quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Seleção de Filmes Bourbon (Instinto Materno)


Instinto Materno (Child’s Pose)

Vem da Romênia o contundente drama familiar Instinto Materno, do cineasta Calin Peter Netzer, que assinou o roteiro enxuto com Razvan Radulescu. Também dirigiu o premiado Maria (2003) e Medalha de Honra (2009). Foi o grande vencedor do Urso de Ouro e o Prêmio da Crítica de Melhor Filme no Festival de Berlim, além da passagem exitosa de público e crítica na 37ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano.

Um dos grandes trunfos do filme é a impecável atuação de Luminita Gheorghiu no papel da obstinada mãe Cornelia, a mesma atriz do cultuado 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (2007), e Além das Montanhas (2012), ambos de Cristian Mungiu. A instigante história da saga da protagonista, uma mulher rica que ouve ópera, quando num dia qualquer é surpreendida pela notícia trágica. A partir daí passa a dedicar todo seu tempo para livrar o filho (Bogdan Dumitrache) da cadeia, embora haja comprovada culpa no acidente que matou um garoto de 14 anos, sem prestar socorro, ao andar numa velocidade de 140 km por hora numa rodovia em que o limite máximo é de 110 km/h.

O drama aborda a corrupção que se faz presente diante de uma polícia frágil e com resquícios ainda de um poder onipotente, como se vê nos dois policiais tontos e despreparados aparentemente. Um deles chega a pedir uma ajudinha para liberar a construção da casa de um parente, deflagra-se ostensivamente a falta de seriedade. Há contatos com superiores que interferem na investigação, demonstrando a triste situação deste país que saiu da Cortina de Ferro. Retrata uma nova casta de uma sociedade surgida após soçobrar o comunismo na Romênia, num comportamento absurdo de uma classe social estereotipada e que inverte os valores, dando guarida para o desenlace de uma situação dolorida pela culpa não assumida de um rapaz já adulto e mimado, criado irresponsavelmente sob a proteção matriarcal e que não sabe o que fazer. Chega a pedir uma pausa para ter uma vida independente, como num indício de cortar o vínculo de submissão e os limites da proteção exagerada, como uma metáfora da mãe que representa o Estado protetor e seus filhos pacatos e sem luz própria.

O cineasta utiliza a câmera na mão na maioria das cenas, como um recurso da situação nevrálgica e nebulosa do quadro apresentado, assim como a fotografia sem brilho e em tons esmaecidos como num lusco-fusco de interiores dentro de um cenário sem grandes locações. Um filme de diálogos contínuos em contraplanos e com o afastamento de planos de belas imagens. A dor está presente acompanhando a ausência irremediável, como na extraordinária cena do encontro de Cornelia e sua nora com os pais da vítima. Um duelo magnífico de palavras dilacerantes sobre a perda e a culpa. O pedido de perdão e a indicação da mãe sobre seu filho lá fora, no carro, querendo se redimir é comovente.

Netzer chegar a inverter os papéis num determinado momento do diálogo e deixa dúvidas de quem está sofrendo mais realmente: os pais do morto ou a mãe do motorista imprudente? Há um entrave dolorido daquela senhora representante de uma elite viciada no suborno que luta como uma leoa faminta para isentar o filho de uma possível condenação e do martírio da prisão. Alega que só tem ele, enquanto que do outro lado há um irmão ainda vivo de 11 anos para iluminar o futuro. São frases chocantes sendo desfiadas como um colar que despenca e perde suas pedras preciosas, diante de um desenlace enternecedor do encontro do algoz com aquele pai em frangalhos, numa cena triste e ao mesmo tempo paradoxal, pois está repleta de altivez pelo ato jogado como uma imagem ardente no retrovisor.

Instinto Materno é um poderoso e arrebatador drama familiar com fortes tintas sociais que mergulha com dignidade na perda, na culpa e no arrependimento com viés de perdão diante de uma luta desenfreada e com a ética distanciada da realidade. Uma mãe obsessiva pela liberdade do filho culpado que quer o fim das amarras da submissão no belo e dignificante encontro final com aquela criatura estraçalhada pela ausência trágica definitiva no seu seio familiar. O longa sensibiliza com sutileza um amor destroçado e questiona os limites protetivos, através de um realismo cênico com desfecho equilibrado de uma narrativa dramática para reflexão das relações sofridas entre seres desesperançados, emociona pela condução sem arroubos ou pieguismos baratos, perturba ao rasgar a alma do espectador numa profunda amostragem sobre a morte e as pessoas íntimas em seu entorno, com as consequências de seus vínculos e relações decorrentes de uma vida. Aí está um filme que deverá constar nas listas de melhores de 2013. 

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