sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Amar, Beber e Cantar


A Leveza da Morte

Considerado um dos maiores mestres do cinema de todos os tempos, o longevo diretor Alain Resnais, morto em março deste ano, aos 91 anos, deixou um legado histórico e significativo para a sétima arte, com obras abrangentes e muitas reflexões com críticas ácidas à sociedade hipócrita francesa. Sua despedida se deu em alto nível e novamente apronta positivamente com Amar, Beber e Cantar, um drama de sutilezas e recheado de cores e matizes diferentes, numa narrativa leve e ao mesmo tempo profunda sobre a morte que se aproxima, como uma premonição do fim que aguardava o cineasta, tal qual na trama em que o personagem George tem seis meses de vida.

No longa anterior Vocês Ainda Não Viram Nada!, fundiu-se teatro e cinema para realizar o último desejo de um famoso dramaturgo que morreu de repente e deixa uma mensagem num vídeo convidando seus melhores amigos para remontar livremente, em quatro atos, a peça Eurídice, escrita por Jean Anouilh, e o relacionamento conturbado com seu amante Orfeu. A proposta inusitada é transmitida pelo mordomo aos atores que atuaram nas duas versões anteriores, logo que chegaram na suntuosa mansão para participarem do funeral, porém este já acontecera.

Outra vez há uma homenagem ao teatro como prova da estima do veterano diretor por essa arte, bem como tem na morte o foco. Inova e teatraliza o próprio teatro e traz para o cinema, dentro do seu apreciável formalismo um universo colorido por uma deslumbrante fotografia, requintada pela cenografia teatral, sendo utilizados bonitos desenhos do casario, ao trocar a cena como uma elipse criativa e que dá brilho aos olhos. A câmera desliza como se flutuasse pelas ruas do antigo vilarejo inglês de uma arquitetura magnífica, dando uma panorâmica criativa num belo plano sequencial. Surgem os créditos com letras vermelhas numa grafia simples dentro de um retângulo preto, para contrastar com as lindas imagens lançadas no contraplano.

Com um elenco homogêneo e convincente no desempenho dos três casais com a vida conjugal em risco: Kathryn (Sabine Azéma) e Colin (Hippolyte Girardot); Tamara (Caroline Silhol) e Jack (Michel Vuillermoz); Monica (Sandrine Kiberlain) e Simeon (André Dussollier). Numa narrativa bem construída, com uma dosagem de humor leve, a trama inventiva funciona como um jogo de xadrez, em que são manipuladas as diversas situações que darão solução para os casais em cena, que representam o grupo de teatro amador ensaiando uma nova peça, quando surge a triste notícia da doença terminal de seis meses de vida para George que irá abalar a todos. As mulheres relembram a antiga paixão pelo mulherengo colega, próximo do fim da existência. Os homens pensam no amigo que irá partir para sempre e numa justa homenagem de despedida, como convidá-lo para a derradeira interpretação de um dos personagens. Dentro do contexto serão revelados segredos relacionados ao passado de todos e o envolvimento emocional interligado com o amigo doente que nunca é visualizado nas cenas.

Resnais deixa em seu legado a prova nesta obra derradeira, que o teatro pode ser inserido na linguagem do cinema, numa ironia mesclada com um humor sutil como marcas registradas do cineasta francês, como visto recentemente no notável Medos Privados em Lugares Públicos (2006) e em Ervas Daninhas (2009), este um pouco abaixo da expectativa. A carreira do velho mestre é brilhante e tem em sua filmografia os ótimos Amores Parisienses (1997) e Beijo na Boca, Não (2003), bem como as obras-primas Hiroshima, Meu Amor (1959) e O Ano Passado em Marienbad (1961). Seu talento é inerente aos diretores decanos do cinema, como o português Manoel Oliveira, com mais de 105 anos, esbanjando lucidez no atual O Gebo e a Sombra (2012).

Amar, Beber e Cantar é um drama atual e exemplar, no qual o teatro e sua formalidade estrutural cênica na apresentação da montagem de uma peça que dará vazão para um mergulho no imaginário do espectador na encenação de um elenco primoroso e com destaque para Sabine Azéma. O cineasta brinca e se diverte com a linguagem teatral, cria uma atmosfera de amor e tristeza de uma realidade que torna-se ficção no cenário das interpretações pela estética apurada com consistência e rigor no equilíbrio cênico que encontra sustentação no roteiro enxuto e sofisticado para uma atmosfera que vem à tona com lucidez, bem alicerçada num molho saboroso desta vigorosa obra de cinema teatral que encerrou a carreira de Alain Resnais.

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