segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Memória

Viagem Sensorial

O cultuado tailandês Apichatpong Weerasethakul, de codinome "Joe", para facilitar a vida dos ocidentais, é o diretor de Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, grande vencedor da Palma de Ouro de 2010. Com uma filmografia consolidada no cenário mundial, tendo ganhado também no Festival de Cannes o prêmio da mostra Un Certain Regard, em 2002, com Eternamente Sua; com Mal dos Trópicos levou o Prêmio do Júri, em 2004. Lançou Cemitério do Esplendor no referido festival, em 2015, com boa aceitação de crítica e público. Voltou a Cannes com seu mais recente longa-metragem, Memória, primeira produção fora de seu país, para abocanhar novamente o Prêmio do Júri, edição de 2021, disponível no MUBI. Realizado na Colômbia, soube explorar muito bem a geografia histórica de vulcões, guerrilha, narcotráfico, indígenas e suas tribos com fantasmas e espíritos disseminados pelas florestas, rios, córregos, encostas, montanhas, tudo em abundância para o deleite do cineasta, que tem sua marca registrada pela qualidade estética e estrutural, na abordagem de personagens perdidos na selva e fugindo dos demônios, bem retratada na polêmica obra premiada em 2010.

Apichatpong é egresso de uma cinematografia não-ocidental, que logrou uma posição de autonomia autoral, ajudando a consolidar uma cultura cinematográfica exótica, completamente fora dos padrões convencionais. Memória conta a história de Jessica (brilhante atuação da atriz escocesa Tilda Swinton), uma cultivadora de orquídeas em Medelín que vai visitar a irmã enferma em Bogotá. A protagonista é acordada por um som familiar numa bela manhã, como uma bola de pedra caindo no metal. Ela passa a ter devaneios e alucinações por este barulho perturbador e constante que interrompe seu descanso noturno, deixando-a insone, com várias noites sem dormir. Acaba por questionar sua própria identidade para uma médica local. Descobre ser portadora da “síndrome da cabeça explosiva”, relacionada à paralisia do sono, que faz a pessoa acreditar que está acordada, mas sem conseguir se mexer, explicado por várias circunstâncias tidas como sobrenaturais. O próprio cineasta admite que sofre desta moléstia, mas segundo ele, quando começou a filmar o som desapareceu e acabou dormindo profundamente.

A trama propicia no trajeto de uma estrada com blitz militar de controle de guerrilheiros e traficantes, sem tiroteios ou perseguições, somente gestos e sinais discretos. Embora haja muita tensão contrastando com os longos planos do museu e das salas de música na Biblioteca de Bogotá, a atmosfera cultural de primeiro mundo irá se consolidar como um marco histórico de um povo que cultiva e mantém com respeito aquele patrimônio de arte. O encontro casual da personagem central com Agnes (Jeanne Balibar), uma arqueóloga que faz um estudo centrado em esqueletos humanos desenterrados na construção de um túnel. Os relatos da profissional de que o crânio de uma menina com um buraco na cabeça seria uma suposta perfuração pelos xamãs para libertar os maus espíritos, atiça a curiosidade. As coincidências e o destino fazem com que Jessica seja conduzida por intuito a um local que a fará buscar a libertação do incômodo.

Os aspectos que atraem nas realizações do diretor são os sentimentos como fragmentos humanos dignos, através de delicados quadros de cenas mostradas em longos planos-sequência com uma câmera estática, para captar o silêncio, a vida do cotidiano, a poesia do lugar cercado por frondosas árvores e montanhas em imagens de uma natureza enigmática para meditação, elementos essenciais de uma narrativa singular, com raros diálogos. As configurações levam à imersão transcendental do espectador até um relaxamento no mais alto grau de satisfação, quase sobrenatural, como reage a protagonista diante das experimentações que vai absorvendo, principalmente com os personagens com quem interage. Um desaparece do nada, como o engenheiro de som, que fez uma mixagem de áudio para ajudá-la a entender os ruídos estranhos que a afligem. Há buscas no além e em outras dimensões, algo que assusta e ao mesmo tempo, fascina, como explicações para as soluções que inquietam nossa realidade. O realizador pensa no cinema como mecanismo de magia do mundo, o que é algo extraordinário. Uma experiência sensorial única numa viagem ao subconsciente, literalmente.

Uma obra com simplicidade no roteiro e nos poucos diálogos, mas exuberante nas imagens e na interpretação farta para todas as evidências lançadas como provocação. A proposta ao espectador é deixar fluir a trama sem amarras ou grandes questionamentos plausíveis. Um grande compasso de espera e reflexão que irão se destilando aos poucos em nossa alma, coração e espírito. Uma realização sugestiva com desfechos em aberto, deixando múltiplas interpretações. Nada é linear, tudo é dentro do contexto e complexo, até o estrondo do som tem desdobramentos em diversas camadas de memória. A arqueologia e suas exumações de restos de cadáveres estão elencadas como múltiplas histórias de uma cultura com origem na violência. Retrata com discernimento pela notável analogia da existência da espécie humana e suas origens relacionadas com a crença religiosa e a ciência do infinito que se fundem pela filosofia, a arqueologia e a antropologia para propor uma metáfora vigorosa do existencialismo e seus reflexos sutis com o olhar para a terra e o céu, com as florestas de pedra como paredões que se encontram.

Um filme contemplativo, onde há muitas interpretações, sem que haja uma definitiva. Jessica passa uma imagem de mediunidade espírita com poderes sensitivos, às vezes em transe, inimagináveis de canalização como prática de supostamente mediar a comunicação entre os mortos e as pessoas vivas. Chega no município de Pijao, onde conhece um homem com hábitos de um ermitão, que nunca viajou nem assistiu a filmes, TV ou noticiários, porque já tem histórias suficientes nas suas memórias. Fala de um incidente de infância envolvendo sua mãe e conta sobre o passado, o futuro e as recordações daqueles que já se foram num dia inesquecível. A revelação da protagonista ao pescador do que teria acontecido naquela casa anos atrás, quando há um suposto massacre naquele lugar, transcende a realidade e exorbita para o universo da fantasia para uma imersão sensorial catártica. As cenas de longas reflexões e observações conduzem para um banho de purificação da alma na natureza e seus segredos que despertam curiosidades na plateia, pois poderia acontecer algo inusitado. Há um brilho poético, o cineasta demonstra toda sua sensibilidade para um mergulho sobre a existência e as questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham os fatos adequados ao tema, sob o ponto de vista humano e com a força das comoventes quimeras. Transcendental, espiritual ou metafísica como possa parecer, fica na consciência de cada espectador este soberbo drama.

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