Regime Opressivo
Digno e fortíssimo representante do Iraque no Oscar do próximo ano, coproduzido com os EUA e o Catar, The President's Cake, traduzido do inglês para O Bolo do Presidente, com direção e roteiro de Hasan Hadi em seu primeiro longa-metragem, que cresceu no sul do país durante a guerra e, ao longo dos anos, trabalhou com jornalismo e produção. Provavelmente o melhor filme desta 49ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Uma fábula moderna adulta mesclada com drama social sobre uma criança encarregada de fazer um bolo em homenagem ao aniversário do ditador Saddam Hussein numa celebração com uma festa cívica obrigatória. Despertou reações entusiastas no Festival de Cannes, tendo vencido o Caméra d’Or, prêmio de melhor filme de estreia, e do prêmio do público da Quinzena dos Cineastas. O cinema iraquiano é, sobretudo, associado a nomes como Abbas Fahdel com Retour à Babylone (2002) e Homeland - Iraq Year Zero (2015); Mohamed Al-Daradji, premiado em Berlim com Filho da Babilónia, (2009); e Mohamed Shukri Jameel conhecido por King Ghazi of Iraq (1993).
O longa foi ambientado nos anos 1990, em meio à guerra e uma gigantesca falta de comida, sob o regime totalitário de Saddam. Conta a triste e instigante história de Lamia (Banin Ahmad Nayef em uma antológica atual infantil), uma menina de nove anos que tenta escapar da tarefa, mas acaba sendo escolhida para fazer um agrado ao déspota na comemoração de sua passagem de ano, determinada por ele mesmo para que todas as escolas do país fizessem um bolo em sua homenagem. Com poucos recursos e medo de ser punida, embarca em uma jornada culinária em uma cidade próxima de seu povoado na busca de ingredientes como ovos, farinha de trigo, fermento e açúcar. A protagonista está sempre acompanhada da severa avó (Waheed Thabet Khreibat), do colega de sala de aula Saeed (Sajad Mohamad Qasem), e um galo vermelho de estimação como fiel escudeiro, cobiçado por todos os aviários da região. O filme constrói um magnífico painel de opressão e subserviência interna pelo regime autoritário; e externa, pelas bombas que caem ao redor oriundas do ataque na guerra contra os Estados Unidos da América.
O cineasta mostra sem concessões uma sociedade que está numa angustiante miséria na qual tudo gira em torno do todo poderoso governante. As fotos e os porters do tirano estão espalhadas por todos os lados e ninguém ousa contrariá-lo, sob pena de ser eliminado ou sofrer torturas nos porões. O diretor do colégio segue à risca os dogmas e orientações do governo ditatorial ao realizar um sorteio duvidoso com tintas de simulação entre os alunos. Um deles é o menino Saeed em que o pai foi torturado, tendo que trazer frutas frescas. A menininha terá que fazer um bolo saboroso e bem feito. Os sorteados são avisados duramente de que seus familiares serão castigados exemplarmente caso não cumpram as regras do jogo. A saga de Lamia vira um verdadeiro inferno dantesco, mesmo que acompanhada do coleguinha e da avó, da qual foge ao ser oferecida como objeto para uma mulher suspeita de prostituição. Durante o calvário, a idosa fica doente e vai parar num posto de saúde imundo e sem recursos. Enquanto isto, os dois menores cometem pequenos furtos para tentar obter os ingredientes e as frutas.
A peregrinação intensa é chocante e de puro realismo para o casal pré-adolescente oriundos de uma aldeia pobre em que o único meio de transporte é o barco. Eles andam pelas ruas da cidade interiorana, sofrem tentativas de abusos, são trapaceados por golpistas que querem sempre um algo mais. Um painel vigoroso e sórdido de uma sociedade machista composta por homens sem escrúpulos que não respeitam minimamente as mulheres. Pululam personagens horrendos, como o tarado que abusa de uma grávida prestes a entrar em trabalho de parto; um pedófilo que usa artifícios ignóbeis para manipular a personagem central com o objetivo de estuprá-la no cinema. Alega que tem o seu galo de estimação, animal que interage com Lamia e lhe dá sinais de respostas de situações complicadas e inusitadas. No desfile cívico, percebe-se os meninos militarizados nas suas vestimentas, saudando e gritando histericamente cantos de regozijos com frases e slogans para mobilizar e expressar na defesa do sinistro presidente.
The President's Cake é um filme singular que retrata com fidelidade as mazelas da saúde e suas deficiências crônicas e estruturais, além da fome, da miséria e da falta de infraestrutura no saneamento básico de esgoto e água potável. Não bastassem os problemas internos, há os constantes bombardeios, inclusive as escolas com alunos como alvos, oriundos dos aviões sobrevoando dos norte-americanos. Eis uma fábula extraordinária retratando com muita veemência as atrocidades com crueza, embora haja um humor contido para aliviar a tensão, fica plasmada a caótica situação de um povo desprotegido devido à crise institucional do país. Um retrato cruel de uma coletividade humilhada e faminta, mas ainda assim luta com suas forças que saem do fundo da alma de um população resiliente, representada metaforicamente pelas duas crianças em suas andanças para sobreviverem. Um marcante libelo histórico contemporâneo, significativo e relevante por seus aspectos, de um regime totalitário.
Um grito contra a opressão pela beleza da arte cinematográfica inserida nestes detalhes da simplicidade realizada com inteligência, na qual o epílogo registra com um poder de cena magistral sobre como se expressar numa nação de uma cultura religiosa xiita extremada, e de um sistema ultrapassado e sem um mínimo de liberdade, mas que mesmo assim não consegue inibir a criatividade que não tem limites para o cinema inovador e empolgante. Um filme que aflora a dignidade pelo seu poder alegórico de abordar nas entrelinhas as questões proibidas, usando sutilezas para mostrar as raízes da arrogância estatal autoritária contrapondo com a força dos personagens oprimidos sem terem o direito de contestar nesta desassombrada obra contra o despotismo. Remete como similitude para o inesquecível drama Os Incompreendidos (1959), do mestre francês François Truffaut. Importante destacar a monumental melódica trilha sonora rítmica, sem ser invasiva, que ecoa num tom melancólico, e se alinha com a primorosa fotografia de Tudor Vladimir Panduru, sem glamourização, dando o equilíbrio exato nesta trama bem urdida. A montagem, a edição, o enquadramento, o roteiro, a direção e todo o elenco são impecáveis. Por todo o conjunto estrutural da realização, com simplicidade e notável profundidade de realismo, uma legítima obra-prima.

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