergulho num discurso vazio, que não convence ninguém diante de temas profundos e nada singelos. O diretor sequer se debruça na importante situação da troca de sexo. Também o feminicídio é tratado com uma distância sem elevação, que em nada contribui para um tema tão crucial e recorrente de nossos dias atuais em que as mulheres são vítimas diariamente. Outra temática valiosa é a dos desaparecidos, que também se perde no emaranhado de assuntos ao ficar distante da realidade. A relação amorosa no mesmo gênero também não tem um mínimo de aprofundamento, deixa transparecer apenas alguns olhares furtivos que logo desaparecem do cenário.

Manitas quer se tornar Emilia Pérez para não deixar pistas para os rivais ou deseja ser mesmo uma mulher? Eis uma questão que envolve pessoas transgênero. Fica sem resposta e é tratada com absoluto descaso, embora a canção com a palavra vaginoplastia sugira a segunda opção. Já sua esposa, Jessi (Selena Gomez), imagina que está viúva e protegida na Suíça com os dois filhos pequenos. De volta ao México, os dois personagens principais são surpreendidos por uma mãe aflita que procura o filho. A virada do confuso roteiro está mais para um novelão mexicano previsível recheado de situações corriqueiras dos surrados clichês de Hollywood, como a explosão do carro e a guarda judicial das pobres crianças, do que uma obra com magnitude. Existem momentos mais solenes, e outros nos quais o espectador fica em dúvida se é pra rir ou silenciar. Emília Pérez é um melodrama musical insosso que abusa dos estereótipos ao abordar diversos temas num mosaico anacrônico. Desperdiça a oportunidade de aprofundar questões essenciais, deixando a violência brutal do narcotráfico com milhares de mortos passar em branco em tom musical, sem uma resolução contundente, com ausência de realismo e um desfecho de solução simplória com ausência de criatividade nesta realização rasa.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

A Semente do Fruto Sagrado

 

Regime Paranoico

O festejado iraniano Mohammad Rasoulof é o diretor da pequena obra-prima Não Há Mal Algum (2020), vencedor do Urso de Ouro e do Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Berlim. Não pôde receber o prêmio porque estava proibido de sair para o exterior. Em 2010, foi preso, enquanto trabalhava ao lado do cineasta conterrâneo Jafar Panahi, sendo condenado a um ano de detenção e impedido de deixar seu país desde 2017. Foi detido novamente em 2022 ao criticar as autoridades que reprimiram os manifestantes na cidade da Abadan no trágico desabamento de um edifício com dezena de mortos. Mesmo com todas as dificuldades de filmar em sua terra natal, realizou este instigante drama sociopolítico em coprodução com a Alemanha e a República Tcheca para abordar uma temática pouco explorada, que é o perfil dos verdugos que aplicam a pena de morte. Retratava a escolha de quatro homens para serem os carrascos, divididos em quatro episódios. Não importava a decisão tomada, pois iria transformar os aspectos psicológicos dos executores e seus relacionamentos pessoais, bem como a dinâmica da vida de cada um deles. Direta ou indiretamente, uma história fragmentada e retumbante na complexidade da essência cinematográfica esmiuçada para uma aprofundada reflexão aterradora dos grotescos julgamentos dos não alinhados ao regime.

Rasoulof dirigiu outros importantes títulos: O Crepúsculo (2003), A Ilha de Ferro (2005), e Adeus (2011), no qual levou o prêmio de melhor diretor no Um Certo Olhar do Festival de Cannes. É dele também Manuscritos Não Queimam (2013) e A Man of Integrity (2017), obra que foi premiada como melhor filme da seção Um Certo Olhar. O realizador, que também assina o roteiro, retoma o tema das execuções sumárias com os conflitos e dramas familiares em A Semente do Fruto Sagrado, título que remete a uma figueira na qual as raízes crescem e sufocam outras árvores, em uma magnífica metáfora do regime teocrático ditatorial imposto no Irã. Recebeu o prêmio especial do júri em Cannes, foi laureado pela Federação Internacional de Críticos, premiado pelo público no Festival de San Sebastian, na Espanha, e apontado nos EUA como melhor título internacional, além de ser indicado pela Alemanha para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Internacional. Pega o gancho da turbulência política de Teerã desencadeada pela morte da jovem Mahsa Amini, detida pela Polícia da Moralidade em 13 de setembro de 2022, pelo simples fato de deixar alguns fios de cabelos mechados aparecerem, com imagens reais captadas por celulares na época. Houve muitos protestos na capital iraniana com a bandeira feminista de “Mulheres, Vida e Liberdade” diante da estúpida declaração governamental de que a moça morrera de infarto, embora a causa tenha sido o bárbaro espancamento por infringir o código de vestimenta feminina ao usar incorretamente o hijab, o véu islâmico que cobre a cabeça, o pescoço e as orelhas das mulheres muçulmanas.

A filmagem foi clandestina entre dezembro de 2023 e março de 2024 no Teerã com financiamento alemão. O diretor e as atrizes que interpretaram as filhas fugiram do Irã numa saga de 28 dias de percalços até a Alemanha. O casal de atores que interpretou os pais ainda está no país. A trama aborda Iman (Missagh Zareh), um juiz de instrução promovido recentemente no Tribunal Revolucionário apenas para assinar as sentenças de morte sem conhecer ou ler os motivos das penas dos acusados. Não poderia questionar o processo sumário, para em troca receber um polpudo salário, apartamento luxuoso para a família composta por sua esposa submissa Najmeh (Soheila Golestani), a filha universitária Rezvan (Mahsa Rostami) e a jovem adolescente Sana (Setareh Naleki), porém agravado pela presença de Sadaf (Niousha Akhshi), uma estudante agredida pela polícia que ali estava escondida. O protagonista, que inicialmente mostrava alguma resistência ao novo cargo para qual fora promovido, aos poucos adere aos ensinamentos e normas ditadas pelo regime autoritário que segue rigorosamente os preceitos religiosos. Inexiste espaço para questionamentos sobre alguma perseguição política contrária ao conjunto de leis baseadas no Alcorão. Enfrenta uma batalha no microcosmo familiar contra as próprias filhas que o questionam, e depois, com a anuência da mãe que muda sua posição. Elas se sentem mais fortes e acabam se encorajando para lutar contra o pai paranoico e visivelmente com esgotamento mental, na pele do juiz executor que sofre pressão em sua nova posição, na qual estão os eventos que o cercam e o empurram para um estado de vigilância constante.

A implosão familiar e os esfacelamentos das relações transformam a dinâmica harmônica em uma crise doentia sem precedentes, que se estabelecem quando a arma pessoal some misteriosamente. Segredos serão revelados com efeitos corrosivos pela mania de perseguição do personagem central. A desconfiança recai sobre todos os membros do núcleo da residência. Iman adota regras rígidas e medidas extremas que rapidamente minam os laços afetivos já fragilizados. Levará todos ao limite de um delírio de loucura, fuga e insubordinação com impactos psicológicos que deixam sequelas existenciais com resultados devastadores diante de algumas escolhas. Principalmente na metamorfose de um pai em uma figura patética pela sordidez. A narrativa começa ao melhor estilo dos realizadores iranianos, entretanto, se esvazia do meio do filme em diante, quando opta por outros caminhos que pouco dialogam com o prólogo. Dá uma guinada e parte para uma intensa perseguição na estrada, que remete, sem brilho, ao suspense O Encurralado (1971), de Steven Spielberg. No epílogo, tenta reeditar o clímax inesperado ao buscar subsídios no clássico labiríntico de terror O Iluminado (1980), de Stanley Kublick, transportando o público a uma sequência sem saída, porém bem frustrante, com resultado pouco inspirado e nada impactante.

A Semente do Fruto Sagrado é um drama que flutua do documentário para o suspense ao retratar a claustrofóbica vida de uma família dentro de uma residência com portas e janelas fechadas. Há alguma semelhança estética com o extraordinário drama brasileiro Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles, embora seja inferior. Mesmo assim, apesar das derrapadas, não deixa de ser uma obra importante de denúncia das arbitrariedades praticadas principalmente contra as mulheres. Explora com méritos as questões de opressão política, religiosa, moral, e um judiciário parcial, sem legitimidade, no Irã contemporâneo. Cabe ressaltar o papel atuante das redes sociais em revelar verdades ocultas. Conecta o choque de gerações exposto, na qual os mais jovens estão na batalha pela liberdade em um regime repressivo numa atmosfera asfixiante que reflete o aprisionamento físico e emocional dos personagens. A violência toma o lugar da disciplina e a brutalidade supera a busca de diálogos esclarecedores. O registro meritório do realizador está nos efeitos do rosto de uma filha no interrogatório, feito por um suposto amigo no papel de um burocrata indiferente ao medo da menina ameaçada. As distorções são transformadas em rituais permitidos por leis sem direito a ampla defesa. Distante de maniqueísmos e superficialidades banais, reforça a agressividade desde o começo pelo sistema dentro de um contexto essencialmente autoritário com métodos evidentes de despotismo sem limites que contrariam os direitos humanos universais de uma civilização.