quarta-feira, 12 de novembro de 2025

O Agente Secreto

 

Efeitos da Ditadura

O consagrado cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho estreou com o cultuado O Som ao Redor (2013), que rendeu o prêmio da Crítica no Festival de Roterdã, na Holanda, o Kikito em Gramado de melhor direção, e o título de Melhor Filme no Festival do Rio. Refletia a preocupação do cinema autoral com a estratificação social, através da captação da câmera que percorre uma rua famosa da zona Sul de Recife, mostrando belas moradias bem protegidas. Depois viria causar polêmica com o ótimo Aquarius (2016), diante do protesto da equipe na França ao participar da seleção oficial do Festival de Cannes. Virou bandeira política contra o governo interino, à época, cinco dias após o processo de impeachment ser instaurado. O terceiro longa, Bacurau (2019), dividiu a direção com Juliano Dornelles, e ganhou o prêmio do Júri no Festival de Cannes daquele ano. Mostrou arrojo ao criar um faroeste contemporâneo que transita para o suspense, passa pela ficção científica, flerta com o horror e chega até o drama das famílias acuadas pela invasão de alienígenas numa aldeia aparentemente pacata. Seu penúltimo longa foi o extraordinário documentário Retratos Fantasmas (2023) ao dialogar com a ficção quando divide em capítulos, faz incursões num roteiro ficcional, e flerta com uma obra de características de puro ensaio. Reflete a preocupação com a temática do cotidiano das salas de cinema de calçada sendo substituídas pelas farmácias, igrejas, e a especulação imobiliária no desenvolvimento urbano acelerado no centro de Recife. Uma espécie de personagem principal através do imaginário e das muitas memórias, durante o século XX.

Indicado pelo Brasil ao prêmio de Melhor Filme Internacional do Oscar de 2026, após um lançamento bem-sucedido em Cannes, quando obteve a Palma de Ouro de direção e ator (Wagner Moura), O Agente Secreto, novo filme escrito e dirigido por Mendonça Filho, que dividiu em capítulos a história que se passa no país, em 1977. Armando com pseudônimo de Marcelo (Moura de boa autuação, bem protocolar, sem empolgar) é um professor de 40 anos especializado em tecnologia, que faz pesquisas envolvendo novas técnicas, foi obrigado a sair de São Paulo e se estabelecer em Recife. Aparentemente melancólico, mas gentil quando o momento exige, também é ágil e sorrateiro. Tem a intenção de começar uma nova vida e fugir de um passado de perseguição e mistério, rodeado de muita violência decorrente dos anos da ditadura militar que começa a dar sinais de esgotamento e a transição feita pelo então presidente Ernesto Geisel. O prólogo apresenta uma situação inusitada de um cadáver estendido no chão, tapado por pedaços de papelões, sendo fustigado por cães, com o olhar interrogativo do protagonista, em uma das duas melhores cenas, além da outra, na qual Fátima (Alice Carvalho), que proporciona um diálogo curto e revelador no restaurante, embora entra e saia do cenário sem maiores explicações. Um choque moral, ético e político, no qual a corrupção está presente com achaques dos patrulheiros na ronda policial, bem como de figurões da alta sociedade.

A trama mostra o personagem central chegando discretamente numa comunidade chamada de "refugiados" através de uma rede de auxílio a foragidos do regime de exceção, sob o comando da simpática, despachada e acolhedora Dona Sebastiana (Tânia Maria, uma ex-artesã, atriz iniciante potiguar de 78 anos que brilha), principal responsável pela solidariedade e acolhimento de Marcelo, que tenta encontrar um documento de identificação que comprove a existência de sua mãe, como uma memória a ser lembrada como resgate. Lá estão a dentista (Hermila Guedes), que acaba virando a amante do professor; o delegado inescrupuloso e corrupto (Robério Diógenes); o médico disfarçado de feirante (Thomas Aquino); o capanga ajudante (Gabriel Leone); o sogro de Marcelo (Carlos Francisco- projecionista do Cine São Luiz, em Recife); o enigmático soldado alemão (Udo Kier), o carismático e convincente matador de aluguel (Kaiony Venâncio), que rouba as cenas nas perseguições de rua. Tudo é Carnaval naqueles dias, mas logo a paz e a tranquilidade da cidade vai dando lugar para um caos com pistoleiros a mando de um industrial paulista ganancioso que se julga prejudicado pelo protagonista, ora espionado, mas que tem ojeriza pela ciência e é contrário ao meio científico.

A narrativa traz situações extraídas dos longas anteriores do diretor numa mescla de drama com comédia e suspense para realizar um interessante filme com câmeras Panavision aliada ao figurino fiel da época para dar uma veracidade ao cenário com uma aceitável trilha sonora. É inferior aos seus outros quatro filmes ao optar por estilos diversos numa mistura como uma torre de babel. Peca no excesso de ideias que se mostram conflitantes e se tornam confusas pela falta de harmonia em um roteiro múltiplo. A colocação da “perna cabeluda” que sai da boca do tubarão, numa referência ao blockbuster de Steven Spielberg, é uma mistura entre o real e o absurdo em uma homenagem ao cinema trash, admitida pelo cineasta. Não chega a ser uma crítica ostensiva aos detratores dos grupos LGBT, tendo em vista que numa rápida cena aparecem e desaparecem do cenário de uma praça escura à noite, com mortes e agressões violentas. Poderia ser melhor explorada, acaba virando apenas uma situação das lendas folclóricas do lugar. Quebra a continuidade e esfria o momento de tensão estabelecido. Frustra no epílogo com uma elipse que remete para uma notícia de capa de jornal, segue com as gravações arquivadas sendo ouvidas por jovens interessadas no passado com orientação da supervisora (Maria Fernanda Cândido), acarretando num típico anticlímax. São fatores que enfraquecem a realização, como o surgimento inesperado do filho do protagonista, um médico iniciante, sem querer saber sobre a morte do pai, completamente alheio ao vínculo familiar.

Sem se intensificar na temática proposta dos efeitos da ditadura, o realizador deixa tudo pela metade do que propõe. Tenta mostrar com alguma dose bem-humorada para suavizar as perseguições que sofrem os personagens inseridos no contexto do enredo. O resultado é uma abordagem explorada sem a devida profundidade naquele cenário diabólico nacional dos de 1970, que dá mostras do ressurgimento constante da extrema-direita até nossos dias atuais, mas sem provocação. Causa uma ruptura na história contada, deixando uma grande lacuna que se distancia de uma melhor reflexão. O tubarão que engole pessoas, possivelmente aquelas jogadas da ponte pelos torturadores do autoritarismo de assassinatos políticos, é uma conexão peculiar com o enredo e a realidade daqueles tempos sombrios. A comparação com o multipremiado Ainda Estou Aqui (2024), Walter Salles, não encontra elementos similares entre um e outro, exceto o período dos anos de chumbo. O filme de Salles é uma obra-prima e um marcante registro histórico do pior período político brasileiro contemporâneo. Significativo e relevante por seus aspectos em um regime vergado da democracia para o estado totalitário, sob o manto do tiranismo. Já o de Mendonça Filho tem vários filmes em um só, prevalecendo o artificialismo e o vazio nesta miscelânea de ideias. Eis um bom filme, ainda que menor aos outros de sua filmografia, de um cineasta que fica devendo, considerando seu potencial de grande artesão criativo.

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