sexta-feira, 31 de março de 2023

Triângulo da Tristeza

 



 





Aristocracia na Berlinda

A competente direção de Ruben Östlund levou a comédia dramática The Square- A Arte da Discórdia a vencer a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2017, sendo ainda o responsável pelo eclético e perturbador roteiro. Representou a Suécia no Oscar de 2018. Uma notável construção denominada como uma mini obra-prima desafiadora ao questionar a arte contemporânea por uma crítica corrosiva, justamente num momento delicado em que museus estavam fechando por pressão de setores conservadores e moralistas da sociedade, beirando a irracionalidade. Proibia-se exposições para menores de 18 anos, sob a alegação de motivos como a pedofilia, a zoofilia, a sexualidade ousada, os órgãos genitais livres de cobertura, o racismo, e por aí foi. O ninho de vespas foi cutucado, mas não faltou audácia deste inquieto diretor que abordou a vida de um refinado curador de museu em Estocolmo que teve problemas após ter seu celular furtado, viu uma campanha maquiavélica de marketing viralizar nas redes sociais. Na realização anterior, Força Maior (2014), foi o vencedor do prêmio de melhor filme da mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes daquele ano. Retratava a atitude falseada da verdade com efeitos desastrosos para o psicológico do ser humano, diante da gravidade das palavras sem a noção de lógica e equilíbrio, predominando o destempero pela facilidade da verve acusatória de não medir as consequências quase que trágicas no âmbito familiar.

Em seu sexto longa-metragem, Triângulo da Tristeza, em cartaz na Amazon Prime Video, Östlund chegou ao bicampeonato ao ganhar a Palma de Ouro no ano passado em Cannes. Uma mescla de Titanic (1997), de James Cameron, nas cenas do cruzeiro singrando o mar, com Náufrago (2000), de Robert Zemeckis, quando o cenário vai parar numa ilha deserta com as peculiaridades do cotidiano local. Um deboche sobre o refinado mundo da moda e suas idiossincrasias de relatos fúteis com uma escrachada crítica ao universo requintado dos ricos, acentuada pelas imagens. O estopim está na sobrevivência, onde não falta o racismo ao empregado negro das máquinas, e a tentativa frustrada de subjugar a funcionária da limpeza, que surge com uma liderança da sabedoria de vida do dia a dia, deixando todos perplexos. As relações de poder logo se inverterão, e Abigail (Dolly De Leon), a única que sabe pescar, acender o fogo e ainda escolher quem dormirá no seu barco de socorro. Representa o feminismo, como subtema, ao submeter o símbolo da beleza masculina a um sexismo que ele nunca imaginou, forçado a dizer sim, uma espécie de revanche ao machismo.

Para os espectadores mais sensíveis, pode haver náusea com embrulho do estômago na sequência de 15 minutos escatológicos, embora necessário e preciso, em que os passageiros aristocratas se empanturram de comida. Vomitam, defecam e a sujeira transborda, transformando o cenário numa imundície espalhada pelo interior do iate de luxo virado numa pocilga. Enquanto isto, há o espanto com o capitão marxista (Woody Harrelson) debatendo sobre capitalismo e comunismo com o magnata russo da indústria de fertilizantes (Zlatko Buric), num duelo prolixo magnífico, antecedido pelo assédio de um casal milionário de idosos ingleses vendedores de armas e bombas (Amanda Walker e Oliver Ford Davies). O enredo foi dividido em três partes no roteiro com uma grande reviravolta do meio para o fim, mas com consistência e dinamismo. Na primeira, um casal de jovens modelos enamorados, Carl (Harris Dickinson) e Yaya (Charlbi Dean Kriek- a atriz sul-africana morreu aos 32 anos, em agosto de 2022, vítima de uma septicemia bacteriana, sequer viu o filme estrear nos cinemas mundiais). Ele é a pessoa que aponta as superficialidades de tudo que vemos, mas se aproveita do luxo proporcionado no cruzeiro. Ela ganhou as cortesias justamente por ser modelo e influenciadora da internet, uma obcecada em fotografar e postar todos os momentos lúdicos, inclusive os pratos servidos no requintado banquete regados com os melhores vinhos e espumantes.

Triângulo da Tristeza aborda, entre outros assuntos, a cultura fashion contrastando com marcas mais baratas, a estigmatização da beleza como moeda de troca contrapondo com a hipocrisia de pessoas supostamente bem resolvidas no imbróglio da igualdade de gênero, com diálogos ásperos que levam quase ao rompimento da relação. Uma dinâmica que leva a vários outros conflitos entre os dois, sem que o espectador tome uma posição definitiva. Nas duas últimas partes, o casal de protagonistas já no interior do iate, após um inusitado acidente, irá parar, junto com os passageiros e tripulantes nas margens de uma ilha. A proposta do cineasta, como a intuitiva metáfora da sujeira jorrada pelo vômito e a defecação, é mostrar o grotesco da podridão que está inserida diametralmente no seio da elite alienada e suas bizarrices pela ânsia insustentável do egocentrismo oriundo do egoísmo. “Eu sempre fui um socialista, então acho que de repente estou na moda de novo, e isso é fantástico!”, afirmou Östlund em entrevista ao site australiano Concrete Playground. “Acho importante ressaltar que não tenho nada contra os ricos. Pessoas ricas são legais. Elas simplesmente não gostam de pagar impostos!”, finalizou o diretor.

O filme é uma crítica direta ao ponto e recheada de ironias à sociedade elitizada, mesmo o óbvio sendo caracterizado, causa impacto pela repulsa, mas retrata com brilho ao eliminar os privilégios dos mais aquinhoados que perderam as vantagens que os colocam no topo, especialmente quando negam a consciência de seu lugar. Fica a sensação de justiça na ironia inesgotável que propõe luzes para uma nova sociedade após o naufrágio. O peixe e o burro caçado para a alimentação são mais valiosos que a coleção de relógios Rolex, que pouco vale para a sobrevivência. Östlund em seu filme anterior premiado em Cannes, mostrava uma sequência devastadora e aterrorizante no sentido psicológico, quando ocorre a apresentação de um artista denominado de o homem-macaco diante de uma plateia seleta num jantar de gala, estática e amordaçada pelo medo da importunação. O personagem faz uma performance imitando um primata interagindo com o púbico e partindo para uma explícita tentativa de estupro de uma mulher. Triângulo da Tristeza é o retorno da selvageria com promessas e tentativas incivilizadas da corrupção em meio à expectativa pela manutenção da vida. Surpreende o desfecho em aberto com a materialização de uma crise reveladora decorrente da opressão, hipocrisia e os valores éticos. Vai do clímax para o anticlímax com suavidade e eficiência, quando se aponta para as superficialidades de uma parte minoritária que quer dominar de maneira brutal com um cinismo infame nesta sátira admiravelmente contextualizada.

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