Violência Doméstica
Depois de fazer relativo sucesso
no Festival Varilux de Cinema Francês na edição de 2013, só agora estreia Prenda-me em Porto Alegre, com
exclusividade na alternativa Sala Norberto Lubisco da Casa de Cultura Mário
Quintana. Tem na direção o pouco conhecido Jean-Paul Lilienfeld, embora conste
em sua filmografia um curta e cinco longas, tendo em O Dia da Saia (2008) a mesma estrutura fechada num ambiente com
diálogos fortes. Também assina o enxuto roteiro, que se baseou no livro "Les
Lois de la Gravité", de Jean Teulé, mostra méritos em torno da expectativa
criada da acusada e as reviravoltas da trama para um apreciável clima de
suspense psicológico.
A abordagem de Prenda-me enfatiza a abnegada inversão
de papéis e os valores questionados numa noite na delegacia de polícia, quando uma
mulher que trabalha como carteira (Sophie Marceau) decide ir lá e dizer que,
contrariamente ao laudo policial, está fazendo dez anos que matou o marido Jimmy
(Marc Barbé), e que no dia seguinte haverá a prescrição da pena. Ou seja, não
houve suicídio, mas ela o teria empurrado da janela do oitavo andar, por isso
quer ser presa. Diante da confissão inesperada a inspetora de plantão Pontoise
(Miou-Miou) coloca em dúvidas o suposto crime assumido.
O cineasta se utiliza da atípica
confissão para investigar o caso com cautela, começando um jogo de poder e
manipulação entre as personagens. A policial logo descobre que, na realidade, a
carteira é vítima e não ré, diante dos frequentes abusos físicos e psicológicos
que sofria do marido, inclusive era estuprada e achava normal o fato. No embate
travado, Pontoise, que em tese, deveria usar a lei fria do papel, tenta
convencer e mostra minuciosamente todos os dissabores da cadeia, um lugar em
que as pessoas deveriam passar bem longe, por ser inóspito e nada hospitaleiro.
Há um cenário retratado com
perspicácia pelo diretor, em que também a plantonista sofreu muito com a
violência doméstica, pois seu pai espancava a mãe barbaramente. As imagens em
flashbacks são fortes e ela ainda menininha nunca esqueceu as atrocidades
presenciadas nos dias e noites de terror. Mesmo que sua atitude caracterize uma
grave infração e cometa prevaricação, porque não cumpre disposição expressa em
lei, ou seja, prender aquela mulher que lhe suplica e implora para ser
encarcerada para reparar uma culpa que lhe aflige e traz um sofrimento por
todo este período, diante dos fantasmas do passado que a atormentam e não a
deixam em paz.
É nítida a preocupação no resgate da dignidade pela culpada,
ao autoproclarmar-se uma assassina confessa. Ela acha que ao conhecer seu
companheiro, ele não era assim, por isto acredita ser a responsável por tudo,
até mesmo na agressividade dos anos de convivência. A cena com seu filho é
reveladora e vai ao encontro do perdão daquele jovem que adora o pai e a odeia,
numa situação emblemática pelo constrangimento familiar, na dura luta travada
com os princípios morais e éticos que a norteiam. No calor dos argumentos, a
inspetora tenta achar uma solução diplomática, tenta até mesmo caracterizar a
legítima defesa no caso concreto, diante das constantes agressões que eram
causadas à esposa, com dor e ultrajes físicos no trabalho. É tentada exaustivamente
uma forma para legitimar a saída da delegacia e abandonar de vez a obsessiva
culpa em pagar pelo crime.
O suspense tem uma estrutura
dramática magnífica, com as excelentes interpretações de Miou-Miou e Sophie Marceau
nas cenas vividas nessa inesperada e interminável jornada noite adentro. A
abordagem indica uma justiça cega, diante da impunidade recorrente que leva à
violência exacerbada dos maridos que espancam sem dó e nem piedade suas
companheiras do dia a dia. Os sentimentos que rasgam a inocência da vítima vão
ao encontro do perdão da plantonista, como simbologia do Estado que admite a
culpa e deixa de punir; ou da mulher travestida em autoridade que busca uma
vingança sofrida na infância e os efeitos psicológicos devastadores que a
atordoam e a faz carregar uma carga emocional com dolorida amargura. A bela
cena do cemitério e da tormenta que cai e lava sua alma é sugerida como
metáfora da purificação pela água de um segredo que guardava por incomodá-la
até o encontro noturno que a libertará, depois do duelo de palavras e atitudes
na penumbra entre duas sofredoras que se encontram por acaso.
Prenda-me é daqueles
ditos filmes de denúncia que traz no seu bojo uma reflexão sobre a violência diária
nos lares ou em qualquer lugar ermo. Soa como um brado de socorro da mulher
humilhada que quer pagar sua dívida com a sociedade, por se achar devedora,
embora seja a vítima, para recuperar a sanidade mental e a dignidade num clímax
da perda momentânea da lucidez. A outra mulher quer a redenção das reminiscências
hipnotizadas pelo tempo e busca as verdades escondidas. São as sombras daquelas
duas criaturas vistas num cenário quase que de guerra. Um drama singular pela
comovedora cruzada contra a violência num contexto machista ainda bem marcante
num cenário mundial, com questionamentos lançados pelo cineasta, que busca uma
cumplicidade do espectador para o desfecho instigante.
Nenhum comentário:
Postar um comentário