sexta-feira, 28 de março de 2014

Prenda-me


Violência Doméstica

Depois de fazer relativo sucesso no Festival Varilux de Cinema Francês na edição de 2013, só agora estreia Prenda-me em Porto Alegre, com exclusividade na alternativa Sala Norberto Lubisco da Casa de Cultura Mário Quintana. Tem na direção o pouco conhecido Jean-Paul Lilienfeld, embora conste em sua filmografia um curta e cinco longas, tendo em O Dia da Saia (2008) a mesma estrutura fechada num ambiente com diálogos fortes. Também assina o enxuto roteiro, que se baseou no livro "Les Lois de la Gravité", de Jean Teulé, mostra méritos em torno da expectativa criada da acusada e as reviravoltas da trama para um apreciável clima de suspense psicológico.

A abordagem de Prenda-me enfatiza a abnegada inversão de papéis e os valores questionados numa noite na delegacia de polícia, quando uma mulher que trabalha como carteira (Sophie Marceau) decide ir lá e dizer que, contrariamente ao laudo policial, está fazendo dez anos que matou o marido Jimmy (Marc Barbé), e que no dia seguinte haverá a prescrição da pena. Ou seja, não houve suicídio, mas ela o teria empurrado da janela do oitavo andar, por isso quer ser presa. Diante da confissão inesperada a inspetora de plantão Pontoise (Miou-Miou) coloca em dúvidas o suposto crime assumido.

O cineasta se utiliza da atípica confissão para investigar o caso com cautela, começando um jogo de poder e manipulação entre as personagens. A policial logo descobre que, na realidade, a carteira é vítima e não ré, diante dos frequentes abusos físicos e psicológicos que sofria do marido, inclusive era estuprada e achava normal o fato. No embate travado, Pontoise, que em tese, deveria usar a lei fria do papel, tenta convencer e mostra minuciosamente todos os dissabores da cadeia, um lugar em que as pessoas deveriam passar bem longe, por ser inóspito e nada hospitaleiro.

Há um cenário retratado com perspicácia pelo diretor, em que também a plantonista sofreu muito com a violência doméstica, pois seu pai espancava a mãe barbaramente. As imagens em flashbacks são fortes e ela ainda menininha nunca esqueceu as atrocidades presenciadas nos dias e noites de terror. Mesmo que sua atitude caracterize uma grave infração e cometa prevaricação, porque não cumpre disposição expressa em lei, ou seja, prender aquela mulher que lhe suplica e implora para ser encarcerada para reparar uma culpa que lhe aflige e traz um sofrimento por todo este período, diante dos fantasmas do passado que a atormentam e não a deixam em paz.

É nítida a preocupação no resgate da dignidade pela culpada, ao autoproclarmar-se uma assassina confessa. Ela acha que ao conhecer seu companheiro, ele não era assim, por isto acredita ser a responsável por tudo, até mesmo na agressividade dos anos de convivência. A cena com seu filho é reveladora e vai ao encontro do perdão daquele jovem que adora o pai e a odeia, numa situação emblemática pelo constrangimento familiar, na dura luta travada com os princípios morais e éticos que a norteiam. No calor dos argumentos, a inspetora tenta achar uma solução diplomática, tenta até mesmo caracterizar a legítima defesa no caso concreto, diante das constantes agressões que eram causadas à esposa, com dor e ultrajes físicos no trabalho. É tentada exaustivamente uma forma para legitimar a saída da delegacia e abandonar de vez a obsessiva culpa em pagar pelo crime.

O suspense tem uma estrutura dramática magnífica, com as excelentes interpretações de Miou-Miou e Sophie Marceau nas cenas vividas nessa inesperada e interminável jornada noite adentro. A abordagem indica uma justiça cega, diante da impunidade recorrente que leva à violência exacerbada dos maridos que espancam sem dó e nem piedade suas companheiras do dia a dia. Os sentimentos que rasgam a inocência da vítima vão ao encontro do perdão da plantonista, como simbologia do Estado que admite a culpa e deixa de punir; ou da mulher travestida em autoridade que busca uma vingança sofrida na infância e os efeitos psicológicos devastadores que a atordoam e a faz carregar uma carga emocional com dolorida amargura. A bela cena do cemitério e da tormenta que cai e lava sua alma é sugerida como metáfora da purificação pela água de um segredo que guardava por incomodá-la até o encontro noturno que a libertará, depois do duelo de palavras e atitudes na penumbra entre duas sofredoras que se encontram por acaso.

Prenda-me é daqueles ditos filmes de denúncia que traz no seu bojo uma reflexão sobre a violência diária nos lares ou em qualquer lugar ermo. Soa como um brado de socorro da mulher humilhada que quer pagar sua dívida com a sociedade, por se achar devedora, embora seja a vítima, para recuperar a sanidade mental e a dignidade num clímax da perda momentânea da lucidez. A outra mulher quer a redenção das reminiscências hipnotizadas pelo tempo e busca as verdades escondidas. São as sombras daquelas duas criaturas vistas num cenário quase que de guerra. Um drama singular pela comovedora cruzada contra a violência num contexto machista ainda bem marcante num cenário mundial, com questionamentos lançados pelo cineasta, que busca uma cumplicidade do espectador para o desfecho instigante.

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