Fanatismo Religioso
O diretor iraniano-dinamarquês Ali Abbasi tem uma carreira sinalizada por histórias incríveis sobre o absurdo e o grotesco das experiências humanas que embasam sua filmografia. O horror corporal fica evidenciado nas suas obras de personagens escolhidos criteriosamente como pano de fundo sobre separação de classes e gêneros pontuados em seus dois primeiros longas Shelley (2016) e Border (2018). O realizador segue a cartilha dos seus conterrâneos ao construir sob forte influência do neorrealismo italiano, movimento cultural surgido na Itália ao final da Segunda Guerra Mundial, cujas maiores expressões ocorreram no cinema. Seus maiores expoentes foram Roberto Rosselini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti, que iria influenciar a cinematografia produzida no Irã, como Abbas Kiarostami em Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a obra-prima Gosto de Cereja (1997), e O Vento nos Levará (1999); Mohsen Makhmalbaf com o admirável A Caminho de Kandahar (2001), em que os detalhes são fundamentais de um realismo puro que reflete uma sociedade arcaica de pensamentos e comportamentos retrógrados; bem como Asghar Farhadi com À Procura de Elly (2009), A Separação (2011), O Apartamento (2016) e O Passado (2013).
Indicado para representar a Dinamarca no Oscar deste ano, Holy Spider, título que pode ser traduzido literalmente como “Aranha Sagrada”, é o terceiro longa-metragem de Abbasi, disponível para assinantes do MUBI, o quarto ainda não chegou ao Brasil. Um misto de drama com thriller policial que irá abordar a aterrorizante história baseada em fatos reais ocorridos entre os anos de 2000 e 2001, protagonizado por um dos serial killers mais temidos naquele país. Retrata com extrema sensibilidade uma sombria e incômoda tragédia humana, em uma típica apresentação de horrores, que só agora adquire notoriedade pelas lentes da câmera deste cineasta ao encarar de frente uma realidade devastadora e macabra numa cultura machista que eliminou 16 mulheres para o “bem” da sociedade conservadora. É a defesa da moral e dos bons costumes da cidade sagrada de Mashhad, como meio característico de extravasar os próprios preconceitos. Não é uma decisão isolada, porém há incentivo e proteção de uma sub-reptícia rede sinistra colossal.
Saeed Hanaei (Mehdi Bajestani) é conhecido como "spider killer", um veterano de guerra que se torna um fanático religioso andando de motocicleta durante as madrugadas, rapta prostitutas encontradas na rua para estrangular até a morte, usando seus próprios véus. Durante o dia, ele é um homem que leva uma vida comum e trabalha como operário. Casado com a dócil Fatima (Forouzan Jamshidnejad), tem um casal de filhos, sendo que o garoto o vê como um herói em tudo, sendo que o epílogo irá revelar seu futuro. Um clássico patriarca de uma família exemplar, considerado bom pai e um marido dedicado, embora sempre tivesse uma desculpa para não visitar os pais da esposa à noite, quando revelava a explosão da saga monstruosa de um matador frio. Acreditava que havia um chamado divino de Allah para cumprir a missão de limpar a sociedade das mulheres aranhas, por serem indignas da convivência com as famílias honradas. Aclamado por parte da sociedade, por isto entendia ser um mártir. Um convicto de sua jornada "espiritual" para realizar uma obstinada limpeza de purificação da cidade, o que o tornava mais perigoso e cruel, por ter certeza de que estava fazendo o certo.
No meio desta parafernália de
distorções, surge a jornalista Rahimi (Zar Amir Ebrahimi, de ótima atuação, que
lhe rendeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes de 2022) que pretende
escrever um artigo sobre os crimes locais. Ela vem da capital, Teerã, e se
envolve de corpo e alma nas investigações, encontra diversos empecilhos. Ampara-se
num colega daquela cidade, o descrente repórter policial Harifi (Arash Ashtia),
que tenta ajudá-la de maneira tímida. Após a matança das mulheres pela dita
"missão divina", os jornalistas irão encontrar cada vez mais
dificuldades nas buscas diante da desídia dos policiais para encontrar o
assassino, embora haja claramente um modus
operandi na abordagem das vítimas e sua relação doentia com o sexo oposto,
onde os crimes são motivados pela crença religiosa através de um vingança que vai
sendo detalhada. Tudo é mais complexo do que a jornalista imaginava, porque
necessita vencer obstáculos inimagináveis. Rahimi tem enormes atritos no
relacionamento com as autoridades ditas defensoras da lei. Trava uma luta
implacável contra o sistema machista que comove e, ao mesmo tempo, é revoltante
pela parcialidade aos fatos de um sistema repleto de erros voluntários e
parcimoniosos para não deslindar as atrocidades abjetas, nauseantes com ruídos
de desesperança por falta de prioridades.
Uma sociedade que desvaloriza filosoficamente as mulheres, mas acolhe um psicopata em delírios permanentes com vocação paranoica instigada pelas imaginárias alucinações advindas do além. Uma narrativa com sequências bem construídas para mexer com o espectador que se sente enojado ao ser atingido em cheio pelas elucubrações da violência direta e seca dos fatos, sem concessões ou sugestões. Nada poderia parar a sanha assassina que não se importa de sacrificar prostitutas por uma entrega de vida tresloucada no cumprimento de seu objetivos pseudo-religiosos. Entende que há mandamentos do além para dizimar a corrupção da imoralidade, advindas daquelas mulheres que sujam as ruas. Uma autêntica violência misógina no abuso do corpo feminino. A realização apresenta a identidade do assassino desde o prólogo da trama. Há muita tensão e um clímax perturbador no instigante roteiro do diretor em parceria com Afshin Kamran Bahrami ao apontar a distorção dos preceitos religiosos, o sexismo explícito, a desigualdade social escancarada com o beneplácito das autoridades policiais e da negligência ou conluio do governo teocrático.
A tortura psicológica por ter que conviver com a segregação de gênero devido à condição de não ter nascido homem é um dos temas permanentes e atuais, especialmente no Irã. Há similaridade nesta temática com O Perdão, drama iraniano, de Maryam Moghadam; Não Há Mal Algum (2021), vencedor do Urso de Ouro e do Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Berlim, de Mohammad Rasoulof; Um Herói (2021), de Asghar Farhadi, laureado em Cannes com o Prêmio do Júri; também o drama social egípcio O Truque da Galinha (2021), de Omar El Zohairy. Holy Spider é um filme fabuloso que coloca a dignidade humana em confronto com o fanatismo sobre questões éticas para apontar a prepotência estatal com seus valores obsoletos neste contexto silencioso dos dissabores e suas complexidades. Há elementos indispensáveis que contribuem para as angústias de um imenso sofrimento que restam como sombras permanentes. O judiciário é uma farsa só, com apadrinhamentos e amizades inescrupulosas no enredo. Fica uma terrível sensação de insegurança pela falta de equidade que traz as diversas desconfianças transmitidas. As particularidades da engrenagem judicial do país chamam atenção pela burocracia e parciais métodos duvidosos. Uma cumplicidade com o silêncio de outros personagens, onde as desculpas são facilitadas para esconder a barbárie da triste realidade mantida por uma sociedade dominada pelo fanatismo do pensamento religioso e amordaçada pela burocracia oficial.
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