Jia Zhang-ke causou impacto no Festival de Cannes deste ano
com o longa-metragem Um Toque de Pecado,
obtendo somente a premiação de melhor roteiro, embora pudesse ter conquistado a Palma de Ouro, como um justo reconhecimento pela sua monumental obra sobre a
violência que explode em forma de catarse na China de um regime comunista em
vias de abertura gradual ao capitalismo e vista como uma das maiores forças do
mundo atualmente, por isso respeitada como uma poderosa nação e gigante na
economia. Foi sucesso de público e crítica na 37ª. Mostra de Cinema de São
Paulo.
O cineasta que realizou obras marcantes como Em Busca da Vida (2006) e Memórias de Xangai (2010), chega agora
ao ápice com este drama social sobre a eclosão violenta como o estopim de uma
sociedade amordaçada por muitos anos e ainda convivendo com um poder ditatorial,
como a referência induzida na estátua do líder revolucionário Mao Tsé-Tung,
vista com frequência pelas ruas de quatro províncias diferentes que são
cenários de quatro histórias que se interligam como uma cronologia distinta de
pessoas completamente independentes e sem relação entre elas.
Além de abordar a violência explícita, há como pano de fundo
o tédio dolorido e infausto que corrói e destrói aos poucos, evoluindo para uma
crise de valores e como decorrência a história individual que é abalada pelas
atitudes coletivas de uma comunidade em iminente desintegração pela depravação
política que campeia solta, como se vê no primeiro episódio do minerador
ensandecido e sua revolta em forma de histeria diante da complacência e a falta
de indignação das pessoas que o cercam, em relação ao líder corrupto. Ao
colocar o rifle no ombro e ir à forra, seu personagem nos remete para a
brutalidade bestial dos anti-heróis de Tarantino; ou mais propriamente para o assassino
psicótico e impiedoso de Onde os Fracos
Não Têm Vez (2007), dos irmãos Joel e Ethan Coen.
Zhang-ke vai pontuando sua escala de matizes de trucidamentos
com um rigor cênico magnífico raramente visto num cinema de reflexão, sem ser
apelativo, como se observa na jovem que trabalha numa sauna para obter ganhos
para a família e é confundida com uma prostituta por uma esposa de um frequentador,
bem como é assediada por um cliente rico e inescrupuloso. A raiva e a injustiça
se misturam em uma explosão de legítima defesa em cenas de um banho de sangue
como um libelo metafórico contra a prepotência de seres abjetos e apodrecidos
como o próprio sistema decadente de um governo ultrapassado.
Em outro episódio um trabalhador migrante volta para casa na
véspera de um ano novo, que será festejado com muitos fogos de artifício, porém
sem comemoração com o filho. Os tiros que solta no ar é uma antevisão de sua
tragédia pessoal como pai e a busca pela criminalidade de forma crua como que
abate suas vítimas indefesas na rua. A juventude está presente no último
episódio, ao retratar um rapaz que troca de emprego com o intuito de um
resultado mais compensador, após ser condenado pelo patrão a pagar as despesas
de um colega acidentado involuntariamente. A decepção com a bonita colega com
quem está flertando é a gota d’água como causa determinante de uma decisão
inusitada, ao perder o sentido da vida para continuar lutando contra um destino
ingrato. Fica como análise o pessimismo pelo revés contundente para as
adversidades como decorrência do fracasso profissional e pessoal como homem.
Um Toque de Pecado
é um drama arrebatador na essência e na crueldade com que a vida reserva ao
indivíduo. Uma violência latente com recheios destrutivos que perturba e
instiga pelas lentes que captam através da sensibilidade do diretor sobre a
amostragem de uma sociedade nitidamente em decomposição e permeando a
selvageria, faz refletir pelas imagens eloquentes e arrasadoras, além da
denúncia virulenta de uma conduta disforme de quem governa e o melancólico
tédio de pessoas derrotadas num caminho de violência com rastros de mortes estúpidas,
num clímax equilibrado e coerente. O próprio julgamento é um teatro alegórico
de uma situação onde o poder judiciário está esfacelado e submisso ao Estado. Um
filme que consta em listas de melhor do ano, como nas revistas Cahiers du
Cinéma da França e na britânica Sight & Sound, credenciando-se como
obrigatório entre os melhores de 2013 no Brasil.
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