sexta-feira, 3 de março de 2023

A Baleia

 

Grotesca Agonia

Darren Aronofsky dirigiu Pi (1998), Réquiem para um Sonho (2000) e O Lutador (2008), seu melhor filme e mais apropriado com a história, ganhador do Leão de Ouro em Veneza. Notório por carregar demais nas cenas de violência, nas automutilações, pernas com fraturas expostas, facadas no abdômen, sangue jorrando, com cenas desnecessárias como a exposição gratuita de vísceras, deixando transparecer a banalidade simplória. Carrega sistematicamente em imagens de sexos vulgares e descontextualizados. Com Cisne Negro (2010), uma gélida realização com cenas de dança meramente convencionais que revelava uma perturbação agonizante da protagonista, na qual o perfil psicológico da dançarina (Natalie Portman, de ótima atuação) que comenta sobre seu destino e a busca obstinada pelo papel principal de rainha, adaptado do clássico O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, na consagrada disputa mitológica entre o bem e o mal. O conflito entre os cisnes branco e o negro, comentada como a lenda do príncipe que se apaixona pela irmã da princesa acaba se matando, não prospera e afunda, embora prenuncie como o desfecho, sai da ficção sem muita cerimônia e torna-se realidade. Descamba para um final previsível e imaginável, diante dos indicativos anunciados no transcorrer da trama, com as autodecepações caindo no ridículo.

No seu último longa-metragem, A Baleia, com três indicações ao Oscar deste ano: Melhor Ator, Melhor Atriz Coadjuvante e Maquiagem, Aronofsky usa e abusa dos exageros e da superficialidade como utilizações de recursos que permitem deformações no físico de atores numa atmosfera revelada pela ausência sutilezas, delicadezas, ironias finas e bom senso. O roteiro escrito pelo dramaturgo Samuel D. Hunter foi adaptado da peça homônima, lançada em 2012. A trama tem como protagonista Charlie (Brendan Fraser tem uma estupenda atuação, merece o Oscar), um recluso professor de inglês assumidamente homossexual em seus últimos dias, que convive com uma obesidade severa, pesa 274 quilos, mas tenta lutar contra o transtorno de compulsão alimentar. Devora pizzas gigantes, sanduíches recheados, hambúrgueres e frangos fritos. A pressão arterial vai parar nas nuvens. Masturba-se vendo filmes pornográficos em um laptop. Uma morte lenta e angustiante daquele homem horrendo, que dá aulas on-line, mas sempre deixa a webcam desligada, por ter vergonha de aparecer em público com a aparência disforme. O ator teve o auxílio para uma caracterização na mistura de maquiagem de prostéticos com efeitos especiais para atingir uma performance incrível.

O realizador maneja para o mau gosto ao fazer do seu personagem principal, aquela figura patética pela obesidade mórbida desencadeada pela morte do namorado, com o qual ele foi viver junto depois de abandonar a família. Arrasta-se pelo apartamento, cenário único do enredo, herança das características teatrais da obra original, como se fosse um réptil fugindo do universo humano, uma realidade desvirtuada pela apelação barata. Apesar de viver sozinho, ele é cuidado pela sua amiga e enfermeira, Liz (Hong Chau, boa interpretação e indicada ao Oscar para atriz coadjuvante). Convive com a culpa recorrente por ter abandonado Ellie (Sadie Sink), a filha hoje adolescente que ele deixou junto com a mãe Mary (Samantha Morton) ao se apaixonar pelo seu aluno. Busca reconectar-se com a garota para reparar seus erros, inclusive se recusa a ser hospitalizado para não gastar, porque quer deixar suas economias para a jovem revoltada com a situação do passado. Tenta ajudá-la a reescrever uma redação para a escola, sem a interação fraternal, o que só dificulta a relação deles, pois ela que parece odiar a tudo e a todos, sem exceção, numa construção caricatural; ele demonstra uma obsessão quase que doentia pela filha. Para completar a trama, surge um jovem missionário religioso, Thomas (Ty Simpkins), de duvidosa honestidade, que acredita num motivo divino para cruzar o caminho daquela família desconstruída.

O drama familiar sobre perdas, culpa e perdão tenta achar soluções e apontar as condições pelos caminhos mais degradantes num clima construído de claustrofobia no imóvel. Não impressiona os truques psicológicos e fica longe de uma obra consistente. Opta por uma narrativa separada do mundo real dos personagens, diante das simplificações pelas aberrações do corpo, sem concessões, ao utilizar meios inadequados que liquidam com propostas inteligentes e que revelam fragmentos medianos apresentado ao espectador. Não há sugestões ou aprofundamento da violência humilhante que assola o homem enfermo, sua dor humana e sua perturbação psicológica pela perda involuntária da autoestima. Quase todas as cenas são explícitas, e o realismo atordoante impera e predomina em praticamente todo o desenrolar da história. Deriva do surreal para o artificialismo lançado na esteira do enredo extravagante, por opção do realizador através de sua marca cansativa da exorbitância sem limites, recheado de lugares-comuns inúteis.

Embora o cineasta tivesse como objetivo abordar a obesidade e os efeitos colaterais na sociedade, o resultado desanda e acaba por ingressar, ainda que involuntariamente, no terreno do preconceito que remete para o viés da execrável gordofobia e seus aspectos inerentes. Erra a mão ao retratar a situação dos fatos pela maneira crua, promíscua e agressiva, beira a escatologia e contraria o cinema de meritória qualidade. Um filme frívolo diante do arremedo sobre as discussões paliativas de contornos cruéis pela ausência de relevância sobre as regras e a ética que estruturam as relações sociais aceitas ou não pela convivência dolorosa do cotidiano. Mergulha no drama folhetinesco sem uma qualidade estética razoável, com um epílogo chato e sem imaginação, fruto da preferência do diretor por obras para fisgar o emocional. Abandona quaisquer reflexões lúcidas, na qual a trilha sonora colabora, assinada por Rob Simonsen, é invasiva e melosa com o pieguismo aflorando de forma irritante. Abandona os valores essenciais de uma visão crítica apurada para um foco rasteiro, ao jogar fora um ótimo tema recheado de boas intenções. Faltou apuro técnico, mas sobraram elementos desprezíveis de um filme visivelmente comercial e descartável por ser inconvenientemente grosseiro.

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