quarta-feira, 15 de março de 2023

Alcarràs

 

Realidade Sombria

Vencedor do Urso de Ouro de Melhor Filme no Festival de Berlim do ano passado, Alcarràs, não passou pelas salas cinemas e foi direto para a plataforma MUBI. A direção e o roteiro são de Carla Simón, que estreou com Verão 1993 (2017). Uma história aparentemente simples com muitos personagens que formam a família Solé, de três gerações que sobrevivem do cultivo de pessegueiros no pequeno município da Espanha, província de Lérida, comunidade autônoma da Catalunha, que empresta o título ao longa-metragem. Passam colhendo os frutos de seu pomar, que pode ser a última estação deles. Pai, mãe, filhos, netos, sobrinhos, tios, primos, o avô patriarca e alguns colegas de trabalho compõem este painel amplo da vida de agricultores, até o confronto com o choque da modernidade, onde o progresso bate às portas de uma civilização com métodos antigos. Eles se incomodam diante da iminência pela chegada da indústria da energia solar com suas placas se avolumando nos arredores. O líder do microcosmo familiar é o filho mais velho do patriarca, Quimet (Jordi Pujol Dolcet) casado com Dolors (Anna Otín) e seu casal de filhos Mariona (Xenia Roset), uma garota que gosta de cantar e dançar, e Roger (Albert Bosch), um rapaz que tentará mostrar seus brios de valentia para os demais membros da comunidade que o cercam.

A trama aborda com sutilezas a ameaça de despejo, diante dos novos planos para o imóvel que incluem cortar os pessegueiros e instalar painéis solares, o que provoca uma disputa dentro da própria família e seu agronegócio. Pela primeira vez, depois de décadas, se deparam com um futuro incerto, correndo o risco de perder muito mais do que a casa, o terreno para o plantio e a colheita. As suas vidas, até aí pacatas, mudam quando recebem uma notificação do senhorio que lhes dá até ao final do verão para desocupar as terras. O proprietário dos terrenos tenciona a atmosfera quando ameaça arrancar todas as árvores frutíferas, notícia que vai abalar todos eles. Apesar de unidos, há maneiras diferentes de vislumbrar o futuro ou de encontrar novas opções de sustento, que dará origem a desavenças difíceis de apaziguar dentro do clã dos Solé. Descobrem que existe um enrosco administrativo sobre o título da propriedade e que outra família poderá ser a nova detentora de todos os direitos sobre aquelas terras que lhes deram o sustento por várias gerações. Quimet não aceita a nova situação e resiste bravamente, fica possesso ao descobrir que um dos tios, visto como traidor, irá se unir aos opositores para garantir seu emprego.

A diretora contextualiza a estabilidade do agronegócio ao lançar uma fagulha que toma contornos de confronto entre classes sociais e gerações que reagem ao problema de maneira diferente sobre as diversas questões socioeconômicas. Os aspectos intrínsecos e extrínsecos estão diluídos dentro do drama com os interesses diferentes como métodos de uma clássica disputa numa comunidade estruturada, porém que começa a ruir com o egoísmo e o interesse pessoal se sobrepondo ao da coletividade. Crianças e adultos são jogados no confronto como se fossem empurrados para o olho do furacão. O que deveria ser uma luta de classe igual, acaba perdendo força com a trajetória do enredo. Uma realização minimalista sobre as novas descobertas do futuro incerto para uns, enquanto que outros se submetem a tudo para garantir um emprego ou subemprego na nova realidade da imposição negociada com o poder progressista. A realizadora dá ênfase ao realismo pujante da comunidade e seu afeto e louvação para o cotidiano abalado, agora perdendo sua autonomia em detrimento de um progresso devastador que está se instalando, de maneira cruel e aniquilador com os povos originários de uma região na iminência da transformação.

A narrativa se estrutura pelo realismo social ao acompanhar os múltiplos personagens com uma câmera livre e sempre atenta aos movimentos de cada indivíduo, bem como em outras cenas com dez ou mais pessoas sendo enquadradas. As crianças correndo pelas planícies com brincadeiras na piscina; os adultos se hostilizando na busca de seus direitos inalienáveis. As atividades acontecem simultaneamente, sem um conflito maior que derive às vias de fato, mesmo na iminência da perda da casa patriarcal. Um cesto de pêssegos humanista contrapondo com um coelho morto, as placas solares sendo questionadas no contexto imperioso com a relevância da contemporaneidade. Não há um caos explícito ou implícito, quase tudo gira na sugestão, nos diálogos por vezes enfadonhos, embora em outras vezes a mesmice se torne recorrente e desagrade o espectador. Porém, há se ressaltar a linda fotografia de Daniela Cajías que capta com brilho as cenas com imagens de paisagem exuberante do plantio dos pessegueiros nas planícies, com sequências em grandes planos abertos de uma região produtiva, mágica e envolvente, que é relevante para o desenrolar da história e sua evolução até o desfecho pessimista, mas realista por ser sombrio. O elenco e a fotografia estão alinhados com a proposta da realização.

Alcarràs é uma obra interessante por seus questionamentos de uma aldeia que reflete uma sociedade em ruínas, embora haja civilidade, ternura e amor. Mesmo que aparente um falso universo de paz nas relações humanas num universo amargo pelas circunstâncias precárias, com condições de dignidade para uma população de uma família que está de braços abertos para os indivíduos, até mesmo para os desconectados daquela família tradicional que bebe vinho, come bem, se diverte, mas as rusgas entre os parentes irão abalar pelos infortúnios da nova era de uma situação que atinge a pureza daquelas crianças que vivem na natureza encravada naquela região como parte de um ambiente daquele cenário em extinção. Ainda que falte mais cinema por falta de um clímax dentro de um foco com contornos diversos, o epílogo é marcante pelo sentido humano fragilizado. A sobriedade usada é a dose de amargura mesclada com pouco alento, sem pieguismos. Méritos para a cineasta que conduz o espectador a acompanhar, mesmo que lamente o destino dos personagens, há o simbolismo do descaso com a ausência de um vínculo de importância aos nativos pelos fatos que se sucedem numa atmosfera criada em torno daquele bucólico lugarejo com seus costumes cultuados no dia a dia. O drama pode não ser profundo, mas tem uma razoável narrativa das idiossincrasias dos personagens envolvidos e as condições socioeconômicas do futuro, mesmo sem atritos ou violência, que levam para um realismo social presente nas comunidades afastadas com suas angústias para ser refletido.

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