Os Gêmeos
Com procedência da República Tcheca em coprodução com a Eslováquia, Melhor Enlouquecer na Natureza é um dos bons filmes apresentados nesta 49ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Baseado no livro homônimo de Aleš Palán, que inclui várias histórias sobre os eremitas de Sumava na região de montanhas em um parque nacional localizado no sudoeste da República Tcheca, na fronteira com a Alemanha e a Áustria. Nascido em Ladce, atual Eslováquia, em 1983, o diretor eslovaco Miro Remo também assina o roteiro em parceria com o autor do romance. Estudou na Academia de Cinema da Bratislava, e seu filme de conclusão de curso, Arsy- Versy (2009), premiado no Festival de Sheffield. Entre seus outros longas estão Comeback (2014), Richard Müller: Nespoznany (2016) e At Full Throttle (2021). Em entrevista à Variety, o cineasta disse que “Passamos 60 dias com os irmãos ao longo de cinco anos, e comecei a sentir que os animais deles também estavam se comunicando conosco. A maior vantagem era que tudo era possível naquele projeto. Só precisávamos superar nosso medo de convenções”. Foi vencedor do Globo de Cristal de Melhor Filme no Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary.
O enredo tem seu foco total nos irmãos gêmeos Franta e Ondra (interpretado também pelos gêmeos František Klišík e Ondřej Klišík). Os protagonistas são dois eremitas inseparáveis que vivem completamente afastados da civilização naquelas montanhas com suas fantasias e idiossincrasias. Eles estão mergulhados na imersão da natureza, enfrentando a tensão entre o anseio por aventura e a necessidade de segurança. A rotina pacífica e harmoniosa que dividem começa a sofrer abalos quando as diferenças entre eles se tornam evidentes: enquanto Franta anseia por liberdade e aventura; Ondra se agarra à segurança das coisas que não mudam. Essa dupla existência se parte como um espelho, diante das vontades distintas. Há uma dinâmica como uma simbiose entre os dois que compartilham uma vida pacífica na natureza, mas cujas vontades distintas começam a causar pequenos conflitos. No silêncio da paisagem que os rodeiam, se desenha um delicado drama de separação, reconciliação e reencontro. Uma fábula humana adulta de devaneios sobre o que permanece quando os laços que unem começam a fraquejar.
Um painel excêntrico e afetuoso dessa convivência fora da realidade do mundo daqueles personagens barbudos, ásperos e quase míticos envelhecendo juntos. Ora nus no meio do mato, ou discutindo sobre a morte e a própria existência. Eles estão rodeados de vacas, cães, galinhas e árvores. Sonham e discutem filosofia de vida, brigando, bebendo e rindo como se o tempo tivesse parado. O realizador mescla o real e a poesia com um humor sarcástico oriundo da convivência entre algumas cenas com delicadeza e o grotesco. Uma vaca narra algumas cenas, lambe a vasta barba em clima afetuoso, deixando fluir um tom mágico com situações irônicas ao fazer menções contundentes sobre os seus tutores, até que um touro bravo chamado de Tolstói investe contra um dos irmãos, tendo como consequência a perda do antebraço. Há algum encanto na observação do dia a dia dos irmãos sem que haja um definitivo julgamento. Alterna momentos de silêncios contemplativos com risos de preocupação com o futuro. Ou seja, quem vai morrer primeiro e deixar aquela natureza com seus fascínios próprios, captada pelas lentes do diretor de fotografia Dušan Husár, que transforma a floresta em personagem, capturando a luz fria e seus reflexos pelo som dos pássaros, do vento que corta os diálogos entre eles e a iminência da solidão de quem ficar ali por último.
O filme segue uma temática semelhante ao islandês A Ovelha Negra (2015),dirigido por Grímur Hákonarson, que retratou de forma comovente a relação estremecida de dois irmãos septuagenários, que não se falavam por 40 anos, correspondiam-se por mensagens em bilhetes escritos à mão, sendo levados ao destino por um cachorro, uma espécie de pombo-correio. Mas surge uma violenta determinação do governo para a eliminação de todo o rebanho da família, após ser constatada uma doença contagiosa nas respectivas fazendas deles e de alguns vizinhos criadores de ovinos. A iminente falência do sustento familiar faz uma reflexão literal do desenrolar da trama o modo de sobrevivência de um povo, que poderia sugerir e remeter para uma alegoria do país decorrente da avassaladora crise financeira mundial de 2008, que abalou várias nações europeias e nas Américas, deixando um rastro de desemprego como poucas vezes visto. Tanto o longa da Islândia como o da República Tcheca proporcionam uma rara oportunidade de se conhecer alguns estilos de vida diferentes daqueles habituais que desfilam nas telas dos cinemas, como os aspectos pitorescos arraigados de uma cultura pouco difundida.
Melhor Enlouquecer na Natureza se mostra bem atual ao mostrar em uma única cena fora do meio rural a premiação de um dos protagonistas recebendo a láurea pela liberdade e a luta dos povos. No discurso de agradecimento, o homenageado não perde tempo e alfineta com revolta os arroubos autoritários de Vladimir Putin, visto como um novo Adolf Hitler contemporâneo, pela arrogância, pouca sensibilidade e virulência com os países vizinhos. Embora menor que Ovelha Negra, apresenta alguns equívocos de roteiro e edição sem invalidar a obra, tem como ponto alto os diálogos ásperos marcantes dos irmãos broncos, por vezes românticos e saudosistas na aldeia com seus aspectos poéticos contrapondo com a dureza da vida cotidiana. As brigas e provocações soam como combustível para se amarem e se beijarem como característica de gêmeos inseparáveis do instinto da natureza humana. Um não vive sem o outro, pois a solidão seria devastadora sem um deles que filosofa “A morte não existe, o que existe á e a vida”. Uma realização que marca pelos diálogos e a fotografia, sendo fundamental pelo sentido existencial do grande amor e ternura fraternal e a relação indissolúvel naquele lugarejo bucólico. Sobra afeto para uma energia humana diante da provável perda de uma das referências do vínculo familiar que se romperá, mas sempre permanecerá o sentimento de carinho entre os gêmeos.

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