segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Titane

 

Surrealismo e Violência

Surgiu um movimento cinematográfico chamado O Novo Extremismo Francês que tem como base principal o foco de realizações com o objetivo da transgressão com temáticas pesadas e com uma violência explícita e sangrenta como essência para desafiar o público e fazê-lo refletir sobre diversas situações de uma sociedade aparentemente acomodada. Esta definição foi cunhada pelo crítico James Quandt para classificar o cinema transgressivo francês que teve início na década de 1990 e se estende até os dias de hoje. É um contraponto aos filmes de terror produzidos em Hollywood. Ficaram marcados pelo estilo de produções polêmicas onde o grotesco é a mola propulsora do conceito, tais como: Desejo e Obsessão (2001), de Claire Denis, Irreversível (2002) e Clímax (2018), os dois de Gaspar Noé, Alta Tensão (2003), de Alexandre Aja, A Invasora (2007), de Alexandre Bustillo e Julien Maury, Mártire (2008), de Pascal Laugier e Grave (2016), primeiro longa-metragem de Julia Ducournau ao retratar elementos violentos do canibalismo para mostrar o amadurecimento e as transformações de sua protagonista.

A roteirista e diretora Julia Ducournau está de volta em meio a muitas polêmicas com Titane, o grande vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2021, em cartaz no MUBI. Depois de sua estreia em Grave, a cineasta abraça definitivamente este novo movimento, em que não há delicadeza para expor. Sem nenhum pecado ou culpa sua obra é recheada de violência, sexualidade expostas no horror corporal visceral, no qual ousa pelo autoextermínio da degradação e privação sem cerimônia com o viés autodestrutivo. Fica evidenciada a inspiração da realizadora no mestre do gênero David Cronemberg, em obras como A Mosca (1986), Crash - Estranhos Prazeres (1996), no qual as pessoas se excitam sexualmente por acidentes de carro. Também poderia ser colocado neste novo movimento o diretor Leos Carax, com o suspense Holly Motors (2012), ganhador do prêmio da juventude no Festival de Cannes de 2012, melhor filme estrangeiro, ator e fotografia no Festival Internacional de Chicago. Abordava um rico banqueiro que sai de casa para vender ações na confortável limusine, logo passa por uma metamorfose kafkiana, virando uma mendiga esmoleira em plena Paris, entra num esgoto e aflora novamente a figura horrenda no cemitério ao abraçar uma bela modelo.

A trama de Titane traz como protagonista Alexia (Agathe Rousselle), que sofre um terrível acidente de carro na adolescência, quando o pai dirige um automóvel e ao se virar para trás com a intenção de verificar seu comportamento pouco agradável, acontece a pequena tragédia. A lesão em seu crânio é grave e requer um implante de uma placa de titânio (metal altamente resistente ao calor e à corrosão, com ligas de alta resistência à tração, muito utilizado em próteses médicas) em sua cabeça, deixando sequelas visíveis e abaláveis psicologicamente que irão marcar para sempre seu futuro pelos efeitos colaterais. Desde a saída do hospital, há uma transformação na jovem, que se mostra arredia e sua rebeldia vai ao encontro de um abraço amoroso no veículo que quase a matou. Vira uma serial killer que executa seus parceiros com um adereço pontiagudo que usa no cabelo como formato de uma arma fatal. A sexualidade entra num processo de fusão com intenções assassinas que dominam a mente, até fugir para não ser presa.

A relação do titânio em que o corpo humano vira uma máquina é uma hipótese apresentada pela diretora como solução, no qual a conversão surrealista em que a bizarrice para a degradação corporal do terror para as violações agressivas que irão refletir no desenvolvimento e as sequelas ultrajantes como fim oriundos de um meio que perturba e agride. A gravidez inesperada da personagem central irá transformar numa verdadeira saga massacrante fruto da relação kafkiana inverossímil de uma mulher com um automóvel, até conhecer Vincent (Vincet Lindon), um bombeiro que chefia uma equipe de rapazes aparentemente felizes e prontos para qualquer missão. Torturado por seu passado que tenta preservar a força injetando drogas em seu corpo envelhecido, finge que acredita ter encontrado o filho desaparecido há dez anos. Uma série de assassinatos coloca a região sob tensão e todos estão em alerta. A relação de filho e pai se estreita para lidar com seus problemas emocionais trazendo humanidade em meio ao caos em suas vidas, como na bela cena em que todos dançam sob a trilha sonora inquietante de Jim Williams, e em outros momentos estão presentes a fúria e a exaustão dos personagens sofridos pelo destino.

A estética mexe com o espectador e sua comodidade na zona de conforto para não deixar nunca estar desatento num roteiro de jogo de cena, ao estilo surrealista de David Linch, onde a fusão temporal estaria em busca de uma identidade, com a qual os personagens estão perdidos, sem rumo nas várias faces apresentadas, diante da desorientação atípica da lucidez. Uma pessoa fria quando vira uma assassina dentro de um grande hospício criado em seu imaginário, mas o amor e a ternura estão presentes naquelas criaturas indefinidas e sem tempo para as coisas triviais da vida. A dor dos solitários está presente e a vida perde os encantos com a ausência existencial. Embora seja abordado pela bizarrice, é para chocar mesmo e fazer com que aquele espectador que assistiu até o fim, reflita. Não é um filme fácil, há enigmas a serem decifrados durante as frequentes mudanças no roteiro. Aflora fantasias de um universo que vai da fábula à ficção científica, num experimento de aventuras numa metalinguagem em vidas personificadas, obra que se encaixaria muito bem no Fantaspoa.

A diretora traça um paralelo com as máquinas num contexto cada vez mais dependente da tecnologia digital, em que o erotismo é banalizado e pintado com tintas de libertação, dor e horror corporal para abordar o inconsciente humano, seus desejos e emoções dentro de uma psicologia bizarra, o que é discutível. Um filme que perturba por ser exorbitante pelo horror corporal decrépito e aos frangalhos, com o tênue objetivo ingênuo para discutir violência e sexualidade e suas sequências inverossímeis de que incorpora uma serial killer, que transita do pai natural ao adotante e sua culpa até plasmar uma sugestiva relação incestuosa no desfecho inusitado. Traz uma textura sonora e visual sombria para o uso de sensações físicas e emocionais ao mesclar em planos e contraplanos de sequências surreais, abjetas por vezes, num cenário apelativo para abalroar a plateia. Obviamente que consegue, mas dentro de uma narrativa claudicante com imagens agressivas e pouco indicadas para estômagos mais fragilizados, o que afasta uma ideia sincronizada de profunda reflexão na essência dentro da psique humana.

Um comentário:

Marcelo Castro Moraes disse...

"Titane" é um filme provocante, selvagem e onde mostra uma sociedade que se perde através da busca de um amor raro e quase inalcançável.