terça-feira, 11 de março de 2014

12 Anos de Escravidão


Racismo Venenoso

Steve McQueen é um bom diretor afro-britânico (não confundir com o ator de Papillon (1973) e Inferno da Torre (1974), morto em 1980), que realizou o intenso Fome (2008), seu primeiro longa-metragem sobre a solidão e a liberdade, com interpretação de Michael Fassbender no papel de um soldado guerrilheiro do IRA preso e em greve de fome na cadeia. Causou uma impressão alentadora com Shame (2011), segundo longa do cineasta e vencedor do Prêmio da Crítica do Festival de Veneza, com Fassbender protagonizando um nova-iorquino bem-sucedido que não gostava de manter vínculos afetivos com as mulheres, praticava o sexo compulsivo na busca de resolver problemas e frustrações, num apreciável ensaio sobre os viciados e doentes sexuais.

Ao vencer o Oscar deste ano como melhor filme, McQueen corta fundo na carne dos negros açoitados para demonstrar a execrável violência da escravidão de uma raça depauperada brutalmente em 12 Anos de Escravidão. Baseado no livro homônimo e autobiográfico de Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor interpreta com eficiência) os fatos reais ocorridos de 1841 a 1853, no Norte dos Estados Unidos, onde um escravo liberto toca violino, é respeitado como músico e vive em paz ao lado da esposa com os filhos. Num dia qualquer aceita tocar seu instrumento que o levará para o Sul do país, numa trapaça dos parceiros do trabalho, é sequestrado, acorrentado e vendido como se fosse um não alforriado. O diretor mostra com realismo as humilhações físicas e psicológicas que o protagonista sofrerá para sobreviver na saga dos intermináveis doze anos. Passa por dois senhores: o religioso de bom coração e frouxo nas atitudes Ford (Benedict Cumberbatch); e o déspota cruel e mulherengo Edwin Epps (Michael Fassbender- de grande atuação na terceira parceria com o diretor), que o submete a todas as privações e rompimentos com a dignidade mínima de um ser humano. A dureza cênica vira o estômago e lembra A Paixão de Cristo (2004), beirando o sadismo de Mel Gibson.

Os Estados Unidos aboliram a escravidão em 1863, num processo conflituoso que gerou uma guerra e dividiu o país. Embora faça tanto tempo, o racismo ainda é um problema presente em nossa sociedade, mesmo com a eleição de um negro para presidente dos norte-americanos, há ainda insultos bem presentes como nos campos de futebol, com injúrias ofensivas e preconceituosas pipocando ali e acolá. Recentemente um negro foi agredido, despido e acorrentado em um poste no Rio. As amostras corroboram para a atualidade do enredo de McQueen, que fez um filme tão político como o drama épico histórico Lincoln (2012), de Steven Spielberg, embora sem contar com o extraordinário ator Daniel Day-Lewis, abandona a fotografia gris que representava a personalidade doentia do personagem de Fassbender em Shame, para mergulhar em tomadas mais reais do clima proposto dos sulistas nos EUA. Vai fundo nas situações de desespero do protagonista para criar o inferno na terra, tendo no fotógrafo Sean Bobbitt, uma parceria certa para demonstrar toda a angústia em planos detalhados, aproximando a câmera dos corpos esfolados. A violência é atenuada na cena em que Solomon toca seu violino e acentuada em outra pelo impacto das chibatadas recebidas, crescendo com o escravo sendo enforcado numa árvore rangendo, sobrevive por arrastar bravamente os pés no chão, já com a respiração abafada.

O drama épico foge do maniqueísmo das duas cores antagônicas, mas resvala na abordagem do homem branco do Norte como símbolo do progresso, religioso e até atencioso por vezes, contrastando com o sulista caricaturado como símbolo diabólico. A solução apresentada pode ser vista como uma singela tentativa de escapar do clichê, diante do senhor dos escravos Ford, dando a impressão de ser acolhedor e menos repressor, porém de presença questionadora, pois embora não torture seus escravos, não deixa de tratar o protagonista como mera mercadoria e acaba por revendê-lo ao facínora Edwin, o enlouquecido de desejo e possessão pela escrava Patsey (Lupita Nyong'o- excelente atuação que lhe valeu o Oscar de atriz coadjuvante). Acerta a mão com o enviado anjo bom (Brad Pitt), em convincente surgimento para a liberdade.

O diretor, paradoxalmente, dá mais vida ao brutamonte de personalidade doentia, que faz os escravos acordarem na noite para dançar para ele, do que ao senhor dito bonzinho. Demonstra possuir sentimentos, ainda que deturpados pelos desvios de personalidade pela jovem escrava. McQueen constrói uma criatura autêntica, mas vacila e se deixa levar para os sentimentos exagerados e descamba para o melodrama, como no epílogo desnecessário e com sinais de panfleto, que nos remete para A Cor Púrpura (1985), também de Spielberg. Acerta ao se afastar dos closes e frases de efeito moralista, optando por cenas cruas de realismo intenso, mas quase esbarra novamente nos excessos que sucumbiram Gibson em A Paixão de Cristo. Reabilita-se nas cenas de sexo: o estupro de uma escrava por seu dono e a ideia de propriedade; a outra é entre dois escravos sem sentir desejo, ressaltando apenas a evidência de um mero preenchimento de tempo para aguardar o dia seguinte e as torturas da odisseia.

Inferior tecnicamente na comparação inevitável com Django Livre (2012), de Quentin Tarantino, que arrasa ao reescrever a saga no efervescente e bem original longa que dá oportunidade aos escravos sulistas dos EUA, dois anos antes da sanguinolenta guerra civil (1861-1865), em mandar para os ares os opressores, numa magnífica vingança no Velho Oeste protagonizada pelo escravo com brasa nos olhos (Jamie Foxx- impecável interpretação), não faltaram os negros chicoteados e esfolados de forma exposta visceralmente pelos seus senhores, ou ainda a tétrica cena dos cachorros estraçalhando o fugitivo. 12 Anos de Escravidão é um admirável filme de denúncia e retrata os horrores da escravatura para não ser esquecidos, onde a barbárie aniquila uma civilização representada por um homem simples e em paz com a família, mas que seu crime foi ter nascido de pele negra no século XIX, num país que ainda não tinha abolido a segregação racial. É uma abordagem marcante pelo olhar de um cineasta que queria sanar uma lacuna na sua filmografia sobre o tema e as injustiças de uma raça humilhada, mas que busca a redenção e a dignidade esfacelada no tempo.

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