A Civilidade Vingativa
A 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo abriu com Relatos Selvagens, que já está em
circuito comercial e vem precedido de ser um fenômeno de público, com mais de
2,8 milhões de espectadores na Argentina. Tem recebido elogios constantes da
crítica este postulante da Argentina a uma indicação ao Oscar de melhor filme
estrangeiro, foi o selecionado para a Competição do Festival de Cannes deste
ano, nesta coprodução dos irmãos Pedro e Agustín Almodóvar. Uma típica comédia
de humor negro de Damián Szifron, também responsável pelo instigante roteiro
que não faz concessões ao revelar sentimentos que transitam pelo surrealismo e
atinge em cheio o espectador com o modo improvável que lidam os personagens com
as situações absurdas e fantasiosas do cotidiano.
O diretor que tem em sua filmografia dois longas-metragens: El Fondo del Mar (2003)
e Tempo de Valentes (2005), conta seis
histórias independentes, imprevisíveis, divertidas que exploram o tema da vingança
de maneira desafiadora. Já no primeiro episódio, a situação é bem peculiar no
avião, a partir de uma singela cantada de um crítico musical de meia-idade
(Dario Grandinetti) numa jovem modelo (Maria Marull) que resultará num desfecho
inusitado. O fator desforra está presente novamente no restaurante de beira de
estrada, quando a garçonete do estabelecimento (Julieta Zylberberg) recebe um
cliente bem conhecido do passado numa noite chuvosa, a conclusão é trágica com
a entrada em cena da cozinheira perversa (Rita Cortese).
Na quinta história, há a tramoia para salvar um garoto
playboy que mata uma gestante e seu filho. Entra como ingredientes indigestos a
corrupção e o dinheiro que compra tudo, arquitetado pelo pai (Oscar Martinez),
um advogado e um investigador de polícia. Acaba sobrando para o jardineiro humilde,
pobre e ingênuo (Germán Silva), numa alusão de que a vida de um vale mais do
que a de outro. Crítica ácida ao sistema corrompido que passa por cima como uma
patrola do mais necessitado financeiramente, em favor do melhor aquinhoado. No
último evento, está a traição nas cenas de um casamento, não as de Ingmar
Bergman em sua obra-prima, mas da noiva (Erica Rivas) que descobre no dia da
festa da cerimônia que seu recém-marido (Diego Gentile) a trai com uma colega
de trabalho. Vira uma batalha tragicômica ao melhor estilo pastelão, duradouro
e excessivo. É o mais fraco de todos pela redundância exagerada diante da falta
de um corte na hora certa pela montagem.
O realizador está ótimo no terceiro episódio, um dos
melhores, quando nos remete para uma perseguição de carro numa estrada, em que
dois motoristas (Leonardo Sbaraglia e Walter Donado) se ofendem numa discussão
banal de trânsito que desencadeará numa aventura animalesca de fúria, ao melhor
estilo da violência registrada nos filmes de Quentin Tarantino, ou ainda na
inesquecível perseguição no suspense Encurralado
(1971), de Steven Spielberg. Ali está destilado todo o ódio e a ira com o
sentimento da barbárie que entram em rota de efervescência como numa caçada
humana em que o homem vira irracional num desfecho espetacular que se confundem
presa e predador. Mas Szifron, um dos mais promissores cineastas do cinema
argentino, chega ao ápice na quarta parte, na qual o engenheiro (Ricardo Darín-
sempre elegante na interpretação) sente-se injustiçado pela prefeitura do
município em que trabalha e reside. Seu carro é guinchado várias vezes, até
surgir com maestria na trama o instinto vingativo com uma técnica magnífica,
num desabafo contra o sistema de governo opressivo reinante que sufoca o
cidadão de bem e o faz um marginal aos olhos da comunidade e o humilha perante
a família, como a filha que espera o bolo de aniversário e a esposa em conflito
matrimonial, prestes a se divorciar. A cena no presídio é impagável e sintetiza
uma escolha às avessas do politicamente correto, numa edificante volta da
autoestima diante da dignidade maculada.
Relatos Selvagens retrata
uma realidade cruel e imprevisível de personagens que transitam sobre a tênue linha
divisória que separa a civilidade da barbárie. Um filme que aborda o pequeno
detalhe do cotidiano que vira uma caçada; ou uma traição amorosa; o retorno ao
passado trágico; uma simples viagem de avião que vira uma violência
descontrolada; ou ainda um problema de trânsito local que desemboca numa
catarse decorrente da perda do controle pelo excesso burocrático aliado com uma
corrupção que virou praga daninha, também presente na polícia, na família como
alegoria de um país que sufoca seus filhos.
Com a exímia fotografia de grande estilo visual de Javier
Julia, a boa trilha sonora de Gustavo Santaolalla combinada com um elenco coeso
e irrepreensível, contribuem para esta bela comédia girar em torno da
humanidade do homem bom até ter seus instintos primitivos fustigados no seu
interior num cenário brutal. No momento em que a estima é cutucada em boa dose,
logo os valores se corrompem e destroem o equilíbrio com o vínculo existente
da civilização, passa para a selvageria desenfreada que choca a criação
equilibrada e a lucidez se esvai de forma definitiva e eloquente num clímax
arrebatador pela maturidade estética do bom cinema com um ritmo forte e seco
surrealista, sem desprezar a mordaz ironia da crítica social como reflexão deste
hospício chamado mundo.
Um comentário:
Amei este filme!
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