terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Um Toque de Pecado



Catarse Chinesa

Jia Zhang-ke causou impacto no Festival de Cannes deste ano com o longa-metragem Um Toque de Pecado, obtendo somente a premiação de melhor roteiro, embora pudesse ter conquistado a Palma de Ouro, como um justo reconhecimento pela sua monumental obra sobre a violência que explode em forma de catarse na China de um regime comunista em vias de abertura gradual ao capitalismo e vista como uma das maiores forças do mundo atualmente, por isso respeitada como uma poderosa nação e gigante na economia. Foi sucesso de público e crítica na 37ª. Mostra de Cinema de São Paulo.

O cineasta que realizou obras marcantes como Em Busca da Vida (2006) e Memórias de Xangai (2010), chega agora ao ápice com este drama social sobre a eclosão violenta como o estopim de uma sociedade amordaçada por muitos anos e ainda convivendo com um poder ditatorial, como a referência induzida na estátua do líder revolucionário Mao Tsé-Tung, vista com frequência pelas ruas de quatro províncias diferentes que são cenários de quatro histórias que se interligam como uma cronologia distinta de pessoas completamente independentes e sem relação entre elas.

Além de abordar a violência explícita, há como pano de fundo o tédio dolorido e infausto que corrói e destrói aos poucos, evoluindo para uma crise de valores e como decorrência a história individual que é abalada pelas atitudes coletivas de uma comunidade em iminente desintegração pela depravação política que campeia solta, como se vê no primeiro episódio do minerador ensandecido e sua revolta em forma de histeria diante da complacência e a falta de indignação das pessoas que o cercam, em relação ao líder corrupto. Ao colocar o rifle no ombro e ir à forra, seu personagem nos remete para a brutalidade bestial dos anti-heróis de Tarantino; ou mais propriamente para o assassino psicótico e impiedoso de Onde os Fracos Não Têm Vez (2007), dos irmãos Joel e Ethan Coen.

Zhang-ke vai pontuando sua escala de matizes de trucidamentos com um rigor cênico magnífico raramente visto num cinema de reflexão, sem ser apelativo, como se observa na jovem que trabalha numa sauna para obter ganhos para a família e é confundida com uma prostituta por uma esposa de um frequentador, bem como é assediada por um cliente rico e inescrupuloso. A raiva e a injustiça se misturam em uma explosão de legítima defesa em cenas de um banho de sangue como um libelo metafórico contra a prepotência de seres abjetos e apodrecidos como o próprio sistema decadente de um governo ultrapassado.

Em outro episódio um trabalhador migrante volta para casa na véspera de um ano novo, que será festejado com muitos fogos de artifício, porém sem comemoração com o filho. Os tiros que solta no ar é uma antevisão de sua tragédia pessoal como pai e a busca pela criminalidade de forma crua como que abate suas vítimas indefesas na rua. A juventude está presente no último episódio, ao retratar um rapaz que troca de emprego com o intuito de um resultado mais compensador, após ser condenado pelo patrão a pagar as despesas de um colega acidentado involuntariamente. A decepção com a bonita colega com quem está flertando é a gota d’água como causa determinante de uma decisão inusitada, ao perder o sentido da vida para continuar lutando contra um destino ingrato. Fica como análise o pessimismo pelo revés contundente para as adversidades como decorrência do fracasso profissional e pessoal como homem.

Um Toque de Pecado é um drama arrebatador na essência e na crueldade com que a vida reserva ao indivíduo. Uma violência latente com recheios destrutivos que perturba e instiga pelas lentes que captam através da sensibilidade do diretor sobre a amostragem de uma sociedade nitidamente em decomposição e permeando a selvageria, faz refletir pelas imagens eloquentes e arrasadoras, além da denúncia virulenta de uma conduta disforme de quem governa e o melancólico tédio de pessoas derrotadas num caminho de violência com rastros de mortes estúpidas, num clímax equilibrado e coerente. O próprio julgamento é um teatro alegórico de uma situação onde o poder judiciário está esfacelado e submisso ao Estado. Um filme que consta em listas de melhor do ano, como nas revistas Cahiers du Cinéma da França e na britânica Sight & Sound, credenciando-se como obrigatório entre os melhores de 2013 no Brasil.

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